quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Beyond Liberal Democracy


Daniel A. Bell - Beyond Liberal Democracy. Political Thinking for an East Asian Context

Antonio Paim *

Princeton University Press, 2006.

O conhecido pensador norte-americano Daniel Bell publicou um livro que pode permitir o aprofundamento do debate acerca da possibilidade de adoção pela China do sistema democrático representativo. Intitula-se Beyond Liberal Democracy. Political Thinking for the East Asian Context. Em sua longa existência (completará 88 anos), Bell elaborou extensa bibliografia dedicada sobretudo às questões políticas. Participou ativamente das discussões sobre os destinos do socialismo, em face da denúncia do stalinismo provinda dos próprios soviéticos. Autor consagrado nos Estados Unidos e em outros países ocidentais, ao longo da década de 90 participou ativamente do diálogo com pensadores do Leste Asiático, tendo publicado diversos textos sobre o tema, inclusive um livro. Convenceu-se de que é imprescindível levar em conta a especificidade da valoração ali vigente. Do contrário, a pregação ocidental cai no vazio ou é francamente recusada.

Bcyond Liberal Democracy parte justamente de um caso exemplar: o do fracasso da visita à China de Ronald Dworkin, outro renomado pensador norte-americano. Os chineses traduziram o livro em que sintetiza as suas doutrinas (Taking Riqhts Seriously) e convidaram-no para presenciar o lançamento na capital e nas principais cidades, quando proferiu conferências. Nestas, pretendeu que o auditório discutisse casos concretos de violação dos direitos humanos, enquanto os presentes desejavam que esclarecesse em que residiria a efetiva diferença entre a valoração chinesa e a ocidental, solicitação a que não atendeu. Diante do seu desinteresse por tal questão, ao comentar o evento, articulistas lembraram as visitas de Bertrand Russel e John Dewey, nos anos 30, acolhidas com entusiasmo pela familiaridade que revelaram com a riqueza milenar da cultura chinesa. Consiste, em suma, num bom exemplo dos equívocos a que pode conduzir a suposição da superioridade da cultura ocidental.

Para bem fundamentar a sua argumentação, o livro desde logo considera de forma exaustiva alguns dos aspectos da milenar tradição do confucionismo. Louva-se sobretudo dos comentários de um dos seus principais discípulos, Mencius, elaborados no século IV a.C., duas centúrias depois do mestre. Em especial, parecem-lhe muito elucidativas as considerações que tece a propósito das guerras justas e injustas. Essas considerações facultariam preciosas indicações quanto à possibilidade de aquisição de uma linguagem apropriada para lidar com a relação entre o Ocidente e a China, notadamente pelo fato de que leva em conta uma situação conflituosa. No período em que Mencius teria escrito esta parcela do desenvolvimento acerca das reflexões de Confúcio, registravam-se guerras intermitentes entre pequenos Estados, situação que na verdade viria a perpetuar-se, preservando grande atualidade. A primeira dinastia unificadora data do ano 221 da nossa era. Invoca também autores dos tempos presentes, com o propósito de demonstrar que é profundamente arraigado o reconhecimento do mérito, que tomará como ponto de partida para o encontro de uma alternativa à pura e simples cópia do sistema democrático representativo do Ocidente. Parece-lhe que a maneira pela qual Samuel Huntington enfrenta a questão leva de modo inevitável a um dilema insolúvel: democracia nos moldes ocidentais ou confucionismo autoritário. Move-o a convicção de que o atual sistema político chinês não é estável.

A tradição confucionista e os direitos humanos

Daniel Bell analisa alguns aspectos da atuação do Ocidente em relação ao Leste Asiático (China, sobretudo): os direitos humanos, a democracia e o capitalismo. Ainda que não seja o caso de passar em revista todas as suas teses, cabe determo-nos, ainda que brevemente, no comportamento das diversas organizações que atuam em prol daqueles objetivos. No caso dos direitos humanos, considerou não só o empenho pelo respeito à liberdade e aos direitos individuais básicos, mas também o posicionamento em face da pobreza e outros tipos de privações. Levou em conta o fato de que, em 2001, a Anistia Internacional admitiu que a concentração de sua atividade nas violações dos direitos civis e políticos ignorava que, em muitos países, a relevância desse tipo de privação é minimizada pela pobreza generalizada — ou pela devastação provocada pelos ciclos de falta de alimentos —, mudando de estratégia, no que foi seguida por outras organizações. Vejamos como apresenta a questão, ainda que tomando por base apenas aquelas situações que nos pareceram mais expressivas.

Segundo Bell, no caso do empenho pela observânciados direitos humanos, o principal erro residiria no caráter inócuo da argumentação que não leve em conta tradições culturais arraigadas. Na China, por exemplo, a simples utilização do termo “direitos humanos” pode ser interpretada como menosprezo da cultura chinesa e a suposição de que louvar-se-ia de valores subalternos. No seu entendimento, a questão central que se tem colocado, perante as entidades ocidentais que atuam na China, diz respeito ao tipo de posição a adotar em face das autoridades governamentais.

A Fundação Ford tem apoiado organização ligada à Universidade de Wuhan que se ocupa de estudar e propor reformas judiciais, desenvolver apoio jurídico a quem se disponha a aceitá-lo para a defesa e garantia de seus direitos e, ainda, pesquisa constitucional de modo a tornar acessível às autoridades a experiência de outras nações asiáticas. O Centro da Universidade de Wuhan tem designado para tal fim, entre os seus membros, as principais autoridades locais. Seus dirigentes reconhecem de público que não poderiam dar curso aos seus projetos sem o apoio da Fundação Ford. Ao mesmo tempo, destacam a impossibilidade de fazer avançar a causa dos direitos humanos sem a colaboração oficial.

Outro exemplo: uma instituição oficial dinamarquesa, que tem apoiado programas que incluem a prevenção do uso da tortura e o tratamento impróprio, pela polícia, na fase processual de presos, declara num de seus relatórios, transcrito por Daniel Bel!, que em Estados autoritários, onde são poucas as organizações não-governamentais locais, voltadas para a defesa dos direitos, a única opção consiste na cooperação com as autoridades. Da experiência colhida, conclui que o discurso ocidental dos direitos humanos em muitos casos é associado à justificativa, usada no passado, para a ocupação colonial, o que suscita reações nacionalistas. Diante desta evidência, as objeções das autoridades a determinadas interferências precisam ser examinadas sem preconceito. A entidade em apreço prefere fazer referência a “conflito de formalidades” que, a seu ver, tem se revelado como “problemas técnicos muito mais que substanciais, e não temos esbarrado em confrontações sérias”.

Naturalmente, semelhante postura está longe de ser consensual. Na visão de Bell, contribui para estabelecê-la o encontro de arranjo institucional apto a combinar o respeito à especificidade de outras tradições culturais e que, ao mesmo tempo, seja capaz de garantir a vigência do respeito aos direitos civis. Justamente a essa circunstância pretende atender a obra de Bell, ao conceber um sistema que não seria simples cópia do modelo ocidental.

Alternativa para as instituições políticas

No que se refere à China, a proposição de Daniel Bell parte do reconhecimento do papel exercido ao longo de sua história pelo que denomina de elite meritocrática. Acredita que, se lhe fosse assegurada uma posição relevante num novo sistema, os dirigentes chineses seriam colocados diante de uma alternativa que não se recusariam a examinar. O pressuposto de Bell consiste em admitir que acabarão por convencer-se de que o quadro atual seria insustentável. A proposição referida acha-se rigorosamente fundamentada, embora talvez coubesse precisar melhor o papel que lhe estaria destinado, o que deixaremos para o fim desta breve resenha. A tradição meritocrática, proveniente do confucionismo, é caracterizada no pormenor, a fim de evidenciar que corresponde a fenômeno que não poderia deixar de ser levado em conta.

Entretanto, é preciso destacar que o confucionismo meritocrático atual teria de enfrentar o dilema oriundo do fato de que as instituições democráticas vigentes no Ocidente não se acomodariam ao papel que têm desempenhado.

Mais precisamente: seria inaceitável, para o Ocidente, reduzir a questão à idéia de Parlamento constituído pela elite, mesmo tornada transparente a escolha de seus membros, a fim de evidenciar que obedeceria criteriosamente ao princípio do mérito, estribado na tradição do confucionismo. Seria preciso detalhar tal posicionamento, uma vez que, de modo algum, incorporaria o elemento popular ao processo decisório, pedra angular do sistema democrático representativo.

Uma solução de compromisso parece-lhe óbvia: Legislativo bicameral, com uma Câmara Baixa democraticamente eleita e uma Câmara Alta segundo os moldes da tradição. E certo que, no autoritarismo que se conhece no Ocidente, os membros dos órgãos constituídos por cooptação — segundo o modelo do Partido Comunista — são escolhidos por critérios que tangenciam aqueles invocados pelo autor. A esse modelo de autoritarismo é que se associa o papel do Partido Comunista Chinês. Bell deseja precisamente matizar essa visão, que lhe parece simplificada, reducionista. O seu empenho consiste em levar-nos, como afirma em um dos capítulos do livro, a “tomar o elitismo a sério”. No caso da China, a valorização do mérito corresponde, segundo afirma, a uma velha tradição amplamente reconhecida. Levá-la em conta seria a forma (realista ou pragmática) de propor alternativa aceitável pelos atuais dirigentes.

Em chinês, a denominação apropriada dessa Câmara Alta seria Xianshiyuan. Literalmente: “Casa da Virtude e do Talento”. No Ocidente, o uso literal dessa expressão seria certamente ridicularizado. Bell está convencido, entretanto, de que tal não ocorreria na China. Parece-lhe que a combinação das duas “fórmulas” atenderia perfeitamente à reavaliação dos valores do confucionismo que presentemente ocorre no Leste Asiático, e não apenas na China. Essa reavaliação objetiva separar o joio do trigo, isto é, elementos da tradição que têm servido para manter certos hábitos que, se favorecem práticas autoritárias, contrariam aquilo a que corresponderia o cerne da questão. Os grandes intérpretes contemporâneos rejeitam expressamente estas idéias: a) a admissão da superioridade dos homens em relação às mulheres; b) exclusão do cidadão comum do processo político; c) enterro dos pais somente após três dias do falecimento, o que equivale a, na prática, disposição de rever hábitos arraigados; e d) a admissão de que o Céu às vezes dita o comportamento dos líderes políticos, princípio que é usado para justificar o autoritarismo de certos dirigentes.

A regra básica que permitiria adaptar a valoração tradicional às novas circunstâncias decorrentes da evolução histórica encontra-se nos Analetos, de Confúcio, e seria a seguinte: o governo tem a obrigação de assegurar ao povo os meios básicos de subsistência e de desenvolvimento moral e intelectual. Em caso de conflito entre as duas ordens de questões, a última tem precedência.

Em síntese, tal é a análise que faz das primeiras questões a que se propôs (direitos humanos e democracia). Mas há, como indicamos, uma terceira (o capitalismo). No desenvolvimento que dá à sua proposição, ocupa um lugar de destaque o entendimento daquilo a que corresponderia o “modelo oriental de desenvolvimento econômico”. Assim, embora nos pareça imprescindível introduzir uma nova componente na argumentação do autor –com vistas ao que incumbiria à Câmara Alta, no sistema proposto —, o mais adequado será seguir a ordem de exposição que estabeleceu. Assim, vejamos em que consiste a singularidade do Leste Asiático no tocante à organização da vida econômica, a que o Ocidente teria de acomodar-se, abdicando de exigir transcrição literal das regras consagradas da economia de mercado.

O capitalismo asiático

A fim de possibilitar o confronto, que considera imprescindível, estabelece as seguintes características do modelo norte-americano que, constituído de empresas pertencentes a acionistas dispersos, baseia-se: 1) num mercado de trabalho flexível, caracterizado pela grande mobilidade interfirmas; 2) num ambiente econômico onde ocorre tanto o rápido crescimento como o desaparecimento de empresas; e 3) numa distribuição de papéis onde os executivos são agentes dos acionistas e responsáveis perante aqueles, e, em face do bom desempenho, são objetos de generosas remunerações. Esse modelo tem revelado achar-se apto a promover a criatividade e a inovação indispensáveis para enfrentar a concorrência num mundo globalizado. Em conformidade com a tradição do direito consuetudinário, a punição exemplar de executivos irresponsáveis, falsificadores de resultados para enganar os acionistas, somente viria a ser estabelecida depois da eclosão dos escândalos da Enron e da Wordcom. Daniel Bell não leva em conta essa circunstância e toma o exemplo dessas empresas como argumento em favor do tipo de intervencionismo aplicado no modelo asiático.

Segundo Daniel Bell, em essência, seria uniforme o modelo de gestão econômica vigente na Coréia do Sul, Japão, Taiwan, Cingapura, Hong-Kong e na China continental. Partilham dos valores herdados do confucionismo, em especial a dedicação à família, à educação, à poupança e ao trabalho árduo. Afirma que o confucionismo informa os hábitos mais caros do homem comum do Leste Asiático, hábitos que têm impregnado as atividades econômicas onde vigoram em alto grau a poupança pessoal e corporativa, a extrema dedicação às firmas como empreendimento coletivo, boa vontade na renúncia ao lazer em favor de longas horas de trabalho. No seu entender, a liderança política asiática também foi influenciada pela tradição legal, justificativa da institucionalização de Estado poderoso, centralizado e ativo, que a si próprio atribui a função de promover o desenvolvimento econômico e as reformas políticas. Bell refere que essas duas principais tradições políticas do Leste Asiático foram batizadas de “confucionismo legalista” por Paik Wooyeal, em tese submetida à Universidade de Hong Kong, ao preconizar que sustentam o modelo econômico vigente.

Bell assinala também as singularidades da política industrial daquele grupo de nações, adiante resumidas. O Estado decide quais indústrias são consideradas estratégicas e estabelece os diversos mecanismos de apoio que irá proporcionar-lhes. Investe diretamente nos projetos que considera essenciais. Exemplo desse tipo de iniciativa é a associação governamental em Cingapura com a Texas do Japão, a fim de instalar empresa de semi-condutores. Grandes empresas vêem-se obrigadas a cooperar com os governos se quiserem investir na região, tal como ocorre no Japão com projetos de pesquisa tecnológica e científica. Não se trata de promover empresas estatais no lugar da iniciativa privada, mas de enquadrá-las no arcabouço esboçado pelo Estado.

Outra característica do modelo asiático é a inexistência de liberdade sindical. Segundo Bell, acha-se difundida a crença de que essa restrição beneficiou o crescimento econômico. Cita-se a ausência de greves e até mesmo da necessidade de negociar características de empreendimentos que poderiam dificultar consecução de seus propósitos. Paradoxalmente, considera-se que essa política contribui para assegurar a igualdade no acesso aos direitos dos trabalhadores. Bell cita um autor (T.S. Pempel, em estudo publicado no Journal of Public Policy) segundo o qual “sindicatos fortes, especialmente nos ciclos iniciais do desenvolvimento, são geralmente bem-sucedidos na obtenção de benefícios diferenciados para os sindicalizados. Ironicamente, a ausência daquelas organizações no Leste Asiático contribuiu para alcançar igualdade de rendimentos à massa de assalariados industriais”. A garantia de emprego no Japão é apresentada como exemplo dos efeitos benéficos dessa política, funcionando sem percalços numa fase de crescimento sustentado. Com a crise da segunda metade da década de 90, no entanto, o governo coreano viu-se na contingência de abrir espaço para os sindicatos nas negociações com o empresariado.

O desempenho das economias do Leste Asiático inclui a acumulação de reservas. Em 1997, as reservas internacionais do Japão alcançavam US$ 217 bilhões, superando os Estados Unidos, a Alemanha e a França. Hong Kong e Cingapura ocupam os primeiros lugares no que se refere a reservas per capita. Esse desempenho tem se revelado essencial em épocas de crise. As empresas do Leste Asiático, por sua vez, apóiam-se em complexa rede de relacionamentos que inclui escolas, casamentos, relações de trabalho e entre contemporâneos da mesma cidade ou região. São também, freqüentemente, de natureza familiar. Para minimizar os efeitos da preferência por familiares no preenchimento de cargos de direção nas empresas, os patriarcas têm se ocupado em assegurar os estudos de seus filhos nas melhores universidades ocidentais.

É consensual entre os teóricos que se consideram herdeiros do confucionismo a opinião de que essa doutrina não se coaduna com o estilo soviético de economia planificada. Entretanto, tampouco poderia ser invocado para justificar a integral liberdade econômica, na medida em que defende valores que justificam restrições ao direito de propriedade. Bell discute longamente esses valores. Parece-lhe que essas restrições decorrem da necessidade de assegurar a redução do número de pobres, bem como de facultar oportunidades ao maior número, de alcançar níveis decentes de existência. A consecução de tais objetivos exige dos governos a efetivação de gastos públicos com educação, em especial nos níveis primário e secundário. Mas também exige que se imponham restrições ao direito de propriedade que possam dificultar a mobilização de tais recursos, do mesmo modo que a obtenção de lucros de forma que violente os princípios morais ilegais. Por certo que a valoração ocidental nada teria a objetar a regras desse tipo. O problema reside em sua aplicação nas condições de Estado autoritário, que é justamente a situação considerada pelo autor.

Algumas questões deixadas pelo livro

Ao resumir o que me pareceu essencial em Beyond Liberal Democracy, parti da convicção de que, em seu livro, Daniel Bell fere a questão central do relacionamento entre o Ocidente e os países asiáticos — tanto os de tradição muçulmana como do confucionismo ou do budismo — e também em relação às nações africanas. Trata-se da difícil tarefa de encontrar arranjos institucionais que, de forma viável, facultem o respeito aos direitos civis e a melhoria da situação das mulheres. Embora à primeira vista esse assunto não nos diga respeito diretamente, entendo que o Brasil deveria assumir suas responsabilidades no caso dos países africanos de língua portuguesa, reconhecendo que têm fracassado as tentativas de imposição do modelo ocidental, apesar de que não nos devamos conformar com a sobrevivência do conflito armado como forma de dirimir divergências — em vez da negociação — ou da ausência de garantias das liberdades fundamentais.

No que respeita aos direitos humanos, acho que Bell torna plenamente convincente ser imprescindível começar pelo claro entendimento da valoração básica da comunidade no seio da qual desenvolver-se-á a ação. E, em vez de contrapor-lhe a.nossa valoração, seria mais prudente seguir o caminho da conciliação. Certamente que não será fácil encontrar argumentos extraídos da própria tradição moral da comunidade, por exemplo, para que seja abolida a prática da mutilação das mulheres. Na nossa visão, trata-se de uma simples barbaridade. Entretanto, por aí, será difícil persuadir a quem quer que seja. Mas não se pode deixar de ter presente que talvez a sua proposição não possa ser generalizada, dado que toma por base uma doutrina altamente sofisticada como o confucionismo, não sendo factível aproximação desse tipo nas demais tradições. Apesar de tudo, parece não haver outro caminho.

Faz sentido, também, sobrepor ao sistema representativo, democraticamente constituído, organismo constituído segundo a tradição local. No berço do sistema representativo, a Inglaterra, a Casa dos Lordes, hereditária e vitalícia, deteve uma grande soma de poderes até anos posteriores à Segunda Guerra. Entretanto, seria preciso bem definir em que consistiriam as atribuições de uma versão local de uma instância como essa. Teria de atuar estritamente no plano moral, com poderes para evitar que regras decididas a partir das paixões e dos interesses possam, de algum modo, perturbar a convivência social. Para tanto, não poderá ter a incumbência da formação do governo, atribuição da Câmara Baixa. Teria de ser-lhe facultada a prerrogativa de dissolvê-la e convocar novas eleições. Pareceu-nos que Daniel Bel! não leva em conta que, em toda sociedade, há uma esfera que não pode ser objeto de barganha. Por reconhecê-lo, Benjamin Constant, sendo seguido por outros pensadores, concebeu estrutura a que denominou de Poder Moderador. De um modo geral, nas sociedades perfeitamente estruturadas, formaram-se de modo espontâneo os mecanismos aptos a dar conta dessa problemática. Esta seria, a meu ver, a justificativa adequada para a constituição do tipo de órgão que preconiza.

Na constituição da Câmara Baixa, estaria o Partido Comunista Chinês disposto a abdicar do monopólio da representação? Ainda que não a aborde especificamente, parece estar convencido de que os dirigentes comunistas — que reconhecidamente têm dado provas de pragmatismo — acabarão por convencer-se de que o modelo atual não tem condições de perdurar.

Outra questão que não fica clara nas suas propostas é a seguinte: até onde deve ir a ingerência do governo no funcionamento das empresas às quais proporciona apoio mediante incentivos ou participação acionária? Se o Estado pode nomear executivos, dispõe também de poder suficiente capaz de preservar a atual condição de Estado mais forte que a sociedade. Embora não se trate de configurar governo democrático representativo nos moldes ocidentais, a nossa experiência sugere que garantias individuais e liberdades básicas não podem sobreviver diante de um Estado que se mantém mais forte que a sociedade, justamente o que tipifica os regimes comunistas, inclusive o chinês, por maiores que sejam as concessões que tem admitido na linha do estabelecimento de economia de mercado. A sociedade precisa dispor daquilo que os americanos batizaram de checks and balances.

Finalizando, não poderia deixar de exaltar o mérito de Daniel Bel! ao se dispor a dedicar preciosos anos de sua vida a avaliar in loco os resultados da tentativa ocidental de convencer os chineses da superioridade do modelo ocidental de convivência política: o sistema democrático representativo. Embora a experiência histórica seja marcada pelo choque de civilizações de que fala Huntington, na verdade não sabemos como se consolidam ou desaparecem as tradições culturais. E esta é a raiz do debate suscitado pela obra de Daniel Bel!, em prol do qual deixo aqui essa modesta contribuição.

Antonio Paim
Concluiu sua formação acadêmica na antiga Universidade do Brasil, atual UFRJ, iniciando carreira acadêmica na década de sessenta, na então denominada Faculdade Nacional de Filosofia, tendo pertencido igualmente a outras universidades. Aposentou-se em 1989, como professor titular e livre docente. Desde então, integra a assessoria do Instituto Tancredo Neves, que passou a denominar-se Fundação Liberdade e Cidadania. É autor de diversas obras relacionadas à filosofia geral, à filosofia brasileira e à filosofia política.
Revista Liberdade e Cidadânia

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