sábado, 18 de julho de 2009

Antropologia da ficção


Antropologia da ficção
MARCOS MAZZARI
Elucidar antropologicamente o fenômeno literário é o ambicioso objetivo a que Iser se lança em ''O Fictício e o Imaginário'', cujo original alemão é de 1991. Obra de plena maturidade, vem consolidar a eminente posição que seu autor ocupa no âmbito dos estudos literários do pós-guerra já que, ao lado de H.R. Jauss, é o principal representante da chamada Escola de Constança, onde se desenvolveu a ''estética da recepção'', cujo marco pioneiro é o opúsculo de Jauss ''A História da Literatura como Provocação à Teoria Literária'' (1967), e a ''teoria do efeito estético'', fundamentada sobretudo em ''O Ato da Leitura'' (1976), outra obra de Iser já editada entre nós.
Conceitos como ''leitor implícito'', ''estrutura apelativa do texto'', ''indeterminação'', ''espaços vazios'', ''constituição de sentido'' podem por si sós sugerir a fecundidade dessa ''teoria do efeito'' que, se não inova propriamente em termos de história literária ou de uma sociologia da literatura (uma vez que não se alicerça nos ''juízos históricos'' de leitores empíricos, como procede a ''estética da recepção''), abre ampla perspectiva para um confronto crítico com os textos, e mesmo aqueles que ainda não se integraram no contexto histórico de tradição e exegese.
Demonstrando a coerência de seu pensamento estético, Iser agora retoma e desdobra linhas teóricas traçadas ou apenas esboçadas na obra anterior, como se depreende, entre tantas passagens, desse trecho extraído do prefácio ao ''Ato da Leitura'': ''Se é correto que através dos textos algo nos acontece, e que aparentemente não podemos nos separar das ficções _independentemente do que pensamos delas_, surge a pergunta pela função da literatura para a 'constituição humana'. As idéias aqui desenvolvidas sobre o efeito estético lançam apenas um primeiro olhar a esse objetivo antropológico das análises literárias. Sua função é, no entanto, chamar a atenção para esse horizonte já aberto''.
Os vínculos que o novo livro estabelece com a obra anterior _e sobretudo a ''teoria do efeito estético''_ resultam assim do objetivo de elaborar a heurística específica para uma antropologia literária. Contudo, se na passagem acima Iser parece apontar para planos distintos ao falar em literatura e constituição humana, agora propõe que a heurística almejada se apoie ''em disposições humanas que são ao mesmo tempo também constitutivas para a literatura''. O ''fictício'' e o ''imaginário'' seriam então as vigas-mestras dessa construção teórica preliminar, uma vez que se manifestam na vida real e, no texto literário, fundem-se num amálgama organizado pela ''estrutura do jogo''. Mas antes de tudo é preciso considerar que Iser postula substituir a relação opositiva entre ficção e realidade, baseada numa espécie de ''saber tácito'', por uma relação mais complexa e nuançada entre o fictício, o real e o imaginário. A substantivação dos adjetivos não é fortuita: exprime a intenção de apreender ''qualidades'' de um objeto que se constrói a partir de relações recíprocas, substituindo-se a determinação de posições (ou oposições) fixas pela busca de relações em constante dinamismo.
De forma sumária, pode-se dizer que o ''real'' designa o mundo ''extratextual'' (podendo englobar outros produtos linguísticos), que constitui os campos de referência do texto; o ''fictício'' é entendido eminentemente como ''ato intencional'', definição que se elucida pelo contraste com o outro elemento da tríade, para cuja designação Iser prefere afastar-se de termos já carregados de tradição, como fantasia, imaginação, faculdade imaginativa: com o ''imaginário'' entende-se algo difuso, fluido, informe, que na vida real penetra em nossa experiência sob forma de sonhos, devaneios, alucinações.
A fundamentação das ''perspectivas de antropologia literária'' leva Iser, nos capítulos centrais, a examinar o fictício e o imaginário numa dimensão histórico-filosófica. O terceiro capítulo concentra-se em quatro modelos teóricos (F. Bacon, J. Bentham, H. Vaihinger, N. Goodman) que explicitariam paradigmaticamente como manifestações e formas diversas da ficção são condicionadas por necessidades históricas diferenciadas. Mas uma vez que, no livro em questão, o fictício só possui relevância à medida que interage com o imaginário, abre-se em seguida uma perspectiva não menos ampla para a discussão da história que o respectivo conceito _cuja terminologia sempre oscilou entre ''imaginatio'' e ''phantasia''_ registra na tradição ocidental. Coleridge, Sartre e Castoriadis constituem aqui as principais referências; em plano secundário, Iser aborda outras vertentes teóricas, estabelecendo uma interessante aproximação entre Hume e Goethe, à base das precauções que ambos tinham em relação à imaginação.
Só pelos nomes citados já se terá percebido a densidade teórica que impregna as páginas desse livro. De fato assim é, mas para amenizar os esforços da leitura, o segundo capítulo descortina um amplo panorama da bucólica renascentista, para Iser um discurso privilegiado, uma vez que ''tematiza o fingimento e contribui, desse modo, para que a ficcionalidade literária se faça perceptível''. Transcendendo gêneros e com duração incomparável na história da literatura (o nosso arcadismo serviria aqui de exemplo), a bucólica oferece o contexto adequado para a observação do ''ato de fingir''; na teoria de Iser, este significa sempre transgredir fronteiras, num movimento que se dá tanto como ''irrealização'' do mundo extratextual, repetido em signo para outra coisa, como ''realização'' do imaginário que, engastado no fictício, perde seu caráter difuso e indeterminado.
Ainda no campo bucólico, em especial no romance pastoril de Montemayor, Sannazaro e Sidney, Iser antecipa o estudo do procedimento que no sexto (e último) capítulo irá dar contornos mais nítidos às perspectivas de antropologia literária: trata-se da ''encenação'' que, no espaço lúdico do texto, evidenciaria ''a extraordinária plasticidade dos seres humanos, pois, precisamente porque parecem não possuir uma natureza determinável, podem expandir-se no raio praticamente ilimitado dos padrões culturais''. Isto equivale a dizer que somente pelo ''medium'' da literatura o homem confere expressão, ainda que mediante ''simulacros'', à sua posição ''excêntrica'' (ser, mas não possuir a si mesmo), vivenciando possibilidades não apenas inesgotáveis como também inacessíveis à consciência e a qualquer forma de conhecimento. Entre estas Iser inclui as ''experiências de evidência'' que, mesmo se caracterizando por uma certeza instantânea (e representando assim o contrário da inacessibilidade), seriam igualmente impermeáveis à consciência: ''O amor é talvez a experiência mais intensiva de evidência, fornecendo, porém, ao mesmo tempo, o tema básico da encenação literária''. Sendo assim, encenações literárias se oporiam às profecias religiosas e aos mitos etiológicos, empenhados em ocupar maciçamente os pontos cardeais da existência, início e fim, enquanto àquelas seria intrínseco o fato de que tudo o que ''despertam'' em imagem não faz senão descortinar uma visada transitória ao ''inacessível''.
A apresentação da encenação como ''categoria antropológica'' vem precedida, neste capítulo de fecho, de uma instigante discussão do conceito de ''mimesis''. Também aqui a argumentação tem o seu ponto de partida em Platão e Aristóteles, mas a perspectiva antimimética de Iser o faz acentuar, já nessas reflexões seminais, a idéia de ''performance'', que redimensiona as concepções tradicionais de imitação. Assim, o leitor logo depara com um texto do sofista Filostrato, a quem já Gombrich atribuíra a mais profunda reflexão sobre ''mimesis'' realizada na Antiguidade. Iser não apenas encampa esse juízo, como também procede a uma densa síntese das concepções estéticas de Gombrich e em seguida de P. Ricoeur e T. Adorno, para demonstrar como o papel da ''performance'' se acentua à medida que a referência da representação vai se tornando cada vez mais indistinta.
O projeto de lançar as bases para uma antropologia literária autônoma faz desse livro sobre o fictício e o imaginário, sobretudo em seus trechos mais especulativos, uma leitura envolvente. Talvez por isso mesmo seja tanto mais necessário acolher criticamente as hipóteses desse discurso da encenação, da performance, do ludismo. Isto significa ainda refletir sobre os limites do modelo teórico de Iser: este pode aplicar-se à bucólica, ao ''Tristram Shandy'', de Sterne, ou ainda a Joyce e Beckett, que são as suas grandes referências. É nítida, aliás, a preferência de Iser, na literatura mais recente, pelos textos herméticos, que ''exibem uma dinâmica rica em turbulência que fascina à medida que se trata de descobrir as 'regras' segundo as quais tal jogo do texto se realiza''. Mas, em relação a muitos outros escritores (e os exemplos aqui se multiplicam), seria tarefa das mais problemáticas pretender demonstrar que se valem de encenações literárias para dar expressão à descomunal ''plasticidade'' do substrato humano ''excêntrico'' e, assim, presentificá-lo mediante ''simulacros''.

Marcos Mazzari é doutor em germanística pela Universidade Livre de Berlim e professor de teoria literária na USP.

Folha de São Paulo

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