Electing to fight: why emerging democracies go to war
Marcelo ValençaI
Edward D. Mansfield e Jack Snyder. Cambridge, MIT Press, 2005, 300 páginas.
A teoria da paz democrática defende a proposição de que países democráticos não entram em guerra com outras democracias, criando assim um cenário internacional propício ao estabelecimento da paz. Este pensamento, comumente associado ao paradigma kantiano das Relações Internacionais, remontaria ao fim da Primeira Guerra Mundial, quando o então presidente norte-americano Woodrow Wilson associou a manutenção da paz internacional com a proliferação de países democráticos. Apesar de não haver consenso entre os acadêmicos sobre os motivos de esta paz acontecer, os defensores dessa tese afirmam que ela é empiricamente comprovada com base na observação das guerras internacionais nos últimos dois séculos (Russett, 1993). Esta teoria foi amplamente discutida, especialmente durante as décadas de 1980 e 19901, e hoje serviria como uma das diretrizes da política externa de diversos países, como os Estados Unidos da América (EUA). Por outro lado, "a idéia de que democracias estabelecidas não entram em guerras umas com as outras é por vezes descrita como a lei mais válida do campo das Relações Internacionais, quiçá da Ciência Política"2 (:282), e é algo arriscado de se afirmar, pois democracias são um elemento recente, de pouco mais de 150 anos.
Jack Snyder e Edward Mansfield participaram ativamente deste debate, discutindo a teoria e tecendo críticas a ela em diversos artigos ao longo das décadas de 1990 e 20003. Nestes artigos, os autores reconheciam a existência de uma paz entre democracias, mas apontavam que os Estados que passavam por processos de democratização estariam mais sujeitos a entrar em guerra do que aqueles considerados autocráticos ou em processo de se tornar autocracias. Esses, aliás, são conceitos de grande importância para a discussão realizada pelos autores: o processo de democratização acontece quando os Estados passam por uma transição democrática, em qualquer nível. Por transição democrática, entende-se a mudança do regime do Estado de autocracias para democracias, de autocracias para "anocracias"4 (nível intermediário de liberdade política) ou de anocracias para democracias. De modo análogo, o processo de transformação em autocracia refletiria a transição da democracia para a autocracia, da democracia para a anocracia ou da anocracia para a autocracia (:35-37).
No livro Electing to Fight, as críticas inicialmente apresentadas pelos autores em seus artigos são revistas e refinadas. Buscando descobrir quando e por que as democracias entram em guerra, Mansfield e Snyder apontam que a fraqueza das instituições políticas nos países em processo de democratização e nas democracias incompletas5 tornaria tais países mais suscetíveis a disputas internas decorrentes de apelos nacionalistas vindo de grupos domésticos, especialmente em Estados nos quais o governo não é centralizado. Receosos de perder o poder estabelecido com as transições democráticas e sofrer ameaças à sua segurança com uma possível mudança de poder, as elites destes Estados promoveriam ações para garantir seu status, buscando um adversário externo para unir a população em torno de sua causa. Para os autores, o fortalecimento das instituições democráticas diminuiria o risco desta violência acontecer, pois as partes envolvidas nas disputas políticas teriam conhecimento dos custos do conflito e dos benefícios decorrentes da obediência às regras e preceitos democráticos, nos níveis doméstico e internacional. Este argumento é desenvolvido ao longo do livro com base em análises quantitativas, de acordo com exames realizados em bases de dados como o Polity6 e o projeto Correlates of War (COW)7, e qualitativas, por meio de estudos de casos selecionados.
Podemos tomar o livro como tendo quatro partes: a primeira (capítulos 1 a 3) apresenta os argumentos e pressupostos teóricos de Mansfield e Snyder, expondo explicações alternativas para a teoria da paz democrática e afirmando a posição dos autores de que os Estados democraticamente incompletos entram em conflitos com maior freqüência. A segunda parte (capítulos 4 a 6) apresenta as estatísticas que sustentariam o argumento dos autores, com base em elementos verificadores de padrões democráticos analisados entre 1816 e 1992, marco temporal proposto. A terceira parte (capítulos 7 e 8) contemplaria os estudos de casos para demonstrar, não apenas estatisticamente, as motivações para a ocorrência de guerras entre Estados em democratização ou democraticamente incompletos, corrigindo eventuais erros advindos da análise estatística. No capítulo 9, finalmente, os autores expõem suas conclusões, retomando a discussão realizada nos capítulos anteriores e confirmando seu argumento principal sobre a necessidade de instituições fortes para que haja uma transição democrática estável.
Na primeira parte do livro, Mansfield e Snyder apresentam sua discussão teórica, baseados na premissa que sustenta a teoria da paz democrática: Estados democráticos não entram em guerra uns com os outros. Para os autores, a explicação para a paz democrática estaria na força que as instituições dos Estados democráticos possuem e que tornaria as guerras por demais custosas: "[...] as instituições fortes das democracias maduras e a responsabilidade do governante perante uma população consciente dos custos políticos de uma guerra são contrastantes com as instituições fracas das democracias incompletas, que se mostrariam mais favoráveis a entrar em guerras" (:37).
É também nessa primeira parte que se encontram as hipóteses que os autores se propõem a responder ao longo do livro. São seis: (1) democracias incompletas com instituições fracas entram em guerra com maior freqüência do que Estados governados por outros regimes, inclusive os autocráticos; (2) democracias incompletas iniciam guerras com maior freqüência que outros Estados; (3) Estados em processo de democratização que sofrem com instituições fracas e cuja elite se vê ameaçada com este processo entram em guerras com maior freqüência; (4) Estados que passam por um processo de democratização completa apresentam riscos moderados de guerra logo após a transição, mas, uma vez completa, a democracia garantiria a paz; (5) questões nacionalistas e militares dentro dos Estados em democratização aumentam o risco de guerras; e (6) democracias incompletas que iniciam guerras se comportam da mesma maneira, apresentando alguns ou todos estes elementos: nacionalismo exacerbado, grupos de pressão política, insegurança institucional, disputa entre facções, política externa dúbia e agressiva e uso da mídia para promover ideologias nacionalistas (:67).
Na segunda parte, é feita a exposição de dados quantitativos e estatísticos obtidos entre 1816 e 1992, marco temporal de análise do livro, buscando responder as hipóteses 1, 2 e 4. Estes dados ajudam a fundamentar os pressupostos teóricos dos autores e a definir os Estados com base na força de suas instituições domésticas, isto é, na competitividade do jogo político, nos constrangimentos impostos ao Poder Executivo e na possibilidade da entrada de novos grupos de atores nas arenas de discussão, bem como na incidência de guerras envolvendo estes Estados.
Conforme os resultados obtidos a partir de cada um desses índices, os Estados são classificados pelos autores como autocracias, anocracias ou democracias: a variação da posição dos Estados nesta escala ao longo do tempo, pendendo para o lado das autocracias ou das democracias, constituiria os processos de transformação em autocracias ou democracias mencionados anteriormente. Estas informações permitiriam aos autores demonstrar que a mudança de um regime de natureza autocrática para uma democracia fundamentada em instituições fracas potencializaria a ocorrência de guerras, independentemente da unidade de análise escolhida, seja o Estado individualmente considerado (capítulo 5) ou díades de Estados (capítulo 6). De maneira contrária, a mudança para uma democracia completa com as instituições políticas fortalecidas diminuiria a incidência de conflitos (:95). Mansfield e Snyder concluem que, durante os séculos XIX e XX, Estados com instituições políticas fracas que passaram por transições democráticas e se tornaram anocracias se envolveram em guerras com maior freqüência do que os Estados cujos regimes não se alteraram ou sofreram outros tipos de transição, mesmo que em direção a autocracias (:137).
Na terceira parte, os autores apresentam, de maneira sucinta, diversos estudos de casos envolvendo países em processo de democratização que entraram em guerra, dentro do marco temporal anteriormente referido (capítulo 7) e fora dele (capítulo 8). Dividindo o estudo de casos em dois padrões distintos – casos de guerras iniciadas por países em processo de democratização e de guerras envolvendo Estados em democratização cuja rivalidade histórica é acirrada –, são analisadas situações e contextos histórico-sociais diversos, por meio de uma observação que privilegiaria as dinâmicas internas dos Estados em questão. Esta terceira parte possibilita aos autores explorar todas as seis hipóteses mencionadas anteriormente, testando novamente aquelas respondidas nos capítulos estatísticos por meio da análise qualitativa e subjetiva dos dados.
No capítulo 7, são vistos os casos de Estados em que havia instituições fracas antes do processo de transição democrática – conforme os dados estatísticos apresentados nos capítulos anteriores – e nos quais a elite dominante se valeu de uma retórica nacionalista para assegurar seu poder. Foram estudados dez países8 e, com base neste estudo, os autores consideraram que seu argumento foi demonstrado, reforçando o argumento estatístico e cobrindo eventuais lacunas neste: democracias incompletas entram em guerra com maior freqüência que os demais tipos de governos. Apesar disso, Mansfield e Snyder reconhecem a ocorrência de casos falso-positivos (:227), isto é, aqueles casos em que as estatísticas apontam para um determinado cenário ou conjuntura sem que estes prognósticos estejam acontecendo de fato – no caso estudado, seria a falsa percepção de que um Estado em análise estaria passando por um processo de democratização.
O capítulo 8 apresenta seis estudos de casos não cobertos pelo marco temporal das bases estatísticas, mas que se justificam a partir das exposições causal e teórica apresentadas ao longo do livro9. Estes seis estudos de caso aconteceram entre os anos de 1992 e 2000. Apesar de podermos criticar a escolha destes casos por não se adequarem confortavelmente à idéia de conflitos internacionais, tal como mencionado quando da especificação do tipo de guerra a que os autores se referem, isso não parece ser um problema para a demonstração do argumento causal de Mansfield e Snyder. A crítica quanto à falta de argumentos estatísticos que aumentariam a confiabilidade da análise destes casos pode ser matizada pelo curto tempo entre a ocorrência dos casos e a época de seu estudo. Estes casos demonstram que a existência de instituições fracas é agravada com o aumento da participação popular na política, acarretando ondas de nacionalismo – étnico e contra-revolucionário10 – e violência.
Electing to Fight é um livro em que os argumentos são apresentados de maneira cuidadosa e ricamente justificados por dados e estudos de casos. A crítica desenvolvida aos processos de democratização promovidos por Estados em outras regiões do globo é contundente e proporciona ao leitor elementos para refletir sobre quando e como estes processos devem ser estimulados e que, uma vez iniciados, devem ser prosseguidos até o fim. Caso tais cuidados não sejam observados, o potencial de estes Estados entrarem em guerra, desestabilizando a região, pode aumentar. A análise dos dados e casos demonstra que, para os autores, os processos de democratização não devem ser vistos em apenas um momento, mas como parte integrante da dinâmica política de um Estado em médio e longo prazos.
Vale destacar também que, apesar de os autores ressaltarem que não é o objetivo de Electing to Fight tratar da democratização e sua relação com a ocorrência de guerras étnicas e civis (:7), os argumentos causais de Mansfield e Snyder podem ser usados para trabalhar estes tipos de conflito, tal como o exemplo da Rússia, no capítulo 8. As guerras a que os autores se referem são as internacionais, travadas entre Estados, como pode ser percebido a partir da análise dos estudos de casos e dos dados compilados pelos autores ao longo da obra, especialmente no seu Apêndice (:285-287). Contudo, nos Estados que sofrem com a instabilidade política doméstica causada por estas guerras internas, o fortalecimento das instituições também serviria como garantia aos grupos em conflito de que seus adversários obedecerão às normas e procedimentos políticos. Desta forma, cada um dos grupos em disputa poderia prever as ações de seus adversários e responder a elas com base nos mecanismos políticos existentes, evitando que aconteça o "dilema de Clausewitz às avessas"11 (Miall, Ramsbotham e Woodhouse, 1999). Portanto, a teoria desenvolvida em Electing to Fight pode guiar o estudo dessas novas guerras, que envolveriam elementos intra-estatais.
O trabalho de Mansfield e Snyder torna-se particularmente preciso e convincente quando tomamos em consideração a apresentação de casos tidos como falso-positivos. A ressalva da existência desse tipo de caso nos mostra que, dentro do período estudado – 1816 a 1992 –, os elementos estatísticos verificadores de democratização utilizados na comprovação da teoria podem nos levar a crer que guerras foram iniciadas por Estados que aparentam passar por um processo de democratização, quando de fato não passam por tal processo. Tal postura dos autores demonstra honestidade intelectual e a seriedade de seu trabalho, pois não há aproveitamento indevido de exemplos que fortaleceriam sua teoria em detrimento da veracidade da análise proposta. Assim, se por um lado Mansfield e Snyder diminuem o leque empírico apresentado que justificaria o seu argumento, por outro transmitem ao leitor a idéia de que os casos expostos são fortes o suficiente para sustentar a tese desenvolvida na obra.
Electing to Fight presta ainda uma grande contribuição à idéia institucional que sustentaria a teoria da paz democrática (Russett, 1993): para os defensores desta teoria, a existência de instituições políticas fortes e estáveis permitiria que os diferentes grupos políticos dentro do Estado cooperassem, buscando atingir melhores resultados. Tal esforço seria reconhecido por outros Estados democráticos, que estabeleceriam relações pacíficas uns com os outros. Mansfield e Snyder salientam a importância destas instituições, apontando que sem elas a lacuna entre o processo de democratização promovido especialmente pelos EUA em diferentes países do globo e a paz internacional seria cada vez maior.
Notas
1. Como exemplo dos diversos textos que trabalham esta teoria, ver Mansfield e Snyder (1995a) e, principalmente, as referências apontadas na nota 3 abaixo.
2. Todas as citações foram traduzidas do inglês para o português pelo autor da resenha.
3. Dentre os artigos escritos pelos autores sobre o tema, podemos mencionar: "Democratization and the Danger of War" (1995a), "The Effects of Democratization on War" (1995b), "Democratization and War (1995c)", "Democratic Transitions and War: From Napoleon to the Millenniums End" (2001) e "Incomplete Democratization and the Outbreak of Military Disputes" (2002). Porém, em Electing to Fight, os autores afirmam que não são contrários à idéia da paz democrática, mas sim aos mecanismos utilizados para atingi-la, sem que sejam observadas e respeitadas as particularidades de cada país (:283).
4. O termo "anocracia" – em português, um neologismo – veio substituir a expressão "regimes mistos" utilizada em seus artigos anteriores.
5. Democracias incompletas seriam aqueles Estados em que a transição de um regime de natureza autocrática ou mista (agora, anocrática) para a democracia – conforme nota 4 – fora interrompida antes da sua conclusão (:4).
6. A base de dados Polity é um projeto desenvolvido originalmente pelo professor Ted Robert Gurr e que atualmente está em sua quarta "versão" (Polity IV), cobrindo as transições acontecidas entre os anos de 1800 e 2004. A base de dados contém informações sobre regimes e características de governo para todos os Estados com população igual ou maior a 500 mil indivíduos. Os autores de Electing to Fight valeram-se da terceira "versão", Polity III, para os argumentos do seu livro, vindo daí o seu marco temporal de análise menor. Maiores informações sobre o Polity em(acessado em 6 de outubro de 2006).
7. O projeto COW foi iniciado em 1963 pelo professor J. David Singer, da Universidade de Michigan, e tem como objetivo compilar informações e dados sistemáticos sobre a guerra. Atualmente, ele é coordenado pelo professor Paul Diehl e constitui-se em uma das fontes mais confiáveis de dados sobre conflitos. Maiores informações em(acessado em 6 de outubro de 2006).
8. Estes países são: França, Sérvia, Prússia/Alemanha, Chile, Iraque, Argentina, Turquia, Guatemala, Estados Unidos e Tailândia.
9. As guerras envolvendo Armênia e Azerbaijão, Equador e Peru, Etiópia e Eritréa, Paquistão e Índia, a guerra do Kosovo e a guerra entre Ruanda e Burundi. Os autores também trabalham com o caso da Rússia e da Chechênia, mas não o consideram um conflito interestatal como os seis acima, pois seria um exemplo de conflito intra-estatal.
10. Edward Mansfield e Jack Snyder (:52) definem como nacionalismo étnico aquele que se identifica com sentimentos de cultura ou pertencimento a determinado grupo, seja ele estatal ou não-estatal. Este tipo de fidelidade é a forma que vemos como predominante desde a segunda metade do século XX. Por outro lado, o chamado nacionalismo cívico seria aquele demonstrado em relação a instituições políticas estatais.
11. Clausewitz apontava que a guerra é a continuação da política com a interposição de outros meios. Assim, o dilema de Clausewitz às avessas indicaria que a política adotada em um cenário de pós-guerra seria a continuação dos conflitos, mas por meio da violência não-militar. Sobre o assunto, ver Miall, Ramsbotham e Woodhouse (1999:188-189).
Referências Bibliográficas
MANSFIELD, Edward D. e SNYDER, Jack. (1995a), "Democratization and the Danger of War". International Security, vol. 20, nº 1, pp. 5-38.
____. (1995b), "The Effects of Democratization on War". International Security, vol. 20, nº 4, pp. 196-207.
____. (1995c), "Democratization and War". Foreign Affairs, vol. 74, nº 3, pp. 79-97.
____. (2001), "Democratic Transitions and War: From Napoleon to the Millenniums End", in C. Crocker, F. O. Hampson e P. Aall (eds.), Turbulent Peace: The Challenges of Managing International Conflicts. Washington, United States Institute of Peace Press, pp. 113-126.
____. (2002), "Incomplete Democratization and the Outbreak of Military Disputes". International Studies Quarterly, vol. 46, nº 4, pp. 529-549.
MIALL, Hugh, RAMSBOTHAM, Oliver e WOODHOUSE, Tom. (1999), Contemporary Conflict Resolution. Cambridge, Polity Press.
RUSSETT, Bruce. (1993), Grasping the Democratic Peace: Principles for a Post-cold War World. Ewing, Princeton University Press.
I Mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio). Professor do curso de graduação em Relações Internacionais da PUC-Rio. Pesquisador do Grupo de Análise e Prevenção de Conflitos Internacionais (GAPCon).
Revista Contexto Internacional - PUC-RJ
Marcelo ValençaI
Edward D. Mansfield e Jack Snyder. Cambridge, MIT Press, 2005, 300 páginas.
A teoria da paz democrática defende a proposição de que países democráticos não entram em guerra com outras democracias, criando assim um cenário internacional propício ao estabelecimento da paz. Este pensamento, comumente associado ao paradigma kantiano das Relações Internacionais, remontaria ao fim da Primeira Guerra Mundial, quando o então presidente norte-americano Woodrow Wilson associou a manutenção da paz internacional com a proliferação de países democráticos. Apesar de não haver consenso entre os acadêmicos sobre os motivos de esta paz acontecer, os defensores dessa tese afirmam que ela é empiricamente comprovada com base na observação das guerras internacionais nos últimos dois séculos (Russett, 1993). Esta teoria foi amplamente discutida, especialmente durante as décadas de 1980 e 19901, e hoje serviria como uma das diretrizes da política externa de diversos países, como os Estados Unidos da América (EUA). Por outro lado, "a idéia de que democracias estabelecidas não entram em guerras umas com as outras é por vezes descrita como a lei mais válida do campo das Relações Internacionais, quiçá da Ciência Política"2 (:282), e é algo arriscado de se afirmar, pois democracias são um elemento recente, de pouco mais de 150 anos.
Jack Snyder e Edward Mansfield participaram ativamente deste debate, discutindo a teoria e tecendo críticas a ela em diversos artigos ao longo das décadas de 1990 e 20003. Nestes artigos, os autores reconheciam a existência de uma paz entre democracias, mas apontavam que os Estados que passavam por processos de democratização estariam mais sujeitos a entrar em guerra do que aqueles considerados autocráticos ou em processo de se tornar autocracias. Esses, aliás, são conceitos de grande importância para a discussão realizada pelos autores: o processo de democratização acontece quando os Estados passam por uma transição democrática, em qualquer nível. Por transição democrática, entende-se a mudança do regime do Estado de autocracias para democracias, de autocracias para "anocracias"4 (nível intermediário de liberdade política) ou de anocracias para democracias. De modo análogo, o processo de transformação em autocracia refletiria a transição da democracia para a autocracia, da democracia para a anocracia ou da anocracia para a autocracia (:35-37).
No livro Electing to Fight, as críticas inicialmente apresentadas pelos autores em seus artigos são revistas e refinadas. Buscando descobrir quando e por que as democracias entram em guerra, Mansfield e Snyder apontam que a fraqueza das instituições políticas nos países em processo de democratização e nas democracias incompletas5 tornaria tais países mais suscetíveis a disputas internas decorrentes de apelos nacionalistas vindo de grupos domésticos, especialmente em Estados nos quais o governo não é centralizado. Receosos de perder o poder estabelecido com as transições democráticas e sofrer ameaças à sua segurança com uma possível mudança de poder, as elites destes Estados promoveriam ações para garantir seu status, buscando um adversário externo para unir a população em torno de sua causa. Para os autores, o fortalecimento das instituições democráticas diminuiria o risco desta violência acontecer, pois as partes envolvidas nas disputas políticas teriam conhecimento dos custos do conflito e dos benefícios decorrentes da obediência às regras e preceitos democráticos, nos níveis doméstico e internacional. Este argumento é desenvolvido ao longo do livro com base em análises quantitativas, de acordo com exames realizados em bases de dados como o Polity6 e o projeto Correlates of War (COW)7, e qualitativas, por meio de estudos de casos selecionados.
Podemos tomar o livro como tendo quatro partes: a primeira (capítulos 1 a 3) apresenta os argumentos e pressupostos teóricos de Mansfield e Snyder, expondo explicações alternativas para a teoria da paz democrática e afirmando a posição dos autores de que os Estados democraticamente incompletos entram em conflitos com maior freqüência. A segunda parte (capítulos 4 a 6) apresenta as estatísticas que sustentariam o argumento dos autores, com base em elementos verificadores de padrões democráticos analisados entre 1816 e 1992, marco temporal proposto. A terceira parte (capítulos 7 e 8) contemplaria os estudos de casos para demonstrar, não apenas estatisticamente, as motivações para a ocorrência de guerras entre Estados em democratização ou democraticamente incompletos, corrigindo eventuais erros advindos da análise estatística. No capítulo 9, finalmente, os autores expõem suas conclusões, retomando a discussão realizada nos capítulos anteriores e confirmando seu argumento principal sobre a necessidade de instituições fortes para que haja uma transição democrática estável.
Na primeira parte do livro, Mansfield e Snyder apresentam sua discussão teórica, baseados na premissa que sustenta a teoria da paz democrática: Estados democráticos não entram em guerra uns com os outros. Para os autores, a explicação para a paz democrática estaria na força que as instituições dos Estados democráticos possuem e que tornaria as guerras por demais custosas: "[...] as instituições fortes das democracias maduras e a responsabilidade do governante perante uma população consciente dos custos políticos de uma guerra são contrastantes com as instituições fracas das democracias incompletas, que se mostrariam mais favoráveis a entrar em guerras" (:37).
É também nessa primeira parte que se encontram as hipóteses que os autores se propõem a responder ao longo do livro. São seis: (1) democracias incompletas com instituições fracas entram em guerra com maior freqüência do que Estados governados por outros regimes, inclusive os autocráticos; (2) democracias incompletas iniciam guerras com maior freqüência que outros Estados; (3) Estados em processo de democratização que sofrem com instituições fracas e cuja elite se vê ameaçada com este processo entram em guerras com maior freqüência; (4) Estados que passam por um processo de democratização completa apresentam riscos moderados de guerra logo após a transição, mas, uma vez completa, a democracia garantiria a paz; (5) questões nacionalistas e militares dentro dos Estados em democratização aumentam o risco de guerras; e (6) democracias incompletas que iniciam guerras se comportam da mesma maneira, apresentando alguns ou todos estes elementos: nacionalismo exacerbado, grupos de pressão política, insegurança institucional, disputa entre facções, política externa dúbia e agressiva e uso da mídia para promover ideologias nacionalistas (:67).
Na segunda parte, é feita a exposição de dados quantitativos e estatísticos obtidos entre 1816 e 1992, marco temporal de análise do livro, buscando responder as hipóteses 1, 2 e 4. Estes dados ajudam a fundamentar os pressupostos teóricos dos autores e a definir os Estados com base na força de suas instituições domésticas, isto é, na competitividade do jogo político, nos constrangimentos impostos ao Poder Executivo e na possibilidade da entrada de novos grupos de atores nas arenas de discussão, bem como na incidência de guerras envolvendo estes Estados.
Conforme os resultados obtidos a partir de cada um desses índices, os Estados são classificados pelos autores como autocracias, anocracias ou democracias: a variação da posição dos Estados nesta escala ao longo do tempo, pendendo para o lado das autocracias ou das democracias, constituiria os processos de transformação em autocracias ou democracias mencionados anteriormente. Estas informações permitiriam aos autores demonstrar que a mudança de um regime de natureza autocrática para uma democracia fundamentada em instituições fracas potencializaria a ocorrência de guerras, independentemente da unidade de análise escolhida, seja o Estado individualmente considerado (capítulo 5) ou díades de Estados (capítulo 6). De maneira contrária, a mudança para uma democracia completa com as instituições políticas fortalecidas diminuiria a incidência de conflitos (:95). Mansfield e Snyder concluem que, durante os séculos XIX e XX, Estados com instituições políticas fracas que passaram por transições democráticas e se tornaram anocracias se envolveram em guerras com maior freqüência do que os Estados cujos regimes não se alteraram ou sofreram outros tipos de transição, mesmo que em direção a autocracias (:137).
Na terceira parte, os autores apresentam, de maneira sucinta, diversos estudos de casos envolvendo países em processo de democratização que entraram em guerra, dentro do marco temporal anteriormente referido (capítulo 7) e fora dele (capítulo 8). Dividindo o estudo de casos em dois padrões distintos – casos de guerras iniciadas por países em processo de democratização e de guerras envolvendo Estados em democratização cuja rivalidade histórica é acirrada –, são analisadas situações e contextos histórico-sociais diversos, por meio de uma observação que privilegiaria as dinâmicas internas dos Estados em questão. Esta terceira parte possibilita aos autores explorar todas as seis hipóteses mencionadas anteriormente, testando novamente aquelas respondidas nos capítulos estatísticos por meio da análise qualitativa e subjetiva dos dados.
No capítulo 7, são vistos os casos de Estados em que havia instituições fracas antes do processo de transição democrática – conforme os dados estatísticos apresentados nos capítulos anteriores – e nos quais a elite dominante se valeu de uma retórica nacionalista para assegurar seu poder. Foram estudados dez países8 e, com base neste estudo, os autores consideraram que seu argumento foi demonstrado, reforçando o argumento estatístico e cobrindo eventuais lacunas neste: democracias incompletas entram em guerra com maior freqüência que os demais tipos de governos. Apesar disso, Mansfield e Snyder reconhecem a ocorrência de casos falso-positivos (:227), isto é, aqueles casos em que as estatísticas apontam para um determinado cenário ou conjuntura sem que estes prognósticos estejam acontecendo de fato – no caso estudado, seria a falsa percepção de que um Estado em análise estaria passando por um processo de democratização.
O capítulo 8 apresenta seis estudos de casos não cobertos pelo marco temporal das bases estatísticas, mas que se justificam a partir das exposições causal e teórica apresentadas ao longo do livro9. Estes seis estudos de caso aconteceram entre os anos de 1992 e 2000. Apesar de podermos criticar a escolha destes casos por não se adequarem confortavelmente à idéia de conflitos internacionais, tal como mencionado quando da especificação do tipo de guerra a que os autores se referem, isso não parece ser um problema para a demonstração do argumento causal de Mansfield e Snyder. A crítica quanto à falta de argumentos estatísticos que aumentariam a confiabilidade da análise destes casos pode ser matizada pelo curto tempo entre a ocorrência dos casos e a época de seu estudo. Estes casos demonstram que a existência de instituições fracas é agravada com o aumento da participação popular na política, acarretando ondas de nacionalismo – étnico e contra-revolucionário10 – e violência.
Electing to Fight é um livro em que os argumentos são apresentados de maneira cuidadosa e ricamente justificados por dados e estudos de casos. A crítica desenvolvida aos processos de democratização promovidos por Estados em outras regiões do globo é contundente e proporciona ao leitor elementos para refletir sobre quando e como estes processos devem ser estimulados e que, uma vez iniciados, devem ser prosseguidos até o fim. Caso tais cuidados não sejam observados, o potencial de estes Estados entrarem em guerra, desestabilizando a região, pode aumentar. A análise dos dados e casos demonstra que, para os autores, os processos de democratização não devem ser vistos em apenas um momento, mas como parte integrante da dinâmica política de um Estado em médio e longo prazos.
Vale destacar também que, apesar de os autores ressaltarem que não é o objetivo de Electing to Fight tratar da democratização e sua relação com a ocorrência de guerras étnicas e civis (:7), os argumentos causais de Mansfield e Snyder podem ser usados para trabalhar estes tipos de conflito, tal como o exemplo da Rússia, no capítulo 8. As guerras a que os autores se referem são as internacionais, travadas entre Estados, como pode ser percebido a partir da análise dos estudos de casos e dos dados compilados pelos autores ao longo da obra, especialmente no seu Apêndice (:285-287). Contudo, nos Estados que sofrem com a instabilidade política doméstica causada por estas guerras internas, o fortalecimento das instituições também serviria como garantia aos grupos em conflito de que seus adversários obedecerão às normas e procedimentos políticos. Desta forma, cada um dos grupos em disputa poderia prever as ações de seus adversários e responder a elas com base nos mecanismos políticos existentes, evitando que aconteça o "dilema de Clausewitz às avessas"11 (Miall, Ramsbotham e Woodhouse, 1999). Portanto, a teoria desenvolvida em Electing to Fight pode guiar o estudo dessas novas guerras, que envolveriam elementos intra-estatais.
O trabalho de Mansfield e Snyder torna-se particularmente preciso e convincente quando tomamos em consideração a apresentação de casos tidos como falso-positivos. A ressalva da existência desse tipo de caso nos mostra que, dentro do período estudado – 1816 a 1992 –, os elementos estatísticos verificadores de democratização utilizados na comprovação da teoria podem nos levar a crer que guerras foram iniciadas por Estados que aparentam passar por um processo de democratização, quando de fato não passam por tal processo. Tal postura dos autores demonstra honestidade intelectual e a seriedade de seu trabalho, pois não há aproveitamento indevido de exemplos que fortaleceriam sua teoria em detrimento da veracidade da análise proposta. Assim, se por um lado Mansfield e Snyder diminuem o leque empírico apresentado que justificaria o seu argumento, por outro transmitem ao leitor a idéia de que os casos expostos são fortes o suficiente para sustentar a tese desenvolvida na obra.
Electing to Fight presta ainda uma grande contribuição à idéia institucional que sustentaria a teoria da paz democrática (Russett, 1993): para os defensores desta teoria, a existência de instituições políticas fortes e estáveis permitiria que os diferentes grupos políticos dentro do Estado cooperassem, buscando atingir melhores resultados. Tal esforço seria reconhecido por outros Estados democráticos, que estabeleceriam relações pacíficas uns com os outros. Mansfield e Snyder salientam a importância destas instituições, apontando que sem elas a lacuna entre o processo de democratização promovido especialmente pelos EUA em diferentes países do globo e a paz internacional seria cada vez maior.
Notas
1. Como exemplo dos diversos textos que trabalham esta teoria, ver Mansfield e Snyder (1995a) e, principalmente, as referências apontadas na nota 3 abaixo.
2. Todas as citações foram traduzidas do inglês para o português pelo autor da resenha.
3. Dentre os artigos escritos pelos autores sobre o tema, podemos mencionar: "Democratization and the Danger of War" (1995a), "The Effects of Democratization on War" (1995b), "Democratization and War (1995c)", "Democratic Transitions and War: From Napoleon to the Millenniums End" (2001) e "Incomplete Democratization and the Outbreak of Military Disputes" (2002). Porém, em Electing to Fight, os autores afirmam que não são contrários à idéia da paz democrática, mas sim aos mecanismos utilizados para atingi-la, sem que sejam observadas e respeitadas as particularidades de cada país (:283).
4. O termo "anocracia" – em português, um neologismo – veio substituir a expressão "regimes mistos" utilizada em seus artigos anteriores.
5. Democracias incompletas seriam aqueles Estados em que a transição de um regime de natureza autocrática ou mista (agora, anocrática) para a democracia – conforme nota 4 – fora interrompida antes da sua conclusão (:4).
6. A base de dados Polity é um projeto desenvolvido originalmente pelo professor Ted Robert Gurr e que atualmente está em sua quarta "versão" (Polity IV), cobrindo as transições acontecidas entre os anos de 1800 e 2004. A base de dados contém informações sobre regimes e características de governo para todos os Estados com população igual ou maior a 500 mil indivíduos. Os autores de Electing to Fight valeram-se da terceira "versão", Polity III, para os argumentos do seu livro, vindo daí o seu marco temporal de análise menor. Maiores informações sobre o Polity em
7. O projeto COW foi iniciado em 1963 pelo professor J. David Singer, da Universidade de Michigan, e tem como objetivo compilar informações e dados sistemáticos sobre a guerra. Atualmente, ele é coordenado pelo professor Paul Diehl e constitui-se em uma das fontes mais confiáveis de dados sobre conflitos. Maiores informações em
8. Estes países são: França, Sérvia, Prússia/Alemanha, Chile, Iraque, Argentina, Turquia, Guatemala, Estados Unidos e Tailândia.
9. As guerras envolvendo Armênia e Azerbaijão, Equador e Peru, Etiópia e Eritréa, Paquistão e Índia, a guerra do Kosovo e a guerra entre Ruanda e Burundi. Os autores também trabalham com o caso da Rússia e da Chechênia, mas não o consideram um conflito interestatal como os seis acima, pois seria um exemplo de conflito intra-estatal.
10. Edward Mansfield e Jack Snyder (:52) definem como nacionalismo étnico aquele que se identifica com sentimentos de cultura ou pertencimento a determinado grupo, seja ele estatal ou não-estatal. Este tipo de fidelidade é a forma que vemos como predominante desde a segunda metade do século XX. Por outro lado, o chamado nacionalismo cívico seria aquele demonstrado em relação a instituições políticas estatais.
11. Clausewitz apontava que a guerra é a continuação da política com a interposição de outros meios. Assim, o dilema de Clausewitz às avessas indicaria que a política adotada em um cenário de pós-guerra seria a continuação dos conflitos, mas por meio da violência não-militar. Sobre o assunto, ver Miall, Ramsbotham e Woodhouse (1999:188-189).
Referências Bibliográficas
MANSFIELD, Edward D. e SNYDER, Jack. (1995a), "Democratization and the Danger of War". International Security, vol. 20, nº 1, pp. 5-38.
____. (1995b), "The Effects of Democratization on War". International Security, vol. 20, nº 4, pp. 196-207.
____. (1995c), "Democratization and War". Foreign Affairs, vol. 74, nº 3, pp. 79-97.
____. (2001), "Democratic Transitions and War: From Napoleon to the Millenniums End", in C. Crocker, F. O. Hampson e P. Aall (eds.), Turbulent Peace: The Challenges of Managing International Conflicts. Washington, United States Institute of Peace Press, pp. 113-126.
____. (2002), "Incomplete Democratization and the Outbreak of Military Disputes". International Studies Quarterly, vol. 46, nº 4, pp. 529-549.
MIALL, Hugh, RAMSBOTHAM, Oliver e WOODHOUSE, Tom. (1999), Contemporary Conflict Resolution. Cambridge, Polity Press.
RUSSETT, Bruce. (1993), Grasping the Democratic Peace: Principles for a Post-cold War World. Ewing, Princeton University Press.
I Mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio). Professor do curso de graduação em Relações Internacionais da PUC-Rio. Pesquisador do Grupo de Análise e Prevenção de Conflitos Internacionais (GAPCon).
Revista Contexto Internacional - PUC-RJ
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