sábado, 18 de julho de 2009

Inteligência em Evolução


Oito respostas diferentes
MARCOS BARBOSA DE OLIVEIRA
O título original desta coletânea de artigos provenientes de uma série de palestras realizadas no Darwin College, Cambridge, em 1992, é ''What is Intelligence''. Com que resposta o leitor fica, ao término de sua leitura? Com algum exagero, pode-se dizer, não com uma, mas com oito respostas diferentes _sendo este o número de artigos do volume. Tal constatação implica um questionamento do próprio conceito enquanto componente de qualquer teoria que se pretenda científica.
Uma das contribuições mais interessantes, ''Inteligência em Evolução'', de N. Mackintosh, enfatiza este ponto, chegando a uma conclusão bem radical, que o autor expressa candidamente nas seguintes palavras: ''Eu poderia arguir de modo bem convincente que deveríamos evitar todo uso do termo 'inteligência'. Mas isto poderia colocar-me em dificuldade com outros colaboradores do presente livro''. O artigo versa sobre as capacidades cognitivas dos animais, e começa chamando a atenção para o fato de que a maioria das pessoas não acha nada de errado em perguntas do tipo: quais são mais inteligentes, os pássaros ou os macacos? Embora possa haver divergências sobre os detalhes, por exemplo, se os cães são mais ou menos inteligentes que os gatos, também parece razoável estabelecer uma hierarquia em que o Homo sapiens vem no topo, seguido do chimpanzé, dos outros macacos, de cães e gatos, depois cavalos, e assim por diante. O pressuposto nos dois casos é que a inteligência é uma capacidade simples, que varia apenas em grau de espécie para espécie. Não existe entretanto método algum para aferir diretamente a inteligência concebida dessa maneira; o que os pesquisadores podem fazer é apenas testar o desempenho dos animais diante de problemas particulares e estudar as capacidades cognitivas também particulares subjacentes ao desempenho.
Pode-se sugerir que inteligência é o conjunto, a somatória de tais capacidades; a questão é se alguma vantagem advém de tal operação. Segundo Mackintosh, nenhuma; a popularidade da concepção de inteligência decorrente dela seria antes fruto de uma postura antropocêntrica, que tende a avaliar as outras espécies apenas segundo o grau em que elas seriam inferiores a nós.
Diante da multiplicidade de componentes possíveis, uma alternativa consiste em postular a existência de diferentes tipos de inteligência, como faz Gardner com sua bem conhecida teoria das inteligências múltiplas. A contribuição de S. Arom, ''A Inteligência na Música Tradicional'', se por um lado exemplifica essa estratégia, por outro serve para mostrar suas limitações. A inteligência musical é um dos sete tipos relacionados por Gardner, e o problema é a falta de critérios: se postulamos uma inteligência musical, por que não uma inteligência cinematográfica _ou culinária, ou filatélica? A música tradicional estudada no artigo é a dos povos africanos ao sul do Saara, especialmente da África Central, que o autor vem pesquisando há mais de 30 anos. Os resultados impressionam tanto pela multiplicidade de funções sociais desempenhadas pela música entre eles, como por sua complexidade no que se refere à afinação dos instrumentos, às estruturas rítmicas etc. Mas o que se ganha considerando toda esta riqueza cultural como manifestação de um tipo de inteligência? Aparentemente nada, pois o próprio termo ''inteligência'', além do título, ocorre apenas uma vez no decorrer de todo o artigo, e mesmo essa ocorrência está longe de ser indispensável.
O grande número de concepções diferentes, bem como a vagueza e outros problemas inerentes a cada uma delas, faz com que a inteligência seja um tema muito fraco enquanto princípio unificador. A qualidade das contribuições desta coletânea é bastante variável e, embora muitas sejam por si só excelentes, as interligações são raras e pouco importantes. Em consequência, o nível de sinergia é baixo, não sendo possível afirmar que cada artigo se beneficie significativamente por ser apresentado em conjunto com os demais.
Alguns dos autores _como Richard Gregory, Roger Schank, Roger Penrose e Daniel Dennett_ são figuras bem conhecidas no campo da ciência cognitiva, o que entretanto não significa que suas contribuições estejam em todos os casos entre as melhores. A de Gregory é particularmente problemática: a primeira parte, em que ele introduz a distinção entre inteligência potencial e inteligência cinética é bastante confusa e tem pouca ligação com a segunda, que trata da percepção visual, especialmente as ilusões de óptica. Foram pesquisas sobre este tema que fizeram a reputação de Gregory, mas o artigo em pauta não acrescenta nada de novo em relação a suas obras anteriores.
''Linguagem e Inteligência'', o artigo de Dennett, corresponde à primeira seção do capítulo 13 de seu livro ''Darwin's Dangerous Idea''. Embora bastante abrangente quanto aos tópicos abordados, e escrito com a verve costumeira neste autor, no que se refere ao tema central, mais comumente designado pela expressão ''pensamento e linguagem'', o trabalho tem pouco de interessante a dizer e, o que é pior, ignora totalmente a contribuição de pesquisadores de outras tradições, como Vygotsky, para ficar com apenas um exemplo.
Penrose trata do pensamento matemático, e seu artigo, um dos mais competentes, é estruturado por uma tese bem definida: a de que esse tipo de pensamento não se reduz a operações computacionais. O polêmico argumento baseado no teorema de Gõdel é discutido na parte final; a nosso ver, é a menos convincente das considerações apresentadas a favor da tese.
A defesa da inteligência artificial é empreendida por Schank em seu trabalho, o mais longo da coletânea, escrito em colaboração com L. Birnbaum. Os argumentos de Penrose porém não são considerados, sendo Searle e Chomsky os alvos da crítica. Outro dos objetivos do artigo é o de estabelecer a relevância da inteligência artificial para a educação. A limitação de espaço nos restringe aqui a um mero registro de opinião: a de que nenhum dos objetivos é atingido, dado o simplismo das análises e a duvidosa validade de muitas das implicações em que a argumentação se baseia.
Bem melhor é o artigo de Butterworth, ''A Inteligência Infantil'', cujo tom predominante é de crítica às idéias de Piaget sobre o desenvolvimento cognitivo, no caso, de crianças bem pequenas. Com base na recapitulação de um grande número de resultados experimentais, são questionadas as teses piagetianas sobre o papel da ação no desenvolvimento cognitivo. Outra das implicações dos experimentos citados é a alegação, a esta altura já bastante familiar, de que o aparecimento de diversas aptidões, em especial as perceptuais, se dá nos bebês em idade muito inferior à postulada por Piaget.
E, para terminar, aquele que é também o último trabalho da coletânea: ''Entendendo a Compreensão Verbal'', de Dan Sperber. Sperber é o autor, juntamente com Deirdre Wilson, do influente ''Relevance - Communication and Cognition'', publicado em 1986. O artigo constitui um prolongamento das idéias do livro, e sua tese principal é a de que mesmo as interações verbais mais simples envolvem alguma forma de inteligência em grau muito mais elevado do que se poderia supor. Um exemplo a que o autor sempre retorna é o da afirmação ''É tarde'', que vai recebendo interpretações cada vez mais complexas ao longo do texto. Na etapa final, Sperber sustenta que a atribuição de uma intenção comunicativa a alguém envolve uma meta-representação de quarta ordem; dita por Carol a John (os dois personagens envolvidos nos exemplos) em um determinado contexto, ''É tarde'' é corretamente entendida por John na medida em que ele concebe o seguinte pensamento: ''Ela quer que eu saiba que ela pretende fazer-me acreditar que está na hora de ir para casa''. O fato de esta complexidade passar despercebida na psicologia leva Sperber a concluir com uma pergunta: ''São os humanos inteligentes o bastante para saber quão inteligentes eles são?''.
A tradução, se não é das piores tendo em vista o baixo padrão que prevalece em nosso país, ainda assim deixa a desejar. Um número considerável de frases tem sua compreensão arruinada por falhas inaceitáveis.

Marcos Barbosa de Oliveira é professor da Faculdade de Educação da USP.

Folha de São Paulo

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