O fogo de maio
13/Jun/98
Emir Sader
O COMEÇO DO FIM - FRANÇA MAIO DE 68 /LIVRO/; COMBATE NAS TREVAS /LIVRO/
Quando identificou a França com um "laboratório de experiências políticas", Engels tinha em mente 1789, 1848 e 1871, revoluções que lá ocorreram antes, de forma radicalizada e paradigmática. A partir de então, Engels voltou seus olhos mais para a Alemanha. O século 20, no entanto, assistiu, depois da derrota da revolução alemã no início da década de 20, o retorno da França àquele papel, seja com a Frente Popular em 1936 ou, principalmente, com as barricadas de 68. O caráter revolucionário destes movimentos, únicos desde a Comuna de Paris, explica a mística criada a seu redor.
Muito se teorizou sobre 1968. Quando o fogo de maio ainda produzia fervura, as interpretações variavam da idéia de um "ensaio geral" na mais articulada versão trotskista, a de Daniel Bensaid e Henri Weber, uma espécie de 1905 russo, antevéspera do outubro de 1917, à tese de um renascimento do ideário anarquista, agora sob a forma de uma rejeição radical da sociedade de consumo de que o livro de Guy Debord ("A Sociedade do Espetáculo", Ed. Contraponto) é a melhor expressão.
No novo cenário das décadas de 70 e 80, as análises adquiriram o tom da virada conservadora, especialmente forte na França. No seu décimo aniversário, Régis Debray se encarregou de fazer a mais difundida nota fúnebre e "desmistificadora" de 68. Os "novos filósofos" fizeram muito mais do que isso -associaram a utopia aos gulags, unindo-se alegremente ao ascendente coro direitista.
Trinta anos depois, vivemos a antítese de 68: da internacionalização das idéias à internacionalização do capital financeiro; da descoberta de uma nova subjetividade à hegemonia da subordinação a leis supostamente inelutáveis da objetividade; do antiburocratismo e do antitecnocratismo ao império do "economicamente correto"; da luta contra a alienação à submissão às novas formas mediáticas, esotéricas e místicas de reificação; do despertar da consciência à defesa da apatia; da rebeldia intelectual radical à corrupção, de parte da intelectualidade, pelos corredores do poder.
"O Começo do Fim" contém dois textos escritos no fragor das barricadas: o relato "O Que Aconteceu?", de Angelo Quattrocchi, um anarquista residente no Quartier Latin em 68, e a explicação "Por Que Aconteceu", do britânico Tom Nairn, de quem já conhecemos, junto com Perry Anderson, "As Origens da Crise Presente", uma interpretação alternativa às visões historiográficas tradicionais da Inglaterra, que desatou a prolongada polêmica, no começo dos anos 60, entre o jovem grupo de intelectuais que passaram a dirigir a New Left Review e E.P. Thompson.
Quattrocchi e Nairn se associaram na empresa de vislumbrar "a lua dourada que iluminou tais eventos" imbuídos de "uma paixão digna do povo francês, que naqueles dias rompeu as regras vetustas da história, tornando-a visível". Para quem renegou suas paixões de juventude em nome da "utopia do possível" e das tantas éticas que a coluna dorsal consegue abarcar, soa como "mastodôntico". Para quem viveu depois dos 60, pode parecer "pré-histórico". Ambos concordariam, ao contrário, com as palavras de um dos protagonistas daquela década: "Ainda consideraremos um privilégio ter feito 20 anos nos anos 60".
O relato de Quattrochi é uma espécie de roteiro dos acontecimentos, da Universidade de Nanterre, passando pela fábrica de Billancourt até desembocar na rua Mouffetard, no Quartier Latin, na vertigem entre maio e junho. As legendas são as "palavras de ordem" de 68: "Seja realista: peça o impossível", "É proibido proibir", "Corra: o velho mundo está atrás de você", "A imaginação ao poder", "Debaixo do paralelepípedo, a praia", numa espécie de "Diário do Assalto ao Céu". Os ícones eram claros: Sartre, como intelectual revolucionário; Marcuse, como teórico; Guevara, enquanto político revolucionário.
A frase "revoluções são o êxtase da história: o momento (o ato de amor) em que a realidade social e o sonho social se fundem" sintetiza a orientação do roteiro. Trata-se de uma outra versão para as palavras coincidentes de Lenin e de Guevara: "Quando o extraordinário torna-se cotidiano, é a revolução". Aborda-se uma situação excepcional, quando as contradições deixam de se esconder por debaixo dos discursos parlamentares e presidenciais, das mensagens da grande imprensa, para sair nuas às praças e avenidas. Para descrever esse momento mágico, mas não menos real e lógico, Quattrochi apela para as metáforas, encontrando nos cartazes um material fértil: "Um prazer tem a burguesia, o de degradar todos os prazeres", "considero meus desejos uma realidade, porque acredito na realidade dos meus desejos", "quando a assembléia geral se transforma num teatro burguês, os teatros burgueses devem transformar-se em assembléia geral". É nesse ritmo alucinante que a narrativa de Quattrochi consegue reproduzir, tanto quanto possível, a vertigem daqueles dias.
A análise de Nairn sobre o "porque" surpreende logo na abertura ao afirmar que 68 "falhou por sua excepcional grandeza e ineditismo". O acúmulo de significações já a tornara insuportável para os contemporâneos. No seu maximalismo, o movimento propunha-se a colocar em xeque "não somente a sociedade capitalista, mas também a sociedade industrial" como dizia um documento da época. A imaginação quase se alça ao poder, substituindo o consumismo e a alienação, o que provocou, pelo menos, o "choque revolucionário mais absolutamente inesperado de todo o século 20".
Se 1968 assemelha-se a 1848 pela rapidez de difusão para outros países e, neste caso, para outros continentes, a hegemonia ideológica do anarquismo o aproxima da Comuna de 1871, pela riqueza dos questionamentos libertários e pela espontaneidade, tanto na sua força e quanto nas suas fraquezas. A apologia da ação, como destaca Nairn, era acompanhada de uma crítica da teoria, expressa de forma radical numa frase escrita nas paredes de Nanterre: "Não existem idéias revolucionárias, apenas ações revolucionárias".
"Começo do fim ou fim do começo"? O certo é que foi um momento de transição: ampliou-se, na prática social, o campo das contradições, ampliadas doravante pela inclusão das relações de gênero, raça etc. Quebrou-se o monopólio do marxismo pelos partidos comunistas. Reatualizou-se a idéia de revolução, muito além das instâncias parlamentares e sindicais. O movimento termina em Praga, com a última tentativa de transformar o socialismo soviético pela esquerda, mediante sua democratização, com o "socialismo de rosto humano" de Dubcek. Dali para frente prosperaram as oposições de direita, a restauração capitalista. Renasceu também o liberalismo como crítica do Estado de Bem-Estar Social, enquanto a intelectualidade dividia-se entre os que reafirmavam os ideais libertários e os que se rendiam às benesses tecnocráticas do poder.
Aproveitando as comemorações dos 30 anos de Maio de 68, reedita-se ainda o livro de Jacob Gorender, uma história da luta armada de esquerda contra a ditadura militar brasileira. Versão reatualizada pela adição de um capítulo final e de um outro, relatando o encontro de Marighella com o general Albuquerque Lima e o atentado no aeroporto de Guararapes. No epílogo, dez anos depois da primeira edição do livro, Gorender constata, por um lado, que os participantes da resistência armada passaram a ser chamados de "guerrilheiros" e não mais de "terroristas", resultado do trabalho de grupos como o Tortura Nunca Mais, as comissões de familiares de presos e a arquidiocese de São Paulo. Por outro lado, teria prosperado, sob a justificativa de superação de maniqueísmos, uma visão "humanizadora" da ditadura, bem representada pelo filme "O Que É Isso, Companheiro".
O ano de 1968 foi para alguns, o "começo do fim", para outros o "fim do começo". Basta ver desde onde olham para trás e para diante para saber o alinhamento de classe de cada um, que passa também pela forma de relatar seu próprio passado.
Emir Sader é professor de sociologia na USP e autor, entre outros livros, de "O Poder, Cadê o Poder?" (Boitempo).
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13/Jun/98
Emir Sader
O COMEÇO DO FIM - FRANÇA MAIO DE 68 /LIVRO/; COMBATE NAS TREVAS /LIVRO/
Quando identificou a França com um "laboratório de experiências políticas", Engels tinha em mente 1789, 1848 e 1871, revoluções que lá ocorreram antes, de forma radicalizada e paradigmática. A partir de então, Engels voltou seus olhos mais para a Alemanha. O século 20, no entanto, assistiu, depois da derrota da revolução alemã no início da década de 20, o retorno da França àquele papel, seja com a Frente Popular em 1936 ou, principalmente, com as barricadas de 68. O caráter revolucionário destes movimentos, únicos desde a Comuna de Paris, explica a mística criada a seu redor.
Muito se teorizou sobre 1968. Quando o fogo de maio ainda produzia fervura, as interpretações variavam da idéia de um "ensaio geral" na mais articulada versão trotskista, a de Daniel Bensaid e Henri Weber, uma espécie de 1905 russo, antevéspera do outubro de 1917, à tese de um renascimento do ideário anarquista, agora sob a forma de uma rejeição radical da sociedade de consumo de que o livro de Guy Debord ("A Sociedade do Espetáculo", Ed. Contraponto) é a melhor expressão.
No novo cenário das décadas de 70 e 80, as análises adquiriram o tom da virada conservadora, especialmente forte na França. No seu décimo aniversário, Régis Debray se encarregou de fazer a mais difundida nota fúnebre e "desmistificadora" de 68. Os "novos filósofos" fizeram muito mais do que isso -associaram a utopia aos gulags, unindo-se alegremente ao ascendente coro direitista.
Trinta anos depois, vivemos a antítese de 68: da internacionalização das idéias à internacionalização do capital financeiro; da descoberta de uma nova subjetividade à hegemonia da subordinação a leis supostamente inelutáveis da objetividade; do antiburocratismo e do antitecnocratismo ao império do "economicamente correto"; da luta contra a alienação à submissão às novas formas mediáticas, esotéricas e místicas de reificação; do despertar da consciência à defesa da apatia; da rebeldia intelectual radical à corrupção, de parte da intelectualidade, pelos corredores do poder.
"O Começo do Fim" contém dois textos escritos no fragor das barricadas: o relato "O Que Aconteceu?", de Angelo Quattrocchi, um anarquista residente no Quartier Latin em 68, e a explicação "Por Que Aconteceu", do britânico Tom Nairn, de quem já conhecemos, junto com Perry Anderson, "As Origens da Crise Presente", uma interpretação alternativa às visões historiográficas tradicionais da Inglaterra, que desatou a prolongada polêmica, no começo dos anos 60, entre o jovem grupo de intelectuais que passaram a dirigir a New Left Review e E.P. Thompson.
Quattrocchi e Nairn se associaram na empresa de vislumbrar "a lua dourada que iluminou tais eventos" imbuídos de "uma paixão digna do povo francês, que naqueles dias rompeu as regras vetustas da história, tornando-a visível". Para quem renegou suas paixões de juventude em nome da "utopia do possível" e das tantas éticas que a coluna dorsal consegue abarcar, soa como "mastodôntico". Para quem viveu depois dos 60, pode parecer "pré-histórico". Ambos concordariam, ao contrário, com as palavras de um dos protagonistas daquela década: "Ainda consideraremos um privilégio ter feito 20 anos nos anos 60".
O relato de Quattrochi é uma espécie de roteiro dos acontecimentos, da Universidade de Nanterre, passando pela fábrica de Billancourt até desembocar na rua Mouffetard, no Quartier Latin, na vertigem entre maio e junho. As legendas são as "palavras de ordem" de 68: "Seja realista: peça o impossível", "É proibido proibir", "Corra: o velho mundo está atrás de você", "A imaginação ao poder", "Debaixo do paralelepípedo, a praia", numa espécie de "Diário do Assalto ao Céu". Os ícones eram claros: Sartre, como intelectual revolucionário; Marcuse, como teórico; Guevara, enquanto político revolucionário.
A frase "revoluções são o êxtase da história: o momento (o ato de amor) em que a realidade social e o sonho social se fundem" sintetiza a orientação do roteiro. Trata-se de uma outra versão para as palavras coincidentes de Lenin e de Guevara: "Quando o extraordinário torna-se cotidiano, é a revolução". Aborda-se uma situação excepcional, quando as contradições deixam de se esconder por debaixo dos discursos parlamentares e presidenciais, das mensagens da grande imprensa, para sair nuas às praças e avenidas. Para descrever esse momento mágico, mas não menos real e lógico, Quattrochi apela para as metáforas, encontrando nos cartazes um material fértil: "Um prazer tem a burguesia, o de degradar todos os prazeres", "considero meus desejos uma realidade, porque acredito na realidade dos meus desejos", "quando a assembléia geral se transforma num teatro burguês, os teatros burgueses devem transformar-se em assembléia geral". É nesse ritmo alucinante que a narrativa de Quattrochi consegue reproduzir, tanto quanto possível, a vertigem daqueles dias.
A análise de Nairn sobre o "porque" surpreende logo na abertura ao afirmar que 68 "falhou por sua excepcional grandeza e ineditismo". O acúmulo de significações já a tornara insuportável para os contemporâneos. No seu maximalismo, o movimento propunha-se a colocar em xeque "não somente a sociedade capitalista, mas também a sociedade industrial" como dizia um documento da época. A imaginação quase se alça ao poder, substituindo o consumismo e a alienação, o que provocou, pelo menos, o "choque revolucionário mais absolutamente inesperado de todo o século 20".
Se 1968 assemelha-se a 1848 pela rapidez de difusão para outros países e, neste caso, para outros continentes, a hegemonia ideológica do anarquismo o aproxima da Comuna de 1871, pela riqueza dos questionamentos libertários e pela espontaneidade, tanto na sua força e quanto nas suas fraquezas. A apologia da ação, como destaca Nairn, era acompanhada de uma crítica da teoria, expressa de forma radical numa frase escrita nas paredes de Nanterre: "Não existem idéias revolucionárias, apenas ações revolucionárias".
"Começo do fim ou fim do começo"? O certo é que foi um momento de transição: ampliou-se, na prática social, o campo das contradições, ampliadas doravante pela inclusão das relações de gênero, raça etc. Quebrou-se o monopólio do marxismo pelos partidos comunistas. Reatualizou-se a idéia de revolução, muito além das instâncias parlamentares e sindicais. O movimento termina em Praga, com a última tentativa de transformar o socialismo soviético pela esquerda, mediante sua democratização, com o "socialismo de rosto humano" de Dubcek. Dali para frente prosperaram as oposições de direita, a restauração capitalista. Renasceu também o liberalismo como crítica do Estado de Bem-Estar Social, enquanto a intelectualidade dividia-se entre os que reafirmavam os ideais libertários e os que se rendiam às benesses tecnocráticas do poder.
Aproveitando as comemorações dos 30 anos de Maio de 68, reedita-se ainda o livro de Jacob Gorender, uma história da luta armada de esquerda contra a ditadura militar brasileira. Versão reatualizada pela adição de um capítulo final e de um outro, relatando o encontro de Marighella com o general Albuquerque Lima e o atentado no aeroporto de Guararapes. No epílogo, dez anos depois da primeira edição do livro, Gorender constata, por um lado, que os participantes da resistência armada passaram a ser chamados de "guerrilheiros" e não mais de "terroristas", resultado do trabalho de grupos como o Tortura Nunca Mais, as comissões de familiares de presos e a arquidiocese de São Paulo. Por outro lado, teria prosperado, sob a justificativa de superação de maniqueísmos, uma visão "humanizadora" da ditadura, bem representada pelo filme "O Que É Isso, Companheiro".
O ano de 1968 foi para alguns, o "começo do fim", para outros o "fim do começo". Basta ver desde onde olham para trás e para diante para saber o alinhamento de classe de cada um, que passa também pela forma de relatar seu próprio passado.
Emir Sader é professor de sociologia na USP e autor, entre outros livros, de "O Poder, Cadê o Poder?" (Boitempo).
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