sábado, 18 de julho de 2009

Três mulheres


Três mulheres
CLAUDIA R. CALLARI
A aproximação entre os campos da antropologia e da história, esboçada em trabalhos pioneiros como ''Os Reis Taumaturgos'', de Marc Bloch (1924), se efetivou decididamente com a chamada terceira geração da Escola dos Annales, sobretudo a partir do final da década de 70. Influenciados pela ''antropologia simbólica'', os historiadores desde então têm se voltado para o estudo dos gestos, dos mitos, das crenças mágicas e dos elementos cotidianos, procurando esquadrinhar práticas culturais relegadas pela historiografia tradicional. Desde então esse casamento não deixou de render bons frutos e, extrapolando a historiografia francesa, bafejou, de maneiras distintas, os trabalhos de Carlo Ginzburg, na Itália, Peter Burke, na Inglaterra, e Robert Darnton e Natalie Davis, nos EUA, para lembrar alguns dos nomes mais conhecidos do público brasileiro.
''Nas Margens'' é o terceiro trabalho de Davis publicado no Brasil. Antes dele vieram ''O Retorno de Martin Guerre'' (1987) e ''Culturas do Povo'' (1990), ambos pela Paz e Terra. ''O Retorno de Martin Guerre'' destaca-se pelo seu percurso incomum: inicialmente roteiro de filme elaborado pela própria Davis, superou os limites da linguagem cinematográfica e acabou por se transformar em trabalho acadêmico; ''Culturas do Povo'', na realidade sua primeira obra, publicada nos EUA em 1975, reúne um conjunto de ensaios em que são esmiuçadas diversas experiências culturais do povo francês _camponeses, artesãos e arraia miúda urbana_ no século 16.
Em ''Nas Margens'' Natalie Davis nos traz a história de três mulheres do século 17: Glikl bas Judah Leib, uma judia de Hamburgo; Marie de l'Incarnation, mística que se torna ursulina em Tours, mas troca a segurança da Europa pelos desafios de fundar um convento no Canadá; e Maria Sibylla Merian, pintora e entomologista protestante de Frankfurt, que se instala aos 52 anos, acompanhada unicamente por sua filha, no Suriname, onde produz sua obra.
Qual seria o denominador comum entre essas três mulheres, portadoras de experiências tão diversas e que, além disso, nunca se encontraram, a não ser no ousado prefácio do livro (ousado sim, pois Davis subverte a lógica do discurso científico e acadêmico, colocando-se como autora que conversa com suas personagens, cruzando os limites que separam a narrativa histórica da ficção)?
Não é necessário esperar pela conclusão para intuir a resposta _aliás, sugerida no título: todas as três moveram-se com desenvoltura dentro de um universo em que lhes eram dadas restritas possibilidades de ação. Em comum também possuíam o amor incondicional à palavra: Glikl escreveu para os filhos sua autobiografia, em que se mesclam aos fatos pessoais fábulas e conselhos; também Marie de l'Incarnation deixou um relato autobiográfico para seu filho, em que a tônica é a questão religiosa; Sibylla Merian foi a única que não produziu um texto biográfico, mas em sua obra, na qual se destaca ''Metamorfose dos Insetos Surinameses'', pode-se entrever algo de sua personalidade. Principalmente, a história dessas três mulheres não pode ser dissociada de suas experiências religiosas, que lhes forneceram o suporte cultural em que seriam construídas suas visões de mundo.
Embora o trabalho esteja alicerçado sobre uma estrutura simples _cada capítulo é consagrado ao estudo de uma dessas mulheres_, à medida que o texto avança a autora vai tecendo sutis comparações entre as que já foram enfocadas, impossibilitando a leitura aleatória dos capítulos. Com extrema habilidade e fina erudição, Davis manipula uma documentação eclética, complementada aqui e ali por outras fontes, como correspondência pessoal e dados esparsos fornecidos por contemporâneos. Outro ponto forte do seu trabalho é a delicadeza com a qual se desloca do universo pessoal para o global. Em nenhum momento as experiências individuais existem fora do quadro social e cultural que as engendra, sem se pretenderem, por outro lado, típicas ou representativas. Impossível visualizar com clareza Glikl sem ter em mente a situação dos judeus europeus na época moderna (o que talvez lhe assegurasse uma posição ainda mais restrita às franjas da sociedade). É só mediante esse enquadramento que essas mulheres emergem do passado, tomando contornos definidos.
Por trás da malha narrativa tecida pela autora _ela própria uma hábil contadora de histórias_ se depreende um arguto senso de interpretação. As premissas teóricas estão dissolvidas ao longo do texto e, aplicadas ao estudo de caso, rendem algumas das mais belas passagens do trabalho. Penso particularmente na identificação do imbricamento das diversas tradições que compõem os relatos de Glikl, apropriadas e retraduzidas para o seu contexto; também na acomodação entre crenças européias e ameríndias a partir dos textos da ursulina Marie de l'Incarnation; e ainda no diálogo estabelecido por Merian com a realidade cultural sul-americana. Trata-se, em suma, de um belo livro, que, longe de ser um manifesto feminista, mostra como três mulheres diferentes criaram estratégias possíveis de sobrevivência nas margens da sociedade e, por isso mesmo, muitas vezes acabaram cruzando fronteiras.

Claudia Regina Callari é doutoranda em história social na USP.

Folha de São Paulo

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