sábado, 18 de julho de 2009

Um tiro de revólver num concerto - Stendhal


Um tiro de revólver num concerto
RENATO JANINE RIBEIRO
Poucos autores modernos tiveram, como Stendhal, o impacto retardado de uma bomba-relógio. Menino, vibrava com a Revolução Francesa e imaginava seus inimigos pessoais, a começar por um pai detestável e detestado, punidos como o rei e a tirania. Moço, lia na Biblioteca Nacional os críticos da superstição e do despotismo com a ambição de se tornar o maior teatrólogo do século que se iniciava: pretendia escrever peças de teatro republicanas.
Mas todo esse sonho de glória imediata ruiu. Sentiu, pelos seus 30 anos, que não era muito mais que um diletante; que gostava da Itália, da arte, do amor (sem muito sucesso neste último); e que, fama mesmo, não teria. Seus livros vendiam pouco, e se resignou à idéia de que somente seria lido depois de morto. Algumas de suas obras dedicou ''to the happy few'', a seus raros leitores. Exultou quando Balzac elogiou a ''Cartuxa de Parma'' e levou tão a sério as sugestões do romancista já consagrado que tentou, sem grande êxito, incorporá-las ao livro.
As ''Crônicas Italianas'' são uma obra menos conhecida, embora esplêndida, de Stendhal. São algumas narrativas, baseadas na história italiana ou evocando-a, que seu parente Romain Colomb reuniu depois de sua morte. Algumas o autor tinha publicado numa revista ou noutra. Outras são inéditas, e três, incompletas. O interesse central está naquilo que Stendhal chama de ''energia'' e que pulsa mais na Itália que na França, mais nas classes baixas que nas altas e mais no século 16 do que ''hoje'', isto é, no 19 (e, por que não, no 20).
Talvez não haja tema tão stendhaliano quanto o da ''energia''. Tem a ver com o desejo, a impulsividade, o entusiasmo. Mas consiste mesmo é na capacidade de pôr os desejos mais fortes, que dizem respeito ao amor e aos ideais de liberdade (e portanto a duas formas de entrega de si), à frente das paixões covardes e mesquinhas, as que se referem à segurança, ao medo, à ambição e à ganância. Em todas as obras de Stendhal aparece essa oposição. A qualidade de Julien Sorel e da sra. de Rênal, no ''Vermelho e o Negro'', de Fabrício e da duquesa Sanseverina, na ''Cartuxa'', está em descartarem, por amor ou convicção, o que é vantagem material ou medo. Nas ''Crônicas'', o mesmo se dá.
Desde o começo lemos uma nostalgia: antes de mais nada, pela Itália dos ''condottieri'', em que ainda não existia o vício moderno por excelência, a hipocrisia, que é essencialmente um uso covarde da palavra. Então se matava por paixão (acrescento que se matava mais até por honra, mas esta, ou sua ilusão, não tem valor positivo para Stendhal). Porém, embora sejam do século 16 a maior parte das histórias, e Stendhal diga, no início da ''Cartuxa'', que depois disso a dominação estrangeira fez decair a península, a Itália mesmo recente continua valorizada, como país ''quente'', passional, acima da França, mesquinha. Assim a crônica ''Vanina Vanini'', que trata do amor de um carbonaro, passa-se na época mesma de Stendhal. E a célebre frase de uma princesa romana que toma sorvete num dia de extremo calor (''Pena que não seja um pecado!'', em ''San Francesco a Ripa''), lamentando que só falte o sacrilégio para o prazer ser completo, dataria do século 18.
O que quero assinalar com isso é que, se a Itália tem para Stendhal a importância que com razão Luiz Costa Lima frisa em seu prefácio, o decisivo em nosso autor é a questão da ''energia''. A seus olhos, o valor da península está em portá-la em alto grau. Mas a mesma energia se encontra nas classes pobres francesas de seu tempo (é só do quarto andar, onde moram os pobres, que as parisienses se jogam por amor). Ou em Julien Sorel, que já tem a absolvição combinada, mas, ao perceber que os jurados o olham com desdém, decide fazer um discurso político _que lhe traz a pena de morte... Morrer é pouco para quem tem energia. Nenhum dos heróis de Stendhal receia a morte, e nas suas obras a violência fatal, privada ou de Estado, aparece com frequência.
Em outras palavras, a modernidade é perda da energia. Há espírito mais nietzschiano que este? Mas não fica só nas marcas que deixou em Nietzsche a capacidade de Stendhal para vencer a barreira do tempo. Quem lhe deve muito, mas raramente confessa o débito, é a história das mentalidades. Porque nos três ou quatro prefácios que escreveu para esta obra, e na abertura da maior parte das crônicas, ele articula os sentimentos com a política.
A matriz é constante: a energia é maior quando a opinião alheia pesa menos. A par dos crimes e da violência, que ele não aprova, havia (há?) na Itália um vigor bem maior que o da França ou dos EUA. A partir disso, Stendhal tece as observações mais refinadas. Gosto em especial do que diz sobre D. Juan, no início da crônica sobre ''Os Cenci'' (história, aliás, retomada no teatro por Gonçalves Dias e Artaud). Afirma Stendhal que essa personagem só foi possível após o cristianismo, porque com este vieram ao mundo o vale de lágrimas e a hipocrisia.
Na verdade, se Stendhal, com toda a ênfase que põe no amor apaixonado, não é romântico, é porque a paixão por alguém (ou pela pátria e a liberdade) serve de excelente revelador da energia. O amor em si mesmo não é o que conta para nosso autor, nem a beleza, mas aquilo que ele prometa, e que numa passagem pouco compreendida de ''Do Amor'' se chama de ''felicidade''. Ora, onde se encontra a energia, quais são as condições sociais e históricas que a produzem? ''That's the question''.
Tomemos, por exemplo, a sua França. Na semi-autobiografia a que chamou ''Vida de Henry Brûlard'', vemos que a Revolução Francesa trouxe, ao menino que tinha seis anos ao cair a Bastilha, a linguagem que permitiu articular sua raiva ao pai e ao padre com a história que rondava na praça defronte de sua casa. Quantos têm a oportunidade de dispor de uma linguagem quase a mesma para pensar a vida pessoal e o mundo, os afetos e a política? Conhecemos, em nosso tempo, muitos que subordinaram a compreensão de sua vida a um jargão político pronto; não é isso o que fez Stendhal.
Sua questão é unir o anseio de liberdade ao de uma vida sem hipocrisia e opressão. Essa aliança não é fácil. Passado o entusiasmo revolucionário, a liberdade que restou à França, à Inglaterra, aos EUA se revelou mesquinha. Já a Itália, tão apaixonada, não conhecia a liberdade. Exigiria a energia apaixonada uma certa burrice? E, por outra, seria o parlamento incompatível com a honestidade dos afetos? O império da lei reforçaria a mentira entre os homens? Estas perguntas são mais pertinentes do que nunca, hoje, quando a vitória de um dos campos, na Guerra Fria, faz soar como fim da História um regime que não é o da verdade afetiva (O outro campo não era melhor, lembro).
Temos, com isso, um autor singular, que pensa na política enquanto fala de paixões (dizia ele que a política num romance era um tiro de revólver num concerto; mas, como amava Rossini, que certa vez fez os músicos baterem o arco do violino contra o porta-partituras, penso que não odiasse tanto o ruído na música). Sua maior preocupação, a felicidade, não é só individual: conecta o amor a uma pessoa com o da verdade, e esta exige o fim da superstição e, com ela, de toda opressão. Sua Itália somente se entende neste quadro.
Três palavras sobre a tradução. Primeira, e principal: é elegante e correta. Sebastião Uchôa é de nossos melhores tradutores. Mas isso não me impede de anotar dois problemas. Um é que provavelmente ele terá usado uma edição francesa à qual faltem certas palavras ou passagens que atestam a ironia, ou sarcasmo, de Stendhal. Por exemplo, na pág. 258, em ''Suora Scolastica'', sumiram a referência ao rei de Espanha como ''tolo'' e à sua noiva como tendo sido encontrada ''num celeiro''.
Mais sério: Stendhal diz no início da primeira crônica que ''temos as idéias mais falsas'' sobre os bandidos italianos do século 16. Acrescenta: ''Pode-se dizer, em geral, que esses bandidos constituíam a oposição contra os governos atrozes que, na Itália, sucederam-se às repúblicas da Idade Média''. A observação é genial: antecede em século e meio a célebre tese de Hobsbawm dos ''Bandidos'' como oposição social. Mas, infelizmente, em vez de ''pode-se dizer'', está traduzido ''diz-se'', o que faz pensar que Stendhal critica esse dizer, ao invés de assumi-lo como seu.
Enfim, último problema: nenhuma das notas de Stendhal aparece nessa edição _e são importantes. É uma lástima, ainda mais sendo esta uma edição cuidadosa, elegante, promovida por uma editora universitária que nos últimos dez anos se firmou como uma das melhores que temos.

Renato Janine Ribeiro é professor de filosofia na USP e autor de vários ensaios sobre Stendhal.

Folha de São Paulo

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