As funções da sombra
11/Jul/98
Luiz Marques
MICHAEL BAXANDALL
Provavelmente a mais ambiciosa abordagem da problemática da percepção da luz e da sombra na pintura permaneça a obra de Wolfgang Schöne, "Sobre a Luz na Pintura" (1951). Uma outra obra fundamental dedicada à luz na pintura é "O Fogo dos Signos"(1962), de Georges Duthuit. "Sombras e Luzes" ("Shadows and Enlightenment"), de Baxandall, situa-se em uma perspectiva totalmente alheia às ressonâncias metafísicas (ou fenomenológicas) que ecoam nos textos anteriores.
Embora não inteiramente desconhecido em língua portuguesa, Baxandall pode ser um nome ainda pouco familiar ao leitor brasileiro. Donde a eventual conveniência de iniciar esta resenha advertindo o leitor de que se lhe propõe uma obra de um dos mais importantes historiadores da arte da atualidade.
Baxandall é um representante emérito da grande tradição de exegética das imagens, tal como a conceberam e a desenvolveram desde o início dos anos 30 os estudiosos reunidos em torno da biblioteca e fototeca do Warburg Institute (da Universidade de Londres), onde, de resto, o autor foi por muito tempo professor de história da tradição clássica. No curso de quase 30 anos, cada novo livro de Baxandall tem sempre sido um fato não-negligenciável no panorama da ensaística em história da arte.
O traço mais imediatamente saliente da imagem projetada pelo conjunto de sua obra é a estonteante diversidade. Em 1971, Baxandall publica seu "Giotto and the Orators" (Giotto e os Oradores), no qual propõe articulações delicadas entre a arte do pintor e o discurso proto-humanista criado pela primeira geração de intelectuais do "trecento" florentino. Embora criticada, com ponderáveis argumentos, por Roberto Salvini, então professor da Universidade de Florença, a obra permanece, a meu ver, como uma das mais importantes contribuições à interpretação da obra de Giotto no âmbito da historiografia artística de língua inglesa.
No ano seguinte, surge um magnífico "pendant" deste primeiro volume, focalizando desta feita a pintura italiana (e sobretudo florentina) do século 15. A obra, conhecida entre nós como "O Olhar Renascente", tinha no original um título sóbrio: "Pintura e Experiência no Século 15". Tratava-se de um outra empresa, não menos delicada, de articulação entre séries, desta vez entre história da arte e história social, esforço aparentemente já tentado apenas pelas tantas "sociologias" ou histórias "sociais" da arte, já que não se tratava de mais uma forma de encontrar na dinâmica das práticas sociais ou da história social qualquer instância de causação da imaginação artística, mas sim de "mostrar em que o estilo das pinturas era um material pertinente para a história social".
Dir-se-ia que o exame da pintura italiana, de Giotto ao pleno Renascimento, pavimentara para Baxandall a via para incursões em áreas já relativamente distantes da Itália dos séculos 14 e 15, embora com ela ainda muito relacionadas. Seu outro grande livro, já de 1980 ("The Limewood Sculptors of Renaissance Germany"), enfoca com efeito a arte dos escultores em "madeira de tília" do Renascimento germânico, como Veit Stoss (1438/47-1533) e Hans Leinberger (1480-1531/35), ativos sobretudo em centros de intenso intercâmbio com a Itália, como Augsburg e Nurembergue.
A obra, que infelizmente não pude ainda senão folhear, traz um enfoque metodologicamente semelhante ao das duas anteriores, aplicado agora aos problemas postos pela tensão entre humanismo e Reforma.
Em 1985, Baxandall publicou um livro notável, que representa uma verdadeira guinada em sua obra, seja pelo brusco abandono do período histórico em que se detivera em suas obras anteriores, seja principalmente pelo tipo de questão, de natureza propriamente teórica, que passa a procurar responder. O livro, intitulado "Padrões de Intenção - Sobre a Explicação Histórica das Pinturas", partia da seguinte consideração: se pinturas não se explicam, de vez que só podemos explicar as descrições verbais que elas engendram, só podemos abordá-las, por conseguinte, por inferência -donde o conceito de "crítica por inferência".
O que, então, se está a significar quando se infere em uma pintura um padrão qualquer de volição ou intenção? Em outras palavras, quais são as condições sob as quais se torna possível um exame da "relação das pinturas com as idéias sistemáticas de seu tempo"?
Na obra de 1985, o mais desenvolvido "caso" de análise desta relação é fornecido por uma obra-prima de Jean-Baptiste-Siméon Chardin (1699-1779), "Uma Dama Tomando Chá", de 1735, conservada no extraordinário Museu da Universidade de Glasgow.
Na obra agora editada, é de novo Chardin, ao lado de Subleyras e Oudry, o artista a partir do qual se entretecem as relações examinadas entre as histórias da arte, da filosofia e da ciência. Na realidade, pelos partidos teóricos adotados, pelas relações entre Chardin e a fisiologia da percepção visual no século 18, a obra de 1985 é quase uma premissa para se compreender, não tanto os conteúdos particulares da obra que aqui se apresenta, mas sobretudo a perspectiva mais ampla em que se situa o conjunto da pesquisa de Baxandall: entender a história da arte e as histórias de outras séries sociais ou intelectuais "como um todo, cada uma oferecendo a outra um indispensável instrumento de compreensão".
O que é evidentemente novo em "Sombras e Luzes" é o jogo de estreitíssimas relações observadas no século 18 entre artista e cientista na observação comum das funções da sombra na percepção. Mais do que isso: se a obra de 1985 era ainda, conquanto eminentemente teórica, um ensaio em história da arte, "Sombras e Luzes" mantém com esta disciplina apenas relações intermitentes, de vez que, como afirma Baxandall, é ele uma "ramificação de um trabalho em andamento sobre os problemas da atenção visual no pensamento do século 18, no pensamento moderno e na arte da pintura".
Trata-se, antes, de um livro sobre a sombra e sobre seu papel "em nossa experiência visual". Deve-se admitir que o livro cativa a atenção do leitor somente vencido o primeiro capítulo, ao longo do qual o autor se detém na explicitação de sua terminologia. É mesmo possível arriscar a sugestão de simplesmente iniciar a leitura a partir da pág. 35, isto é, a partir do segundo capítulo do livro, seu verdadeiro ponto de partida. E o ponto de partida de Baxandall é Locke, graças a cujo empirismo o século 18 conta desde logo com uma arguta reflexão de como obtemos -pela experiência- "uma percepção do mundo tridimensional a partir do arranjo bidimensional dos estímulos sobre a retina".
A formulação de Locke, também conhecida como o "problema de Molyneux", mobiliza o melhor da imaginação filosófica anglo-francesa do século 18, desde a crítica nativista de Leibniz até a retomada das teses empiristas por Berkeley, adentrando ao mesmo tempo pela emergente pesquisa médico-científica. Neste âmbito, o famoso Caso Cheselden, de 1728, uma operação de catarata em um menino de 13 anos, propunha de novo o mesmo problema da percepção visual da forma tridimensional pelo sombreamento, desta vez contudo num registro experimental. O problema das relações entre visão e tato ganha outra dimensão com a assim chamada "estátua de Condillac" e com a ulterior apropriação do "problema de Molyneux" pela filosofia francesa, até Diderot e Rousseau.
A convicção comum a tão diversas abordagens do problema é a de que "a sombra deve de algum modo ser fundamental na nossa percepção do mundo". Chega-se então ao terceiro capítulo, que se abre com um dos mais belos momentos do livro, a análise do "Caronte", de Pierre Subleyras (1746). Está estabelecido, a partir de então, sobre uma base ao mesmo tempo filosófica, médico-científica e artística, o conjunto de saberes que veio a se chamar, modernamente, a ciência cognitiva, tema de fundo ao qual remete incessantemente o livro de Baxandall.
Luiz Marques é professor de história da arte na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Folha de São Paulo
11/Jul/98
Luiz Marques
MICHAEL BAXANDALL
Provavelmente a mais ambiciosa abordagem da problemática da percepção da luz e da sombra na pintura permaneça a obra de Wolfgang Schöne, "Sobre a Luz na Pintura" (1951). Uma outra obra fundamental dedicada à luz na pintura é "O Fogo dos Signos"(1962), de Georges Duthuit. "Sombras e Luzes" ("Shadows and Enlightenment"), de Baxandall, situa-se em uma perspectiva totalmente alheia às ressonâncias metafísicas (ou fenomenológicas) que ecoam nos textos anteriores.
Embora não inteiramente desconhecido em língua portuguesa, Baxandall pode ser um nome ainda pouco familiar ao leitor brasileiro. Donde a eventual conveniência de iniciar esta resenha advertindo o leitor de que se lhe propõe uma obra de um dos mais importantes historiadores da arte da atualidade.
Baxandall é um representante emérito da grande tradição de exegética das imagens, tal como a conceberam e a desenvolveram desde o início dos anos 30 os estudiosos reunidos em torno da biblioteca e fototeca do Warburg Institute (da Universidade de Londres), onde, de resto, o autor foi por muito tempo professor de história da tradição clássica. No curso de quase 30 anos, cada novo livro de Baxandall tem sempre sido um fato não-negligenciável no panorama da ensaística em história da arte.
O traço mais imediatamente saliente da imagem projetada pelo conjunto de sua obra é a estonteante diversidade. Em 1971, Baxandall publica seu "Giotto and the Orators" (Giotto e os Oradores), no qual propõe articulações delicadas entre a arte do pintor e o discurso proto-humanista criado pela primeira geração de intelectuais do "trecento" florentino. Embora criticada, com ponderáveis argumentos, por Roberto Salvini, então professor da Universidade de Florença, a obra permanece, a meu ver, como uma das mais importantes contribuições à interpretação da obra de Giotto no âmbito da historiografia artística de língua inglesa.
No ano seguinte, surge um magnífico "pendant" deste primeiro volume, focalizando desta feita a pintura italiana (e sobretudo florentina) do século 15. A obra, conhecida entre nós como "O Olhar Renascente", tinha no original um título sóbrio: "Pintura e Experiência no Século 15". Tratava-se de um outra empresa, não menos delicada, de articulação entre séries, desta vez entre história da arte e história social, esforço aparentemente já tentado apenas pelas tantas "sociologias" ou histórias "sociais" da arte, já que não se tratava de mais uma forma de encontrar na dinâmica das práticas sociais ou da história social qualquer instância de causação da imaginação artística, mas sim de "mostrar em que o estilo das pinturas era um material pertinente para a história social".
Dir-se-ia que o exame da pintura italiana, de Giotto ao pleno Renascimento, pavimentara para Baxandall a via para incursões em áreas já relativamente distantes da Itália dos séculos 14 e 15, embora com ela ainda muito relacionadas. Seu outro grande livro, já de 1980 ("The Limewood Sculptors of Renaissance Germany"), enfoca com efeito a arte dos escultores em "madeira de tília" do Renascimento germânico, como Veit Stoss (1438/47-1533) e Hans Leinberger (1480-1531/35), ativos sobretudo em centros de intenso intercâmbio com a Itália, como Augsburg e Nurembergue.
A obra, que infelizmente não pude ainda senão folhear, traz um enfoque metodologicamente semelhante ao das duas anteriores, aplicado agora aos problemas postos pela tensão entre humanismo e Reforma.
Em 1985, Baxandall publicou um livro notável, que representa uma verdadeira guinada em sua obra, seja pelo brusco abandono do período histórico em que se detivera em suas obras anteriores, seja principalmente pelo tipo de questão, de natureza propriamente teórica, que passa a procurar responder. O livro, intitulado "Padrões de Intenção - Sobre a Explicação Histórica das Pinturas", partia da seguinte consideração: se pinturas não se explicam, de vez que só podemos explicar as descrições verbais que elas engendram, só podemos abordá-las, por conseguinte, por inferência -donde o conceito de "crítica por inferência".
O que, então, se está a significar quando se infere em uma pintura um padrão qualquer de volição ou intenção? Em outras palavras, quais são as condições sob as quais se torna possível um exame da "relação das pinturas com as idéias sistemáticas de seu tempo"?
Na obra de 1985, o mais desenvolvido "caso" de análise desta relação é fornecido por uma obra-prima de Jean-Baptiste-Siméon Chardin (1699-1779), "Uma Dama Tomando Chá", de 1735, conservada no extraordinário Museu da Universidade de Glasgow.
Na obra agora editada, é de novo Chardin, ao lado de Subleyras e Oudry, o artista a partir do qual se entretecem as relações examinadas entre as histórias da arte, da filosofia e da ciência. Na realidade, pelos partidos teóricos adotados, pelas relações entre Chardin e a fisiologia da percepção visual no século 18, a obra de 1985 é quase uma premissa para se compreender, não tanto os conteúdos particulares da obra que aqui se apresenta, mas sobretudo a perspectiva mais ampla em que se situa o conjunto da pesquisa de Baxandall: entender a história da arte e as histórias de outras séries sociais ou intelectuais "como um todo, cada uma oferecendo a outra um indispensável instrumento de compreensão".
O que é evidentemente novo em "Sombras e Luzes" é o jogo de estreitíssimas relações observadas no século 18 entre artista e cientista na observação comum das funções da sombra na percepção. Mais do que isso: se a obra de 1985 era ainda, conquanto eminentemente teórica, um ensaio em história da arte, "Sombras e Luzes" mantém com esta disciplina apenas relações intermitentes, de vez que, como afirma Baxandall, é ele uma "ramificação de um trabalho em andamento sobre os problemas da atenção visual no pensamento do século 18, no pensamento moderno e na arte da pintura".
Trata-se, antes, de um livro sobre a sombra e sobre seu papel "em nossa experiência visual". Deve-se admitir que o livro cativa a atenção do leitor somente vencido o primeiro capítulo, ao longo do qual o autor se detém na explicitação de sua terminologia. É mesmo possível arriscar a sugestão de simplesmente iniciar a leitura a partir da pág. 35, isto é, a partir do segundo capítulo do livro, seu verdadeiro ponto de partida. E o ponto de partida de Baxandall é Locke, graças a cujo empirismo o século 18 conta desde logo com uma arguta reflexão de como obtemos -pela experiência- "uma percepção do mundo tridimensional a partir do arranjo bidimensional dos estímulos sobre a retina".
A formulação de Locke, também conhecida como o "problema de Molyneux", mobiliza o melhor da imaginação filosófica anglo-francesa do século 18, desde a crítica nativista de Leibniz até a retomada das teses empiristas por Berkeley, adentrando ao mesmo tempo pela emergente pesquisa médico-científica. Neste âmbito, o famoso Caso Cheselden, de 1728, uma operação de catarata em um menino de 13 anos, propunha de novo o mesmo problema da percepção visual da forma tridimensional pelo sombreamento, desta vez contudo num registro experimental. O problema das relações entre visão e tato ganha outra dimensão com a assim chamada "estátua de Condillac" e com a ulterior apropriação do "problema de Molyneux" pela filosofia francesa, até Diderot e Rousseau.
A convicção comum a tão diversas abordagens do problema é a de que "a sombra deve de algum modo ser fundamental na nossa percepção do mundo". Chega-se então ao terceiro capítulo, que se abre com um dos mais belos momentos do livro, a análise do "Caronte", de Pierre Subleyras (1746). Está estabelecido, a partir de então, sobre uma base ao mesmo tempo filosófica, médico-científica e artística, o conjunto de saberes que veio a se chamar, modernamente, a ciência cognitiva, tema de fundo ao qual remete incessantemente o livro de Baxandall.
Luiz Marques é professor de história da arte na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Folha de São Paulo
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