JOÃO SAYAD
Os editores de ''praga'' a definem com uma revista política, de intervenção. A revista tem um subtítulo _''Estudos Marxistas''. Para fazer esta resenha, tive muita dificuldade em defini-la. Será que rejeitaria um bom artigo de crítica ou contestação a um dos seus autores selecionados? Não. Não acho que é política neste sentido. Será que se considera política por não aceitar para publicação um texto econométrico? Mas a Sociedade Brasileira de Econometria aceitaria um texto sobre marxismo? A revista tampouco se restringe a estudos marxistas.
Os textos publicados nos três primeiros números _artigos, entrevistas ou mesmo inéditos, como as cartas entre Marcuse e Adorno_ têm como denominador comum a visão crítica da sociedade capitalista. Nos tempos em que vivemos talvez seja a escolha dessa linha editorial que justifique a autodefinição da revista como política.
O número três traz trabalhos de Chesnais sobre economia, Dalmo Dallari sobre o Estado de direito no governo FHC, um estudo sobre pobreza e política social de Lessa, Salm, Soares e Dain e um artigo de Eugênio Bucci sobre televisão e ideologia.
Se pudesse editar uma revista, jornal ou livro, escolheria apenas autores que escrevem como Otto Maria Carpeaux nesse número três ou que falam e escrevem como Antonio Candido _entrevistado no número um.
No Brasil, como na França, temos intelectuais e acadêmicos que são difíceis de compreender. Carpeaux e Candido são a exceção brilhante entre nós.
A minha competência me restringe a resenhar dois artigos. O primeiro, de Chesnais, não podia ser mais oportuno neste mês de crise financeira.
Chesnais questiona Hirst e Thompson (''Globalization in Question''), para quem a idéia de globalização seria um ''mito'' por várias razões: (1) a internacionalização atual não é inédita nem em volume nem em abrangência, quando se considera por exemplo o período 1870-1910; (2) as multinacionais realmente globais são muito pouco numerosas, tendo a maior parte dos grupos industriais uma forte base nacional; (3) os investimentos diretos no exterior estão concentrados entre países da tríade (EUA, Japão e Europa), sobrando apenas investimentos menores para o Terceiro Mundo; (4) a concentração de todos os fluxos (de mercadorias e de capitais) na chamada tríade triunfa sobre todas as demais formas de mundialização; (5) os países da tríade têm ainda a capacidade de controlar, principalmente se se coordenam entre si, mercados financeiros e outros mecanismos econômicos.
Chesnais concorda com (3) e (4). Concorda também com (2), mas, para ele, mudanças qualitativas na gestão e organização das empresas multinacionais criam diferenças significativas entre a economia mundial do período de vigência do padrão ouro clássico em relação com o período atual. Quanto à possibilidade de controlar mercados e política monetária _ponto (5)_, considera-as absolutamente utópicas.
A diferença básica do momento atual de outros momentos da economia capitalista, para Chesnais, reside no poder e importância das enormes instituições financeiras _bancárias e não bancárias. ''As organizações mais importantes voltaram a ser, como no período entre as duas guerras, as que exercem uma 'preferência pela liquidez' na valorização do capital, ou seja, que o valorizam conservando sua forma de capital-dinheiro.''
A economia capitalista teria entrado numa fase depressiva de longa duração da qual somente transformações muito maiores logo após choque considerados externos (crise financeira ou guerra) poderiam tirá-la.
Qual a relevância da semelhança ou não da economia capitalista atual com o período 1870-1914? Se os períodos forem diferentes, o que podemos dizer sobre a fase atual do capitalismo? Chesnais sugere que a atual fase só pode terminar com crise financeira ou guerra, ou seja, com a demonstração forte dos problemas que estamos vivendo. Etchengreen (Golden Fetters) aponta que a crise de 30 começa a acabar com o abandono do padrão ouro. Não apenas porque as taxas cambiais foram alteradas. Mas porque a desvalorização cambial de março de 1933 determinada por Franklin D. Roosvelt, além de estancar a deflação americana, marca o abandono da política de equilíbrio fiscal e austeridade monetária. E portanto o fim da crise de 1930.
Nesse sentido, o período de acumulação financeira poderia ser comparado com o período do padrão ouro, com várias diferenças, apontadas por Chesnais, mas sobretudo com a diferença cambial. Hoje, taxas de câmbio fixas e equilíbrio no balanço de pagamentos não são requisitos do ''sistema'' de intercâmbio mundial. Os países da tríade não enfrentam problema algum pelo desequilíbrio externo. Os países emergentes, por sua vez, procuram o equilíbrio constantemente, ainda que a liquidez dos anos 90 permita prazo mais longo de desequilíbrio do que os prazos concedidos no início do século.
Etchengreen e Chesnais concordam, entretanto, quando apontam a mudança de ''ethos'' ou da visão do mundo da política econômica como marco de novo período ou do fim da crise. O crash das bolsas que acabamos de observar foi acompanhado de declarações brasileiras e internacionais no sentido de aprofundar o modelo, as receitas de reajuste estrutural geradoras da própria crise. Falta sofrimento e crise para que mudemos de idéia.
Esse número três de ''praga'' também traz estudo de Lessa, Salm, Soares e Dain com cuidadosa análise da pobreza e da exclusão social no Brasil, assim como das políticas públicas a ela dirigidas. Mostram que: (1) os empregos criados no período 91-96 superaram em número os empregos destruídos na indústria; (2) o nível educacional dos novos empregados é maior. Mas no comércio e serviço não há exigência de melhor nível educacional. O maior grau de escolaridade decorre antes de serem empregos ocupados por novas gerações com maior grau de escolaridade; (3) prova disto é que os novos empregos criados pagam salários menores do que os destruídos; (4) aumentou a participação das mulheres no emprego, quase em um por um; (5) os mais velhos (30-59 anos) perderam empregos para os mais jovens (até 29 anos).
Em resumo, a reestruturação da economia brasileira redundou na demissão do trabalhador adulto, homem qualificado, relativamente bem remunerado, mas de baixa escolaridade, e na contratação de jovens e mulheres em ocupações de baixa qualificação e de baixa remuneração, mas de maior escolaridade.
As conclusões da análise são desanimadoras: o problema não é a educação. Ao contrário, é preciso estudar mais para ganhar menos em atividades que não requerem o que você estudou. São semelhantes às de Andrew Hacker acerca da economia americana, elogiada pelo alto nível de emprego, relativamente à Europa.
Os ganhos de renda entre os pobres têm como fator mais importante o aumento dos benefícios da Previdência para a área rural. As principais dificuldades que o Plano Real trouxe para a assistência social foi a prática de contingenciar e não executar os orçamentos. Apesar dessas conclusões, o discurso governamental continua apontando na mesma direção: o problema é apenas de São Paulo, precisamos fazer reformas na previdência e gastar mais em educação primária em detrimento da superior.
''praga'' talvez seja uma revista política por apresentar trabalhos e pesquisas totalmente diferentes dos que se lêem e ouvem na retórica oficial, empresarial e mesmo acadêmica que não se cansam de clamar por reformas constitucionais e menos recursos para a universidade. De qualquer forma, professores mais velhos como eu podem dormir tranquilos. Existe nas universidades estaduais de São Paulo um conjunto de novos professores, entre os quais os editores desta revista, capaz de manter o espírito crítico e a capacidade de investigação. Talvez seja impossível erradicar completamente a liberdade de pensar. Será por isso que a revista se chama ''praga''?
João Sayad é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (Governo Sarney).
Folha de São Paulo
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