Cultura e economia: a busca de uma teoria do consumo
Thais Alves Marinho
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). Linha de pesquisa: arte, cultura e pensamento social. E-mail: thais_marinho@hotmail.com
Thais Alves Marinho
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). Linha de pesquisa: arte, cultura e pensamento social. E-mail: thais_marinho@hotmail.com
DOUGLAS, M. O mundo dos bens, vinte anos depois. Revista Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 13, n. 28, jul./dez. 2007.
_______; ISHERWOOD, B. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.
Cultura e economia são categorias habitualmente identificadas com esferas distintas da atividade humana no âmbito das ciências sociais. O debate sobre tal diferenciação e aproximação se inicia, recentemente, em um contexto de globalidade, em que formas tecnológicas de vida se desenvolvem, propiciando, entre outros, um gigantesco fluxo de informações e produtos, transformações que tendem a confundir, cada vez mais, os limites entre as esferas, vislumbradas, especialmente, por práticas de consumo e discussões sobre uma teoria do consumo.
O livro O mundo dos bens, de Mary Douglas e Baron Isherwood (2004, 2007), dá um passo fundamental nessa aproximação entre cultura e economia. Propõe uma aliança entre a antropologia e a ciência econômica, acoplando estudos de economias de mercado, dos economistas e economias de dádiva, dos antropólogos, sugerindo uma definição de rede social de pobreza, na qual os bens não são necessários por eles mesmos, mas pelas relações sociais que sustentam.
Os bens, para os autores, seriam marcadores (classificadores) sociais, constitutivos de um sistema vivo de informações, que se contemplam na interação com os indivíduos e com os outros bens; logo, na sociedade moderna, o consumo aparece como construtor de identidades e de processos de significação, pela interação. Os bens só possuem nexo dentro da interação humana, são construtores ou solventes de fronteiras, são necessários para dar visibilidade e estabilidade às categorias da cultura, já que se consome para o outro. "O consumo é um processo ativo em que todas as categorias sociais estão sendo continuamente redefinidas " (p. 112), corroborando a perspectiva de que cultura é um processo dinâmico feito por indivíduos em interação e de que o foco deve ser justamente a função comunicativa dos bens, como nos pressupostos interacionistas.
Os autores ressaltam que o indivíduo a ser considerado como consumidor não deve ser o que busca consumir apenas para sua satisfação física, para seu uso privado ou familiar; ele não escolhe meramente objetos e coisas, como na teoria da dádiva. Segundo Douglas (2007)1,
[...] o consumidor é inerentemente um animal social, o consumidor não quer objetos para ele mesmo, mas para dividir, dar, e não só dentro da família. O maquinário da teorização e medição econômica foi criado para a idéia de que o consumo é uma atividade de indivíduos. A teoria está presa nessa noção. [...] A teoria deveria começar com seres inteligentes que têm o suficiente para viver e mesmo assim conseguem matar a fome de alguns de seus iguais. Pobreza é uma questão de como as pessoas tratam umas às outras, e isso precisa de um enquadramento sociológico.
Dessa forma, o indivíduo deve ser encarado como ser comunicativo, dependente de outros, que calculam, negociam, escolhem, maximizam diante de uma rede de interações e significados e que, portanto, possuem algum poder comunicativo inerente, como os bens. As pessoas que consomem compartilham um universo de nomes e classificações, um conhecimento, um saber sobre produtos e serviços, em que o saber é apreendido e classificado culturalmente, pelo consumo. A antropologia tem como foco principal do consumo esse compartilhamento de saberes, de nomes.
Essa visão foi antes negligenciada pelos economistas, que iniciam a análise pelo aspecto meramente físico do consumo, enfatizando necessidade física e básica em detrimento de necessidades sociais: os bens seriam, primordialmente, necessários à subsistência e à exibição competitiva. A esfera do econômico, geralmente, é identificada com a idéia de necessidade, com a qual participa no quadro de diversas outras associações simbólicas que são importantes para a compreensão de sua evolução. Entre elas, encontram-se as que aproximam o econômico de idéias ou categorias, também historicamente mutáveis, como as de subsistência e escassez, de natureza e animalidade, de produção, trabalho e consumo, de material e vulgar, de riqueza e dinheiro, de racionalidade e egoísmo, enquanto que a esfera da cultura é claramente identificada com a lógica da liberdade, em que a principal necessidade suprida pelo consumo é a simbólica.
A intenção dos autores, ao fazer essas ponderações, não é adotar um discurso normativo, mas apontar a urgência de um projeto que estabeleça uma base teórica para estudar o consumo, que leve em consideração a importância da ótica antropológica e cultural, em contraste com os argumentos economicistas predominantes. Para tanto, criticam a economia neoclássica, que lança mão de abordagens utilitaristas, naturalistas, hedonistas do consumo, bem como as teorias de emulação estabelecidas a partir de Veblen.
Os autores atentam para a arduidade de tal projeto, que não pretende se esgotar nessa obra, mas, sim, servir de estímulo ao propor uma nova abordagem epistemológica sobre o consumo e fomentar o debate em torno desse objeto, sugerindo uma perspectiva diferente para a política social.
Como sistema de informação, os bens dizem respeito, também, às relações de poder. Os autores rejeitam a idéia de que o consumidor, como indivíduo, deva ser considerado manipulável, seja pela publicidade, seja pela mídia. Essa perspectiva se ampara na crença dos economistas em uma teoria que seja moralmente neutra e vazia de julgamento e na busca da mesma, o que os alija da responsabilidade da crítica social (p. 141-142). Na perspectiva dos autores, o poder é mantido e exercido de maneiras múltiplas e diferenciadas. A abordagem antropológica, nesse sentido, é fundamental, já que captura todo o espaço de significação em que os objetos são usados depois de comprados, pois toma a realidade social como dada e socialmente construída, sem desvincular cultura de organização, embora marginalize a estrutura social.
Como parte de nexos de poder (informação), as esferas do consumo são distintas, hierarquizadas e fornecem uma base para se discernir entre bens. Assim, fala-se em bens de luxo, bens necessários ou básicos, entre outros. Os bens de luxo, em uma sociedade diversificada, também possuem demandas diversificadas e, paradoxalmente, existe uma tendência à padronização, ao mesmo tempo em que distinguem, padronizam, mediante competição e controle social acirrado ou forte. Nessa perspectiva, pequenas diferenças fariam grande diferença. Assim, produção e consumo fazem parte de um sistema circular, no qual a divisão dos bens é a expressão da divisão social e resulta em diferenças nas escalas de consumo. Os bens reais seriam "a ponta visível do iceberg " e o que está submerso é um universo informacional, de classificações de nomes, lugares, pessoas, objetos, datas, etc.
Os autores seguem afirmando existir uma competição para adquirir bens na classe de informação, o que gera barreiras para admissão e técnicas de exclusão no grupo, visto que, independentemente da (in)justiça da distribuição de produção e oportunidades educacionais, os consumidores tendem a criar círculos internos exclusivos e a controlar o acesso a certos tipos de informação. Os grandes consumidores de informação são também os grandes produtores de bens de informação e todo o público usa o setor de informação.
A pobreza seria definida, então, pelo tipo de relacionamento do indivíduo com a informação. É nessa perspectiva que os bens marcam a pobreza, não pela quantidade em que são consumidos ou não consumidos, mas pela reciprocidade, pelo consumo de bens semelhantes trocados dentro de cada esfera, gerando um arcabouço de conhecimento e não se relacionando com outros de outra esfera, pela exclusão da rede de saberes constituída pela troca desses bens. Entretanto, dispor do bem em si não constitui a única possibilidade de consumo: esta pode ser realizada pelo consumo da informação sobre o produto, informação esta potencialmente admitida nos rituais das esferas mais ricas. Mesmo alijado do bem materialmente constituído, o indivíduo pode ser socialmente aceito, pois há um saber em comum a ser compartilhado, ainda que subjetivamente.
Essa admissão na classe mais elevada seria fundamental, já que possibilitaria o acesso à informação e o domínio da mesma e da competência de julgamento dos bens e serviços de informação, que podem vir a ser uma qualificação para o emprego nesse setor mais bem pago. Assim, ingressar no setor de serviços do sistema produtivo é mais fácil pela entrada prévia na classe social que consome o conjunto dos bens de informação. O consumo, agora, aparece associado com ganhos da economia como um todo.
Os autores finalizam o livro chamando a atenção para a importância da periodicidade no consumo e a sincronização das responsabilidades. Ressaltam a multidisciplinaridade de tal objeto, evocando para o debate os sociólogos que poderiam contribuir na construção da ponte que une as esferas da cultura e da economia, ultrapassando a visão materialista que os economistas têm do consumo e fortalecendo a posição dos antropólogos de que a teoria do consumo é parte do problema da pobreza, complementando a explicação que é limitada ao resultado do sistema de produção, usualmente posto.
1 Artigo publicado na Revista Horizontes Antropológicos em 2007, fruto de uma conferência em Birbeck, em 1999, para o Warwick Luxury Project, intitulado O mundo dos bens, vinte anos depois.
Revista Sociedade e Estado - UNB
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