sábado, 20 de março de 2010

Escritos Urbanos


Sônia Guimarães Laranjeira

Coordenadora do PPG em Sociologia/UFRGS


Escritos Urbanos KOWARICK, LÚCIO. São Paulo, Editora 34, 2000.

Escritos Urbanos reúne sete artigos que traduzem não apenas uma trajetória de pesquisa do autor nos últimos vinte anos mas, sobretudo, resgatam questões centrais que alimentaram o debate na Sociologia Urbana, do qual Kowarick foi uma das referências, no Brasil e na América Latina. Tal debate não se restringiu aos problemas da disciplina, mas atravessou as Ciências Sociais e foi interpretado por alguns como expressão de uma "crise de paradigmas": sua origem encontrava-se no questionamento dos pressupostos holistas, estruturalistas e deterministas que detinham a hegemonia na explicação do social e que são fortemente abalados desde a emergência, ao final dos anos 60, de movimentos sociais expressivos, na Europa e nos Estados Unidos – como os movimentos estudantis que explodiram ao redor do mundo; o movimento dos direitos civis dos negros, nos Estados Unidos; o movimento de mulheres e, especialmente, o de maio de 1968, na França. Tais eventos marcariam a "morte" daqueles pressupostos, o que é, também, interpretado como a "morte" da modernidade.

A crise da teoria coincide com a crise de valores do período anterior: de valores econômicos, pelo esgotamento do modelo de crescimento do pós-guerra baseado na regulação estatal e que deu origem à chamada sociedade do bem-estar; de valores políticos, expressa na crise da democracia representativa e na busca de novos e mais amplos espaços de cidadania – a democracia representativa dando lugar à democracia participativa e redistributiva; de valores sociais, manifesta pela eclosão dos movimentos e lutas sociais e de valores culturais, expressa pela afirmação dos princípios libertários e de reconhecimento de direitos de minorias, tão bem expressos pela "revolução sexual" dos anos 1960-1970.

Significativamente, rompe-se com a idéia de revolução, de evolução e de existência de um centro irradiador de poder, e, também, com a idéia de um único sujeito transformador.

Escritos Urbanos retoma essas discussões sob o ângulo das questões urbanas, permitindo ao leitor revisitar temas, conceitos e polêmicas próprios das conjunturas a que estão referidos, beneficiando-se do distanciamento no tempo, que conduz a uma reflexão sobre o fazer sociológico. O livro é de interesse, portanto, não apenas para os estudiosos da questão urbana no Brasil, mas também, para estudantes das Ciências Sociais em geral, que ali encontrarão os contornos de um debate estimulante em que, juntamente com a análise de dados empíricos relevantes, são abordadas questões teórico-metodológicas fundamentais.

Conceitos como contradições urbanas, espoliação urbana, movimentos sociais e lutas urbanas, por exemplo, são discutidos num constante diálogo com o contexto teórico em que se inserem, interpelando, também, o debate político a cerca da transformação social, tendo em vista a conjuntura, marcada por mudanças político-sociais.

Em diferentes capítulos encontramos a descrição indignada sobre o drama e as contradições da grande metrópole latino-americana, São Paulo – objeto de análise - locus privilegiado da riqueza criada pela industrialização punjante, mas que reservou para a maioria de sua população, a exclusão social mais deplorável. Populações que, no decorrer dos últimos 50 anos de intensa industrialização e crescimento econômico, foram empurradas para as periferias, carentes de serviços urbanos mínimos, condenando-as a condições sub-humanas, que definem a situação de sub-cidadania. A descrição da pauperização e do abandono das populações pobres da cidade de São Paulo – um dos pólos de riqueza do país e do continente - fazem-nos lembrar da situação de miséria das populações inglesas, no auge do desenvolvimento industrial inglês, descritas por Engels em The condition of the working class in England. O ritmo vertiginoso das mudanças no período de um século e meio que separa tais vivências, não foi suficiente para mudar a condição dos excluídos do sistema. Kowarick chama atenção, no entanto, para o novo da situação presente, marcada por mudanças na dinâmica econômica internacional, referindo-se à "nova divisão internacional do trabalho a partir da década de 50" e que definiria um padrão de desenvolvimento altamente concentrador de renda (p. 61).

No contexto de discussão dessas contradições, em que maior riqueza gera maior pobreza, o autor aborda uma questão sociológica central, que consiste em definir a relação entre condições materiais e lutas sociais. Contrariando teses simplistas que acreditavam na existência de uma relação direta entre pobreza e subversão, o autor introduz o conceito de experiência - "a forma como os sujeitos vivem...formas de exclusão, econômica ou política" - como um fator de mediação e de possibilidades, destacando a importância para a análise social, dos elementos relacionados à subjetividade social. Nesta perspectiva, busca recuperar a importância de uma dimensão social que havia sido pouco valorizada nas abordagens tradicionais, que tendiam a privilegiar, de um lado, o nível institucional (por exemplo, partidos políticos e sindicatos) e, de outro, o nível da produção. Rompendo com tal visão, o autor insiste na necessidade de que os espaços de lutas e de reivindicações próprios da reprodução social e que dizem respeito ao cotidiano das populações, passem a ser teoricamente incorporados na explicação do social.

Embora crítico das abordagens estruturalistas e reivindicando importância aos aspectos subjetivos da realidade social, Kowarick não deixa de apontar as distorções geradas à época e que se expressam no voluntarismo que atinge as Ciências Sociais, nos anos 1980. Neste sentido, questiona a concepção que percebe a realidade a partir de um modelo em que, de um lado, estariam os movimentos sociais, portadores de todas as virtudes e, de outro, o Estado, inimigo a ser derrotado.

Em relação ao conceito de movimentos sociais distingue-o do de lutas urbanas: estas permaneceriam em nível de reivindicações locais "num âmbito politicamente estreito: malgrado sua combatividade não conseguem se transformar em movimentos sociais... forças coletivas capazes de conquistar amplos espaços políticos" (p.65). Para os que desacreditam da eficácia política desses movimentos, face à instabilidade que os acompanha, Kowarick argumenta que o potencial transformador dos mesmos manifestar-se-ia em certas conjunturas, que dependiam de circunstâncias sociais particulares, não havendo, em termos da ação, definições a priori, como supunham alguns analistas. Exemplo de uma conjuntura aglutinadora de reivindicações teria sido a conjuntura do final dos anos 1970, quando as lutas por melhoria das condições de vida em geral, que incluíam reivindicações urbanas, teriam tornado-se decisivas para o êxito das greves metalúrgicas daquele período. O autor destaca a vinculação que se estabelecia entre trabalhador explorado e morador espoliado, dando lugar ao que denominou momento de fusão dos conflitos e reivindicações. Contrariava, novamente, princípios teóricos que distinguiam e hierarquizavam os tipos de lutas sociais, conforme o lugar em que eram produzidas, atribuindo importância, apenas, as que ocorriam no lugar da produção, desconsiderando as demais.

O capítulo final dedica-se, principalmente, à discussão de questões teóricas. Neste capítulo, encontra-se uma crítica categórica que, embora referida ao universo das questões urbanas, poderia ser aplicada de forma mais abrangente. Exemplo disso é a discussão acerca da produção de conhecimento, em que são enumerados uma série de condicionantes que contribuiriam para a hierarquização de temas e de objetos de investigação; dentre esses, destaca o que muitos insistem em não ver ou a omitir: o peso "da migração de idéias e dos modismos intelectuais...Importamos um pacote temático com os correspondentes paradigmas teóricos...sem que tenha havido de nossa parte a menor crítica teórica ou mesmo reciclagem analítica e conceitual" (p.118; 124). O resultado seria o atraso teórico: os processos de acumulação, de urbanização, de crise econômica e suas implicações sociais apresentar-se-iam de forma particular nos países latino-americanos face à situação de dependência, exigindo uma abordagem explicativa, também, particular, no sentido de apreender a manifestação da dinâmica própria daqueles fenômenos na periferia (p.122; 128).

Os equívocos teriam sido muitos: a utilização de conceitos como capitalismo monopolista de Estado, contradições urbanas, produzidos tendo em vista a realidade de países centrais e, além disso, baseados em pressupostos estruturalistas, cuja moda era "requintada pela leitura althusseriana de Castells" (p.126). Em oposição, desenvolvem-se abordagens em que "a visão basista ... dilui os atores numa multiplicidade de cenários e agendas..." (p.128). Equívocos teóricos refletiam-se em comportamentos políticos caracterizados, de um lado, por um otimismo catastrófico (p. 126) e, de outro, por um "foucaultianismo narodnik, (que) bebem nas águas de um neo-anarquismo misturadas de uma leitura messiânica da libertação dos oprimidos..." que "poderia ser designada de anarco-catacumbista..." (p.130; 127).

Em suma, se é verdade que o nível dos micro processos e o nível da dimensão cultural são fundamentais para a análise do social, estes perdem significado se deixarem de incorporar o contexto econômico, político e social em que estão inseridos.

Nesta perspectiva, a reflexão do autor distingue-se de abordagens como as de Giddens ou de Bourdieu, também preocupados em enfatizar os aspectos da estrutura-ação. Nesses autores, porém, a noção de estrutura refere-se, muito mais à dimensão de externalidade (a la Durkehim). Em Kowarick, o acento está nas condições materiais (econômico-sociais) presentes em macro processos, e que, hoje, mais do que nunca, se manifestam em dimensão planetária em que se acentuam as desigualdades entre países e grupos sociais.

Aliás, diante da complexidade do presente e de suas consequências globais, a Sociologia parece dar-se conta da necessidade de retomar questões que foram centrais à agenda de discussões dos anos 1960-1970. Uma delas diz respeito à integração das economias latino-americanas à economia mundial, sob a égide dos países centrais: retornam velhas questões sobre desenvolvimento (e seu conteúdo) e relações centro-periferia. Não é à toa que realizaram-se, recentemente, na Universidade de São Paulo (USP), dois Seminários abordando esse tema; em um deles, Lúcio Kowarick participou da Mesa "'Desenvolvimento, dependência e marginalidade' e `Integração, globalização e exclusão': trinômios intercambiáveis?". Certamente, depois de algumas décadas e tantas mudanças político-econômico-sociais, os conceitos não serão intercambiáveis e requerem ajustes. De qualquer forma, os países ditos periféricos permanecem marginalizados numa situação de "inclusão seletiva e de segmentação excludente".

Escritos Urbanos, de certa forma, retoma algumas dessas questões; é um livro de muitas leituras e, por isso, estimulante.

Revista Sociologias - UFRGS

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