domingo, 24 de julho de 2011

Um atlas do esporte mundial

Gilmar Mascarenhas
Professor do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e especialista em Geografia dos Esportes,gilmasc2001@yahoo.com.br

Há algumas décadas, a Universidade de Franché-Comté, em Besançon (França), vem sendo reconhecida internacionalmente no ramo ainda pouco explorado da Geografia dos Esportes. Igualmente, a instituição se destaca pelo primor de seu trabalho cartográfico, preocupação já presente, quando, em 1987, os professores Daniel Mathieu e Jean Praicheux publicaram Sports em France, modelo de atlas dos esportes em território francês. A tradição de produzir e bem cartografar a geografia dos esportes felizmente persistiu na geração seguinte e culminou, neste ano de 2010, com a publicação do Atlas Do Esporte Mundial. Negócios e espetáculo: o ideal esportivo em jogo (Edições Autrement, Paris).

Seus autores são os professores de Geografia da supracitada instituição: Pascal Gillon, Loïc Ravenel e Frédéric Grosjean. O primeiro, há mais de dez anos se dedica ao estudo geopolítico dos esportes, com ênfase crescente no olimpismo. O segundo, L. Ravenel, há 15 anos se debruça sobre o ramo, tendo construído uma metodologia de estudo locacional do esporte profissional e sendo fundador do Observatório de Jogadores Profisionais de Futebol, atrelado a FIFA. Por fim, Grosjean se dedica mais propriamente ao esporte amador e sua dimensão territorial, numa perspectiva regional. Ambos trabalham em conjunto no Laboratório Théma. O perfil de cada um desses três pesquisadores se complementa plenamente na formação de uma abordagem abrangente sobre os esportes. Contaram ainda com o suporte fundamental de dois cartógrafos, Donatien Cassan e Madeleine Benoit-Guyod.

Na perspectiva editorial, este atlas do esporte mundial se insere na coleção de atlas temáticos, que visa oferecer a um público mais amplo, um material de fácil acesso e assimilação, de agradável manuseio e abarcando temas de grande interesse geral. Trata-se neste caso de uma edição sucinta, de 80 páginas, que prima pela ilustração vasta e de excelente qualidade gráfica, numa proposta de natureza didática. O propósito central é demonstrar o processo de mundialização da prática esportiva, sua diversidade e sua magnitude no mundo contemporâneo. Mas ao mesmo tempo em que oferece uma visão panorâmica e informativa de inúmeras modalidades esportivas em sua abrangência e distribuição planetária, fornece também uma análise geográfica do fenômeno esportivo. Em síntese, propõe uma abordagem pela qual o esporte contemporâneo vive um paradoxo, entre sua natureza global (tendência movida pela economia) e sua identidade local-regional.


O atlas se divide em seis segmentos. O primeiro, A difusão mundial do esporte, constitui uma introdução ao tema, já que aborda a origem dos esportes, a formação das instituições (nacionais e internacionais) e a natureza complexa do processo de difusão das distintas modalidades (os agentes difusores, os canais de difusão etc.). O quadro de fundo é a conformação da sociedade urbano-industrial (com destaque para a Grã_Bretanha do século XIX, berço de inúmeros esportes) e o papel crucial dos modernos meios de comunicação, que permitiram a mundialização da prática esportiva, fenômeno realmente extraordinário, que fez do globo terrestre o palco das disputas, vencendo distancias e diversidades (bem como adversidades) locais e regionais .

O segundo segmento, Uma questão geopolítica para os estados, assume explicitamente a perspectiva geopolítica que, de certa forma, é um dos fios condutores de toda a obra. O esporte é tomado como vitrine nacional para o mundo, expressão privilegiada de potencias que pretendem se afirmar no cenário mundial, através das grandes competições planetárias. O olimpismo merece destaque neste segmento, em especial a questão da Guerra Fria e os famosos boicotes aos jogos olímpicos. Também o papel geopolítico do Comitê Olímpico Internacional, em ser poder de deliberar, por exemplo, a localização das sedes olímpicas, ao mesmo que as cidades fazem desta condição um poderoso instrumento de marketing urbano mundial. Para além de um enfoque global, o atlas mergulha em peculiaridades regionais, como o caso indiano (potencia emergente ainda sem destaque no plano esportivo), o sucesso do atletismo africano e o caso do Apartheid, que excluiu por certo período a África do Sul de participar dos cobiçados certames internacionais.

A terceira parte se intitula O grande mercado mundial do esporte, e portanto se dedica a conformação do império de negócios que se tornou em nossos dias o fenômeno esportivo. O papel central das mídias (em especial as transmissões televisas, alvo de negociações milionárias), os grandes patrocinadores e a busca constante pela conquista de novos mercados no âmbito da chamada industria dos esportes. Apostando nas contradições do sistema, destaque é dado à questão do dopping, que coloca em debate a ética, a tecnologia, o corpo e a lógica competitiva, inerente ao esporte, mas decerto multiplicada quando este está associado a poderosos interesses empresarias.

A quarta parte, Esportistas, reflexos da mundialização, expõe a natureza peculiar do profissional do esporte no mundo atual, em especial sua vasta mobilidade espacial, convertendo-se num dos primeiros ramos de atuação profissional que de fato tem como campo de ação disponível a totalidade do globo. Este mercado mundial de atletas desenha toda uma rede migratória global (sem escapar dos problemas de nacionalidade e nacionalismos) e uma divisão internacional do trabalho. Neste segmento, o futebol merece destaque, aproveitando o farto material produzido por um dos autores, no âmbito do já citado Observatório de Jogadores Profissionais de Futebol. Um único problema foi verificado, na p. 55, quando os autores se precipitaram ao apontar como definitivo o retorno ao Brasil do jogador de futebol Adriano. O mesmo voltou a jogar na Itália neste mesmo ano de 2010.

A quinta parte, O futebol, um esporte universal, demonstra o quanto esta modalidade, mais que qualquer outra, se mundializou a ponto de conquistar praticamente todos os espaços do ecúmeno. A partir do esquema centro-periferia, constrói-se uma perspectiva simples e ao mesmo tempo pertinente: a Europa como coração do sistema (o centro dos negócios), a America do Sul com pulmão (principal fornecedor de atletas para o mercado mundial), a África como periferia integrada (plena articulação e intercambio com a Europa) e, como territórios marginais Ásia, Oceania e America do Norte. Esta classificação por continente, como qualquer outra, incorre em simplificação forçosa, como bem apontam os autores, reconhecendo no continente asiátixo uma diversidade: Oriente Médio e Extremo Oriente não podem ser nivelados com nações do Sudeste Asiático.

A ultima parte do atlas se intitula Mundos do esporte: do regional ao local, e aborda justamente os esportes que não lograram êxito global mas apresentam forte manifestação regional, tais como o críquete, o rúgbi, e mais notadamente os esportes de inverno, premidos pelo determinismo ambiental. Especial atenção é conferida às particularidades do sistema esportivo norte-americano, auto-referenciado e intensamente associado à espetacularização midiática e às grandes empresas. A dimensão cultural é igualmente considerada, destacando movimentos identitários de minorias (judeus, gays, etc.) através do esporte.

De um modo geral, a diagramação peca em alguns momentos pela saturação de informações visuais. Todavia, e para além das qualidades já expostas, um mérito incontestável deste novo atlas é sua abrangência global. Assim como a França em 1987, outros países publicaram seus atlas nacionais do esporte, com destaque para Cuba, Estados Unidos (John ROONEY, 1992) e incluindo o Brasil, em iniciativa mais recente (DaCOSTA, 2004). Tais publicações gozam da comodidade de reunir informações fornecidas pelas próprias federações nacionais e que por isso tendem a adotar um único sistema de produção e armazenamento de dados. Ao lidar com países e realidades tão distintas, os autores do atual atlas se defrontaram com imensas dificuldades, não apenas na obtenção como também na codificação do material. Motivo pelo qual tiveram que se deter no esporte profissional, por seu grau de institucionalização. Trata-se de um grande e inovador desafio, cumprido com rigor e qualidade, por uma equipe altamente qualificada para tal missão.

Por fim, estamos diante de um material que muito bem sintetiza e ilustra a complexidade e a dimensão alcançada em nossos dias pelo fenômeno esportivo, tratado sistematicamente em sua diversidade de manifestações.
http://confins.revues.org

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