Barry Ames - Os entraves da democracia no Brasil
Antonio Octávio Cintra *
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
Há uns quarenta anos atrás, os estudiosos estrangeiros, sobretudo norte-americanos, dedicados a pesquisar a história, a economia, a sociedade e a política brasileiras, passaram a conhecer-se como “brasilianistas”. Diferentemente de uma geração anterior, constituída de ensaistas, o novo grupo passou pela formação acadêmica sistemática nos melhores centros universitários. Textos de grande interesse, quase sempre inovadores, produto, não raro, de cooperação com colegas e instituições brasileiros, têm sido desde então publicados e têm, sem dúvida, ajudado a compreender o país.
Barry Ames pertence a uma segunda geração de brasilianistas na primeira, teríamos, entre numerosos outros, os historiadores Warren Dean e Thomas Skidmore, os cientistas políticos Alfred Stepan e Philippe Schmitter e o economista Nathaniel Leff— e tem-se destacado por suas interpretações de nossa política, condensadas neste livro.
O foco de Ames são as relações entre os poderes Executivo e Legislativo na Nova República, problemática merecedora, nos últimos quinze anos, de uma copiosa safra de trabalhos, inclusive teses de mestrado e doutorado.
Porém não há convergência nas interpretações desses relacionamentos, senão visões opostas. Um grupo os vê como dificultando sobremodo a governança. Na lógica do sistema de separação de poderes, próprio do presidencialismo, esse grupo enfoca os grandes obstáculos à formação de maiorias sólidas no Congresso, donde a frustraçáo do mandato transformador que, supõe-se, eleições diretas e plebiscitárias do presidente da República conferem. Para evitar a paralisia de decisões, é preciso recurso quotidiano a instrumentos emergenciais, como as medidas provisórias, que deslocam o Legislativo para um papel subalterno na tomada de decisões e deslegitimam a instituição.
Já outros autores apontam para características do sistema, que, não obstante os óbices denunciados pelos primeiros autores, permitem a tomada de decisões com ampla participação congressual. Mencionam os chamados “poderes de agenda” presidencial, em matéria orçamentária, por exemplo, e a centralização dos trabalhos no âmbito do próprio Legislativo, que assegura à maioria governamental o controle sobre a pauta de decisões. Alguns, mais otimistas ainda, vêem as relações entre os poderes como bastante cooperativas, até as medidas provisórias sendo interpretadas como uma relação de delegação entre poderes, mais do que de usurpação.
A interpretação de Ames inscreve-se no primeiro grupo, o dos que vêem a chamada governabilidade como sabotada pelo desenho institucional do país. Diferentemente da corrente “otimista”, atribui ele, como o fazem outros autores, bastante força ao sistema eleitoral brasileiro. Este não induz a formação de partidos ideologicamente coesos e as coalizões, mas dificeis de costurar. Essa interpretaçáo, centrada nos efeitos do sistema eleitoral, é conhecida na literatura como sendo a da “conexão eleitoral”.
Ames seria, entre os autores que se têm debruçado sobre as relações entre os poderes, um dos que com mais vigor defendem o diagnóstico da conexão eleitoral, à brasileira. Para ele, a votação nominal no plenário, da qual os novos estudos têm inferido haver disciplina partidária, é a culminância de negociação, tanto entre os poderes, quanto entre líderes e liderados. Esse processo leva a concessões, modificaçóes das propostas, que a votação nominal final não registra, concessões que podem mostrar muito maior força das bases em extrair benefícios das lideranças e do Executivo em troca de apoio do que o comportamento de plenário, com obediência à indicação de voto pelo líder, deixa entrever. Ames também chama a atenção para o fenômeno das “não-decisões”, ou seja, o Executivo e seus líderes parlamentares deixam de apresentar uma proposta por considerá-la sem perspectiva de aprovação, após soltarem balões de ensaio sobre seu conteúdo ou em rodadas prévias de negociação. Assim, a restrição da análise às votações nominais, para inferir relações de poder, pode estar deixando de fora fenômenos relevantes em que essas relações também estejam presentes.
Note-se, sobre estes aspectos, que não se pode liminarmente condenar que isso aconteça, pois a negociação congressual é parte do processo democrático. O problema é distingüir, nesse processo, o que sejam concessões que resultem em melhor atendimento ao interesse público e o que seja deformação corporativa ou clientelista de uma proposta. Ames não procede, contudo, a essa discussão.
Que as bancadas votem segundo as indicaçóes dos líderes não prova, de acordo com ele, serem os partidos fortes, disciplinados e hierárquicos. Ele os vê como, em boa medida, produtos do sistema eleitoral, que dá muita força ao candidato, em vez de ao seu partido. Portanto, quando um deputado vota de acordo com o líder, esse voto pode estar refletindo coisas diversas, não necessariamente a força e a disciplina partidária.
A aquiescência dos deputados ao encaminhamento partidário pode vir de uma dura negociação entre eles, a liderança e o governo, e não da força partidária a que parecem submeter-se. Certos parlamentares têm maior independência eleitoral com relação ao partido do que outros, são bem votados em redutos tranqüilos e podem impor sua vontade. Outros dependem das graças partidárias para poder mostrar serviço a seus eleitores e não ficar inferiorizados em seus redutos diante dos rivais, às vezes do mesmo partido. Na equação explicativa de Ames, inclui-se, por exemplo, o êxito dos parlamentares em ter suas emendas orçamentárias aprovadas e traduzidas em desembolsos do Executivo. O voto coerente pode provir, também, não da força do partido, mas da própria ideologia do deputado.
O autor não rejeita, liminarmente, propostas de mudança no sistema, objetos do que, entre nós, se tem chamado “reforma política”. Se vê um foco maior de problemas no sistema eleitoral, por que não mudá-lo? Contudo, o exame concreto de propostas, entre elas as que, com freqüência, têm sido aventadas nos últimos anos, de um sistema eleitoral inspirado no germânico, de tipo misto, não lhe dá muito ânimo. As práticas de orçamento participativo que estudou lhe pareceram “um passo positivo no desenvolvimento de relações mais fortes de responsabilidade pública entre eleitores e políticos”. À semelhança, porém, do que ocorre com muitos colegas seus, essa parte de seu livro não é muito convincente, parecendo mais uma concessão ao reclamo de que é preciso haver propostas, feito os diagnósticos do que expressão de firme adesão intelectual ao que sugere. Os cientistas políticos, diversamente de seus colegas economistas, parecem muito céticos quanto à capacidade de alteração de instituições, pelo menos quanto a capacidade de sua ciência de dar mais solidez às propostas. Daí, o grande conformismo hoje prevalecente entre muitos na profissão.
Antonio Octávio Cintra
Doutor pelo Instituto Tecnológico de Massachussets (MIT), inclui-se entre os mais renomados cientistas políticos brasileiros. Pertenceu ao Corpo Docente da Universidade de Brasília (UnB), atuando desde há alguns anos como consultor legislativo da Câmara dos Deputados. Incumbiu-se da organização de obra que se tornaria referência obrigatória: O sistema político brasileiro: uma introdução (UNESP/Fundação Adenauer), 2007.
Revista Liberdade e Cidadania
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