sábado, 18 de julho de 2009

HISTÓRIA ARTÍSTICA DA EUROPA - A IDADE MÉDIA (VOL.1)


Entre história e história da arte
LUIZ MARQUES
Não há, salvo engano, nada de comparável na historiografia artística de nosso século ao que representa, para a historiografia da literatura, a síntese de E.R. Curtius, ''Literatura Européia e Idade Média Latina'' (1). É por isso, entre outras razões, muitíssimo bem-vinda a tradução de uma recente coletânea de ensaios, à guisa de síntese da história da arte medieval, posta sob os cuidados de Georges Duby, um dos grandes medievalistas franceses de nosso tempo.
A rigor, trata-se de uma tentativa de síntese que tem a virtude de evitar, pelo seu caráter ensaístico, exploratório, o peso e as dificuldades inerentes a todo grande compêndio. Talvez a história da arte se preste menos a este gênero sistematizante de abordagem que a história da literatura e da filosofia medievais, cuja diversidade se espraia no âmbito de uma unidade de fundo, nem sempre facilmente apreensível nas artes da Europa nascente.
Para além da sempre indispensável atualização do quadro geral, possibilitado pela articulação seletiva dos resultados de numerosas pesquisas pontuais, a síntese de Duby é de valor seguro, seja por saber aliar precisão e concisão, seja pela variedade do mosaico proposto, seja sobretudo porque supre o leitor com uma documentação iconográfica consequente e de ótimo nível gráfico.
O texto de Duby, propriamente dito, traz a marca do grande historiador, com sua insólita capacidade de organização do material histórico em uma prosa que faz quase esquecer, por sua fluidez, os estratos diversos de erudição sobre o qual repousa. O resultado é que o leitor verá surgir um a um os principais elementos que, na história econômica, política, intelectual e religiosa das sociedades medievais, compõem progressivamente o ''humus'' sobre o qual se ergue o florescimento artístico europeu a partir sobretudo da arrancada do século 11.
Evidentemente, Duby não pretende fazer história da arte. Seu texto chama-se justamente ''Arte e Sociedade''. Um texto de um historiador sobre a história da arte medieval não deixa de suscitar ao menos um problema metodológico, mesmo em se tratando de uma introdução a ensaios de caráter propriamente histórico-artístico. Em sua lida virtuosística com o arco histórico milenar que ele abrange em uma centena de páginas, não há uma só passagem onde o fenômeno artístico seja pensado em sua natureza estética, e isto sob a alegação de que as obras que são hoje, ''para nós'', objeto de gozo estético, não o eram para ''eles'', os homens de então, que nelas viam ''imagens antes de mais nada funcionais''. A questão não é tão simples, e por duas razões.
Em primeiro lugar porque parece imprudente, mesmo levando-se em consideração a escassez de testemunhos coevos, subestimar o senso estético do ''homem medieval''. Sempre eficiente, com frequência empolgante, no revelar os diversos modos de pensar e sentir da mente medieval, o texto de Duby cala no que se refere aos modos como tal mente vive a obra de arte enquanto tal. É por que tal dimensão, a da experiência estética, estaria ainda vedada às sociedades ocidentais antes do Renascimento? Nada mais difícil de se provar. Nada menos verossímil. Por que uma fíbula ou uma presilha ornada, uma iluminura carolíngia, um relevo de ouro ou uma plaqueta de marfim, para nos atermos a exemplos típicos da Alta Idade Média, objetos que consideramos hoje obras de arte no sentido mais pleno da palavra, não teriam assim sido considerados pelos artistas e pela sociedade que os criou? É de se indagar se o receio quase religioso do historiador de cometer sacrilégio de anacronismo não acabaria por fazê-lo incorrer em outra forma de ingenuidade, que seria justamente a de negar a uma sociedade do século nove a possibilidade de ser plenamente o que ela foi, isto é, uma sociedade com uma sensibilidade estética própria, que caberia ao historiador investigar, descobrir-lhe os valores morfológicos e espirituais, em vez de remetê-la, escrupulosamente empacotada, aos guichês do sociólogo, do historiador da religião e do antropólogo.
A segunda dificuldade nasce de nós próprios. A seleção pressuposta em qualquer síntese da história da arte medieval é uma operação de crítica, de separação, de diferenciação, de hierarquização. Como toda a crítica, ela emite um juízo estético oriundo de um sistema de valores contemporâneo. É claro que o historiador deve se armar de todo o cuidado para escapar do anacronismo que o espreita de toda a parte. Seu guia, nessa jornada perigosa, é a fonte, o acesso direto à fonte. Mas a fonte, ela própria, nada diz antes de sua interpretação, de sua leitura. Leitura que deve ser feita, evidentemente, com os valores do público para quem ela foi escrita, pintada ou esculpida. Nada mais certo, mais meritório, nem mais difícil.
Mas não se trata aqui de sublinhar as dificuldades da empresa, mas de notar que o problema é logicamente anterior. O problema é que o exercício do relativismo histórico, de onde nasce a esperança (quando não a ingênua arrogância positivista) da objetividade do historiador é, não o esqueçamos, um exercício da modernidade mais recente, não anterior ao século 19. Na realidade, tentar compreender o outro a partir dele próprio é, em si e já completamente, um ato violento de interpretação moderna do passado. Isto para não levar o problema à sua dimensão puramente metodológica, cujo ensinamento é claro: não se pode suprimir a redução do objeto ao ponto de vista do sujeito que o observa, simplesmente porque observar é, em parte, constituir este objeto. Por todas essas razões, a alteridade é sempre ocultamento, opacidade. Ela não se dá ao conhecimento do historiador senão por intermédio de uma interpretação necessariamente redutora. E, se não se pode dela escapar, é então melhor que se a assuma consciente e declaradamente. Ora, não é reduzindo o problema da recepção coeva da obra de arte medieval à condição de objeto funcional que se salvaguardará a objetividade axiomática de qualquer reconstituição histórico-artística do período.
A série de artigos que compõem a segunda parte da obra complementa admiravelmente o ensaio de Duby e confere ao conjunto da obra um notável equilíbrio entre história e história da arte.
O primeiro ensaio, de Gisela Ripoll López, versa sobre a arte visigótica na Península Ibérica. A autora parte das artes dos povos ''bárbaros'', nas quais se incluem as dos reinos visigóticos de Toulouse (418-531) e de Toledo (554-711), para examinar sua progressiva particularização na Península. Uma transição pela grande estação da arte irlandesa, entre os séculos seis e nove, leva a um outro ensaio sobre Aachen, isto é, sobre o coração da arte carolíngia, de autoria de Mario D'Onofrio. Joachim E. Gaede analisa a arte carolíngia por excelência, a iluminura, detendo-se em alguns dos mais extraordinários monumentos produzidos pelos ''scriptoria'' de Aachen, Tours, Reims, Saint-Amand. Seguem-se dois textos sobre a arquitetura (Xavier Barral I Altet) e a iluminura (Ulrich Kuder) otonianas, também enormemente instrutivos. Sobrevém um excurso sobre a arte escandinava, isto é, sobre os dois séculos e meio, de 800 a 1050, da magnificência dos Vikings (texto de Else Roesdahl), com a excepcional complexidade de suas gramáticas decorativas. E chega-se enfim à emergência do mosaico bizantino, pavimentar e parietal, que se expande por toda a Europa para atingir seu ápice, desde o final do século 11, na Itália normanda. Um artigo final sobre o marfim, de autoria de Danielle Gaborit-Chopin, constitui mais uma excelente introdução a este que é um dos mais representativos capítulos da arte decorativa medieval.
A universidade brasileira conta doravante com um instrumento de excepcional qualidade didática e científica para seus cursos de história e história da arte medieval. Mas sobretudo o público cultivado em geral saberá onde ir buscar uma leitura, certamente introdutória, mas não isenta de interesse para o especialista, que lhe facultará uma bela visão da civilização artística do Ocidente medieval.

Nota:
1. A primeira edição alemã é de 1948. A primeira brasileira é de 1957 (Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro); a segunda é de 1996 (Edusp-Hucitec).

Luiz Marques é professor de história da arte na Universidade de Campinas (Unicamp)

Folha de São Paulo

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