quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

SOBRE HISTÓRIA

Fascinante, mas perigoso
13/Jun/98

ERIC HOBSBAWM

MICHAEL HALL
Aos 80 anos, e recém-condecorado pelo governo trabalhista de Tony Blair, Eric Hobsbawm continua causando admiração entre seus leitores. Esta nova coleção mostra suas qualidades: uma amplitude inigualável de interesses e de conhecimento, a coerência e o rigor propiciado por um marxismo que evita qualquer dogmatismo e a notável capacidade de ilustrar seus argumentos com exemplos pertinentes e muitas vezes surpreendentes.
Conheço poucos historiadores que não sentiram a influência de Hobsbawm. Lembro-me de ter tomado conhecimento de seu "A Era das Revoluções" quando aluno de graduação nos EUA, na década de 60, e de ter ficado entusiasmado com uma história que, finalmente, parecia fazer algum sentido, juntando elementos de economia, política e cultura numa síntese convincente.
Logo depois de ter lido o livro, e para irritar um ilustre professor, comecei uma pergunta observando que "Hobsbawm, ao contrário do senhor, acha...". A resposta foi imediata, embora eu seja incapaz de precisar com que grau de ironia, após tantos anos: "Ah, Hobsbawm. Sim, ele é fascinante, mas perigoso". Na época, fiquei indignado. Hoje em dia, pensando bem, a caracterização não me parece totalmente errada. Não por causa do fascínio (isto não está sequer em questão), mas porque quem corre perigo com Hobsbawm, como esta coletânea demonstra várias vezes, são os historiadores e políticos complacentes ou picaretas, pois a eles se endereça a fina ironia do autor.
Livros desse tipo, que reúnem diversos artigos, palestras e resenhas, escritos no decorrer de muitos anos, nem sempre são as publicações mais felizes. "Sobre História", entretanto, mostra uma coerência considerável.
O objetivo central do livro talvez seja demonstrar a vitalidade da história como disciplina. Já que o autor parece ter lido praticamente tudo quanto foi escrito nos últimos 30 anos, consegue avaliar um leque impressionante de tendências e preocupações. A história econômica recebe uma análise detalhada, assim como os riscos e oportunidades da evidente fragmentação em curso na área da história social.
Como Hobsbawm é sempre surpreendente, o livro avalia de forma bastante generosa, em vários momentos, a historiografia associada à escola francesa dos "Annales". Não é fácil entender seu entusiasmo, uma vez que as obras dos "Annales" geralmente mostram pouco interesse em causas ou agentes, raramente dão conta de mudanças históricas, e se prestam em muitos casos a objetivos políticos que Hobsbawm não deve achar muito simpáticos. Afinal, estudos que interpretam o clima ou outras forças aparentemente impessoais como as verdadeiras determinações da história, tornam desnecessária a consideração de outros elementos como, por exemplo, relações de classe.
Há dois ensaios especialmente originais na coleção. Um, "Barbárie: Manual do Usuário", fornece uma aguda análise política e social do avanço do barbarismo no decorrer do século 20, demonstrando entre outras coisas como as democracias, para justificar mobilizações de civis em grande escala, exigem inimigos demonizados, assim facilitando a barbarização. No capítulo "Engajamento", Hobsbawm responde implicitamente às críticas que recebeu nestes anos todos por seu suposto partidarismo, e desenvolve um argumento elegante a favor do engajamento como mecanismo indispensável para trazer "novas idéias, perguntas e desafios às ciências". Sem o engajamento, conclui, o desenvolvimento das ciências humanas estaria em risco.
Contra as várias manifestações do pós-modernismo, Hobsbawm defende os princípios do Iluminismo, sobretudo a distinção central entre fatos verificáveis e ficção. Sua posição está um pouco fora de moda no momento, afirma o autor, "quando o Iluminismo pode ser descartado como superficial e intelectualmente ingênuo, ou até como uma conspiração de homens brancos mortos, em perucas, que fornecem a base intelectual para o imperialismo ocidental". Hobsbawm conclui que "pode ser ou não tudo isso, mas é também o único fundamento para todas as aspirações de construir sociedades adequadas a todos os seres humanos... e para a afirmação de seus direitos humanos".
Dois ensaios ricos e perspicazes, como seria de esperar, afirmam a persistente relevância do marxismo para os historiadores. Por serem considerados insuficientemente ortodoxos, nenhum dos seus livros foi traduzidos na União Soviética, mas Hobsbawm escreve com franqueza que "grande parte da minha vida, talvez a maior parte de minha vida consciente, foi dedicada a uma esperança que foi claramente frustrada, e para uma causa que visivelmente fracassou: o comunismo iniciado pela Revolução de Outubro".
Entretanto, se a experiência da derrota, de Heródoto a Marx e Weber, estimulou boas e inovadoras histórias, como Hobsbawm sugere, as perspectivas do milênio neste ponto pelo menos não são totalmente sombrias.
A tradução não é a pior que Hobsbawm já recebeu no Brasil a competição é dura, mas apresenta um número inaceitável de erros. As obras completas de Marx e Engels inexplicavelmente viraram suas "Obras Escolhidas". De Gaulle, descrito como "contemporâneo maior" de Churchill, está rebaixado pelo tradutor a "seu grande contemporâneo". "Bancas de jornal" viram "informações jornalísticas" etc. Esta não é a primeira vez que um tradutor se embananou com palavras como "journeyman" (geralmente "oficial"), mas se distinguiu talvez com a mais pedante e enganadora nota de rodapé, onde "servant" está traduzido como "funcionário" correta apenas na forma especial de "public servant", irrelevante ao caso. Hobsbawm merece mais.
A capa, em compensação, uma foto espetacular de Sebastião Salgado, é bem melhor que a pintura na sobrecapa da edição inglesa.

Michael Hall é professor no departamento de história da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).


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