Guita Grin Debert
Coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu, Unicamp, professora do Departamento de Antropologia do IFCH/UNICAMP e pesquisadora do CNPq. ggdebert@uol.com.br
Declarando que não teve muita sorte na loteria genética, Ilana Löwy abre L' empire du genre com uma das descrições mais densas e penetrantes do que é a discriminação racial. Morena de olhos escuros e cabelos pretos e ondulados, ela conta, no prólogo do livro, com tiradas em que não falta senso de humor, que bastava haver um anti-semita num lugar público, na Polônia do pós-guerra, para que sua aparência, invariavelmente, atraísse observações discriminatórias sobre os judeus.
Conhecemos bem a violência física, moral e psicológica que o racismo produz, levando desde o extermínio de diferentes grupos sociais até o deslocamento de populações por todo o planeta. Menos evidente é a forma pela qual a opressão pode ser interiorizada ou negada pelas vítimas do preconceito.
Os relatos de suas experiências ao longo da infância somados à apresentação de uma bibliografia que indica o interesse recente pela história e cultura judaicas na Polônia oferecem uma nova dimensão à compreensão das dificuldades de ser membro de um grupo minoritário.
Manter secreta a origem judaica é uma possibilidade que depende, em grande medida, da fisionomia e da aparência de cada um, mas é surpreendente a ineficácia das estratégias elaboradas para minimizar os efeitos da discriminação. Mesmo depois da queda do regime comunista, denunciar as origens judaicas de um candidato era uma arma na luta política, que levava alguns deles a agitarem em suas campanhas eleitorais certificados de batismo ou fotos do enterro de suas mães para se defenderem dessas acusações. A inutilidade das tentativas de negar ou minimizar a importância de suas origens acabou por deixar os indivíduos sem uma folha de parreira para cobrir uma dupla vergonha: vergonha de suas origens e da negação de suas origens.
Para minimizar os efeitos da discriminação racial, o poder comunista também declarou que o "problema judeu" deixara de existir na Polônia e que restavam apenas relíquias de anti-semitismo propagadas pelos adversários do regime ou por pessoas incultas. Impediu-se, assim, o debate das relações entre judeus e poloneses no século XX, do significado do Shoah e da violência contra os judeus que se seguiu no pós-guerra polonês, favorecendo a manutenção dos piores estereótipos anti-semitas, mesmo entre os setores mais jovens da população.
Essa ausência de debates e o papel ativo do silêncio na reprodução das desigualdades marcam o tratamento que será dado à questão de gênero neste livro.
Essa volta à dominação masculina é ousada, particularmente no caso da leitora encarregada da resenha ser, como eu sou, antropóloga e feminista. É praticamente um instinto profissional dos antropólogos se precaverem de estranhamentos fáceis e identificações apressadas. Aprendemos que gênero não é sinônimo de diferença sexual, nem de valores e comportamentos que se constituem numa base tida como biologicamente natural. Antes, é uma noção que ganha força quando chama a atenção para as formas específicas que a dominação assume em contextos muito bem determinados. Falar assim da opressão da mulher, mesmo se a referência for as mulheres nas sociedades ocidentais contemporâneas, "educadas e vivendo acima do nível de pobreza", como é afirmado neste livro, é estar atenta à uma generalização excessiva.
A ousadia de Löwy é, no entanto, bem vinda, porque tratar da dominação masculina não é reiterar o discurso da vitimização da mulher que a noção de gênero obrigou as feministas a reverem. O desafio do livro é descrever uma mistura particularmente opressiva que envolve a existência de atitudes discriminatórias e sua negação. É ela que permite a passagem do modo como o anti-semitismo foi vivido na Polônia do pós-guerra à discriminação da mulher, posto que, cada vez mais, torna-se raro encontrarmos pessoas que se dizem, com todas as letras, racistas ou homofóbicas.
O livro propõe, assim, uma reflexão sobre as formas de reprodução da discriminação das mulheres nas sociedades que proclamam forte e em bom som a igualdade entre os sexos.
O modo como o mito da igualdade dos sexos se constrói nas sociedades ocidentais contemporâneas é tratado no primeiro capítulo – "Evidências Invisíveis" –, combinando uma quantidade significativa de dados sobre a desigualdade entre os sexos com a análise de discursos empenhados em mostrar que as mulheres adquiriram um nível de liberdade sem precedentes na história.
O segundo capítulo trata do poder invisível da atração heterossexual na transformação de diferenças biológicas, potencialmente neutras, em instrumentos da dominação. As mudanças nos processos educativos que pregam a igualdade entre os sexos, bem como a liberação sexual dos jovens, mantêm ainda uma assimetria radical, reproduzindo a erotização da dominação masculina e as hierarquias de gênero.
Essa tônica perpassa os dois capítulos finais sobre o mundo profissional e o casal heterossexual: apesar das mudanças em direção a posições que até muito recentemente estiveram barradas às mulheres, a desigualdade entre os sexos não apenas se reproduz, mas tende a ser fortemente negada pelas mulheres ou pelo casal, tornando-se imediatamente visível quando se dá sua separação.
O livro é, no entanto, mais instigante e provocador ao tratar das desigualdades estéticas, do papel das ciências biomédicas na identificação das mulheres e do modo como é feita a produção e a comercialização dos hormônios sexuais.
O mito da beleza ou a tirania dos ideais de beleza na sujeição das mulheres foi explorado por muitas feministas nos anos 70. A novidade é a maneira pela qual a luta das mulheres para melhorar sua aparência passou a ser legitimada. A preocupação com a aparência e o uso das tecnologias de embelezamento têm sido, atualmente, reinterpretadas como uma vitória do feminismo. O novo discurso sobre a beleza considera que as mulheres modernas rejeitam o papel tradicional fundado no sacrifício e no sofrimento, substituindo-o por um egoísmo sadio e pelo prazer do cuidado de si, e passam, então, a ter orgulho de exibir em público seus corpos objeto de desejos. Portanto, longe de serem vítimas passivas de pressões culturais intoleráveis, provam uma capacidade admirável de remodelar sua vida e controlar seus destinos.
É para esse otimismo imprudente com as possibilidades libertárias do uso das tecnologias de intervenções corporais que os capítulos se voltam. A persistência da desigualdade dos papéis estéticos entre os sexos é ilustrada por Lowy através de um levantamento detalhado e crítico da bibliografia sobre três ordens de manifestações que, se aparentemente envolvem a todos, ganham uma trama específica com as mulheres – a cirurgia estética, o controle do peso e as atitudes em relação aos sinais de envelhecimento.
A cirurgia estética permite a aquisição de propriedades e capacidades novas e se inscreve na busca dos humanos para ultrapassar seus limites naturais. A obesidade tem sido descrita como um problema maior de saúde pública e substitui o tabagismo como causa principal da mortalidade prematura nos países industrializados. O medo do envelhecimento e da morte é próprio dos seres humanos, independentemente do sexo, origem e status social. Mas, em todos os casos, o empenho do livro é mostrar que o uso das novas tecnologias tem um efeito muito mais perverso para as mulheres e que ocultar esses efeitos diferenciais é promover a reprodução das desigualdades.
A anorexia é discutida de modo bastante interessante, na medida em que a autora contrapõe as explicações ancoradas no culto contemporâneo à magreza – a anorexia mental como expressão de um sofrimento psíquico de adolescentes frágeis, numa sociedade que transforma a magreza numa virtude suprema e, portanto, um símbolo poderoso do controle social do corpo da mulher –, à idéia da anorexia como recusa da feminilidade – a tomada de consciência do valor diferencial dos sexos e expressão forte do desejo de uma identidade assexuada, uma das formas mais insidiosas de inscrever a hierarquia de gênero na carne.
Da mesma forma, a autora discute o modo como as diferenças entre os sexos foram estabelecidas ao longo da história das ciências biomédicas. Historiadora das ciências, Lowy, com erudição, mostra que elementos cada vez mais numerosos do corpo humano foram progressivamente sexualizados. Na renascença eram somente os órgãos reprodutivos. Com os desenvolvimentos da zoologia e da anatomia comparativa nos séculos XIX e XX, a sexualização atingiu partes do corpo que aparentemente nada tinham a ver com a sexualidade, como o esqueleto, o sangue e o cérebro. No século XX, a diferença entre os sexos é transportada às moléculas que circulam no sangue, aos cromossomos (com a distinção entre a fórmula cromossomática masculina XY e a feminina XX) e, mais recentemente, com os genes. Todas as tentativas de bicategorização pelo sexo se defrontaram com a impossibilidade de encontrar categorias exclusivas e essa é uma das razões que levam as pesquisadoras feministas a concluíram que as práticas científicas não lançavam luz às diferenças sexuais, mas as fabricavam, sexuando o biológico de modo dicotômico e segundo as oposições tradicionais de gênero.
A importância atribuída às glândulas sexuais no desenvolvimento da personalidade, a emergência da ginecologia como especialidade médica, a colaboração estreita entre pesquisadores e a indústria farmacêutica no desenvolvimento dos hormônios sexuais, que se transformam em substância disponíveis no mercado, e a possibilidade de modificar características sexuais secundárias através da administração de doses elevadas desses hormônios não levaram ao questionamento da natureza das diferenças entre os sexos. Da mesma forma, o tratamento dado às crianças interssexuais e à transexualidade, antes de abrir um espaço para o reconhecimento da multiplicidade das formas anatômicas e traços comportamentais, reproduzem a rígida dicotomia entre homens e mulheres.
Lowy, com razão, considera que as críticas feministas raramente chamaram a atenção para o papel central da atribuição dos hormônios sexuais na vida das mulheres e para a ausência de um papel equivalente aos hormônios sexuais masculinos. Pelo contrário, ela mostra como as feministas tendem a aplaudir as ciências biológicas vendo indícios de libertação na contracepção hormonal, no tratamento da síndrome pré-menstrual, na assistência médica à procriação e nas terapias substitutivas da menopausa. Esse conjunto de práticas acaba, novamente, por naturalizar a diferença sexual, reproduzindo hierarquias e promovendo a construção do corpo da mulher como um corpo deficiente, em constante declínio e vítima de um envelhecimento muito mais veloz do que o corpo masculino.
Para Löwy, o mito da igualdade dos sexos tem, portanto, uma capacidade enorme de regeneração da dominação masculina. Essa é uma conclusão que tende a fazer tábula rasa das clivagens étnicas, de idade e geração, entre outras, marcando de maneira incisiva as experiências das mulheres e de qualquer outro grupo social nas sociedades contemporâneas. Uma conclusão que acaba, novamente, sexuando o biológico de modo dicotômico e que, de maneira enfática, o livro postula tantos elementos instigantes para sua revisão.
* Resenha do livro de Ilana Löwy, L' emprise du genre – masculinité, féminité, inégalité. Paris, La Dispute/SNÉDIT, 2006. Recebida para publicação em janeiro de 2008, aceita em abril de 2008.
Cadernos Pagú - UNICAMP
Nenhum comentário:
Postar um comentário