Figurantes mudos
11/Jul/98
Walnice Nogueira Galvão
ANTONIO CANDIDO
A melhor súmula do pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, homenageado neste livro por vários ensaístas, poderia ser a frase que figura na quarta capa: "Para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma classe, não basta aceitar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a simples tradição escrita. É preciso fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama da história e são muitas vezes mais interessantes e mais importantes do que os outros, os que apenas escrevem a história".
Para dar conta desta extraordinária personalidade, multiplicam-se neste livro os enfoques, no afã de abarcar os mais relevantes aspectos de sua trajetória.
O próprio organizador, Antonio Candido, se encarrega da visão política do homenageado, procedendo a um roteiro de seu desempenho desde a participação no grupo modernista, e as posições que então assumiu. Delas emerge um Sérgio libertário, que cedo se definiu sobretudo em contraposição ao nazismo, a cujas primeiras manifestações teve oportunidade de assistir pessoalmente, numa estada na Alemanha em 1929-30.
Segue-se sua oposição à ditadura Vargas, quando colabora em 1942 na fundação da Associação Brasileira de Escritores (ABDE), entidade que abrigava a resistência intelectual do país e da qual exerceu a presidência nacional, primeiro, e a da seção paulista, posteriormente. À ABDE se deve um dos raros manifestos do período reivindicando liberdades democráticas, então lido no Teatro Municipal de São Paulo, na sessão de encerramento de seu primeiro congresso, em janeiro de 1945. O historiador, que à altura morava no Rio, esteve presente na qualidade de membro da delegação carioca. Exemplo de seu papel é a redação final de uma declaração de princípios em prol da liberdade da inteligência e da criação, idealizada pelos socialistas, no segundo congresso estadual paulista, em 1949, o que suscitou reparos no seio da frente ampla anterior.
Nascia em agosto de 1945, no Rio, a Esquerda Democrática, de que Sérgio, novamente, é um dos fundadores. Dois anos depois ela se transformaria no Partido Socialista Brasileiro, pelo qual mais tarde, em 1950, por disciplina partidária, embora sem a menor chance, o historiador se candidataria a um cargo legislativo por São Paulo, onde passara a residir.
Na vigência da outra ditadura, aquela trazida pelo golpe de 1964, Sérgio nunca escondeu ser contra. Em 1969, aposentou-se da USP em gesto de solidariedade para com os colegas excluídos pelo AI-5.
Quando, na década seguinte, um deputado eleito pelo então MDB, Oscar Pedroso Horta, desencadeou no Parlamento uma campanha desafiando o regime, Sérgio encabeçou um abaixo-assinado de apoio, naquilo que foi o primeiro manifesto oposicionista também dessa ditadura. Nessa década foi igualmente vice-presidente do Centro Brasil Democrático, criado por Oscar Niemeyer.
Assim, viria mais tarde a ser um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, em 1980.
Após este que é, até hoje, o mais completo esboço do percurso do historiador enquanto intelectual militante, Antonio Candido passa a analisar o último capítulo de "Raízes do Brasil" (1936), em função do travejamento das idéias políticas ali expostas. Duas são as novidades trazidas pelo livro à reflexão histórica no país: a primazia atribuída à incorporação das massas urbanas e à liquidação do passado colonial, este perpetuado pelas oligarquias locais. Distingue-se, por isso, de dois outros importantes livros da época, "Populações Meridionais do Brasil", de Oliveira Viana, e "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, que acreditam na missão das elites e avaliam positivamente a herança lusitana. Enquanto estes livros podem ser considerados politicamente conservadores, "Raízes do Brasil" contrasta por sua concepção democrático-popular.
Já Luiz Dulci, em seu trabalho, que fala do petista, começa por interrogar o motivo que teria impelido Sérgio, doente e com 78 anos, a vir do Rio apoiado numa bengala para fundar o PT. O historiador, hoje, poderia responder a questões estratégicas para o PT. Por exemplo, que rupturas e que continuidades deveriam servir de parâmetros ao partido para se posicionar com relação ao passado das lutas populares. Ou explicar quais as mudanças históricas que permitiram a criação de um tal partido. Essas, dentre muitas outras.
Na impossibilidade de obter tais respostas, o autor chama a atenção dos petistas para o modelo pessoal e a obra do homenageado, tentando compreender esses e outros pontos cruciais. Valeria a pena observar que o engajamento de Sérgio começa pela dedicação de toda uma vida a estudar o Brasil, sem nenhum paroquialismo ou chauvinismo, antes enquadrando-o no painel da história do globo. Espírito universal, reputado por sua erudição, Sérgio assimilava a cultura do mundo para aplicá-la ao país. E não é porque fosse brasileiro e estudasse seu país que deixaria de escrever obras que se situam no mais alto patamar cosmopolita. Até nisso era democrático e popular.
Lembra o autor, com muito propósito, que Sérgio realizou no ensaio o que os grandes modernistas realizaram em outros gêneros, a saber, uma investigação do Brasil.
O trabalho de Raymundo Faoro sobre o analista das instituições brasileiras, prendendo-se sobretudo a "Do Império à República", mostra como Sérgio soube fazer uma história do ponto de vista do povo e não do poder. O desconcerto social brasileiro é ali explicado por um processo de longa duração, que persistiu no bojo da emancipação dos cativos em 1888: as massas mantinham-se sujeitas à tutela enquanto o imperador, praticamente ilimitado em seu poder pessoal, governava com parlamentares oriundos de eleições fraudulentas. Quadro, como não poderia deixar de ser, desfavorável à formação da sociedade civil e da cidadania.
Examinando as relações entre política e sociedade na obra do historiador, Maria Odila Leite da Silva Dias observa que, paradoxalmente, Sérgio não acreditava em lições do passado para aproveitamento no presente. Ao contrário, procurava no passado forças de transformação que permitissem justamente libertar-se dele.
Ilana Blaj e Ronaldo Vainfas cuidam de outros dois aspectos, conferindo-lhes o lugar de destaque que ocupam no conjunto da obra. O primeiro, fundamentando-se, em "Monções", "Caminhos e Fronteiras", "O Extremo Oeste", na cultura material. O segundo, fundamentando-se em "Visão do Paraíso", nas representações mentais. Tal complementaridade evidencia como o historiador trafegava à vontade por vários campos do ofício.
Afinal, Antonio Arnoni Prado, a quem devemos o paciente resgate do Sérgio crítico literário em artigos dispersos por jornais e revistas, resultando numa obra monumental em dois volumes, "O Espírito e a Letra" (1996), debruça-se sobre a articulação com o modernismo. Por aí se verifica que o ideário de ambos -do crítico e do movimento- nem sempre coincidiu, a perspectiva universalista de Sérgio discordando muitas vezes do radicalismo primitivista dos modernistas, enquanto divergia da crença numa elite e mesmo da necessidade de um projeto construtivo.
Fruto de um seminário em homenagem a Sérgio Buarque de Holanda (Rio, 1997) coordenado pelo organizador do volume, publicam-se agora os trabalhos que naquela ocasião foram apresentados.
Walnice Nogueira Galvão é professora de teoria literária e literatura comparada na USP e autora de "Desconversa" (Ed. da Universidade Federal do Rio de Janeiro).
11/Jul/98
Walnice Nogueira Galvão
ANTONIO CANDIDO
A melhor súmula do pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, homenageado neste livro por vários ensaístas, poderia ser a frase que figura na quarta capa: "Para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma classe, não basta aceitar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a simples tradição escrita. É preciso fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama da história e são muitas vezes mais interessantes e mais importantes do que os outros, os que apenas escrevem a história".
Para dar conta desta extraordinária personalidade, multiplicam-se neste livro os enfoques, no afã de abarcar os mais relevantes aspectos de sua trajetória.
O próprio organizador, Antonio Candido, se encarrega da visão política do homenageado, procedendo a um roteiro de seu desempenho desde a participação no grupo modernista, e as posições que então assumiu. Delas emerge um Sérgio libertário, que cedo se definiu sobretudo em contraposição ao nazismo, a cujas primeiras manifestações teve oportunidade de assistir pessoalmente, numa estada na Alemanha em 1929-30.
Segue-se sua oposição à ditadura Vargas, quando colabora em 1942 na fundação da Associação Brasileira de Escritores (ABDE), entidade que abrigava a resistência intelectual do país e da qual exerceu a presidência nacional, primeiro, e a da seção paulista, posteriormente. À ABDE se deve um dos raros manifestos do período reivindicando liberdades democráticas, então lido no Teatro Municipal de São Paulo, na sessão de encerramento de seu primeiro congresso, em janeiro de 1945. O historiador, que à altura morava no Rio, esteve presente na qualidade de membro da delegação carioca. Exemplo de seu papel é a redação final de uma declaração de princípios em prol da liberdade da inteligência e da criação, idealizada pelos socialistas, no segundo congresso estadual paulista, em 1949, o que suscitou reparos no seio da frente ampla anterior.
Nascia em agosto de 1945, no Rio, a Esquerda Democrática, de que Sérgio, novamente, é um dos fundadores. Dois anos depois ela se transformaria no Partido Socialista Brasileiro, pelo qual mais tarde, em 1950, por disciplina partidária, embora sem a menor chance, o historiador se candidataria a um cargo legislativo por São Paulo, onde passara a residir.
Na vigência da outra ditadura, aquela trazida pelo golpe de 1964, Sérgio nunca escondeu ser contra. Em 1969, aposentou-se da USP em gesto de solidariedade para com os colegas excluídos pelo AI-5.
Quando, na década seguinte, um deputado eleito pelo então MDB, Oscar Pedroso Horta, desencadeou no Parlamento uma campanha desafiando o regime, Sérgio encabeçou um abaixo-assinado de apoio, naquilo que foi o primeiro manifesto oposicionista também dessa ditadura. Nessa década foi igualmente vice-presidente do Centro Brasil Democrático, criado por Oscar Niemeyer.
Assim, viria mais tarde a ser um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, em 1980.
Após este que é, até hoje, o mais completo esboço do percurso do historiador enquanto intelectual militante, Antonio Candido passa a analisar o último capítulo de "Raízes do Brasil" (1936), em função do travejamento das idéias políticas ali expostas. Duas são as novidades trazidas pelo livro à reflexão histórica no país: a primazia atribuída à incorporação das massas urbanas e à liquidação do passado colonial, este perpetuado pelas oligarquias locais. Distingue-se, por isso, de dois outros importantes livros da época, "Populações Meridionais do Brasil", de Oliveira Viana, e "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, que acreditam na missão das elites e avaliam positivamente a herança lusitana. Enquanto estes livros podem ser considerados politicamente conservadores, "Raízes do Brasil" contrasta por sua concepção democrático-popular.
Já Luiz Dulci, em seu trabalho, que fala do petista, começa por interrogar o motivo que teria impelido Sérgio, doente e com 78 anos, a vir do Rio apoiado numa bengala para fundar o PT. O historiador, hoje, poderia responder a questões estratégicas para o PT. Por exemplo, que rupturas e que continuidades deveriam servir de parâmetros ao partido para se posicionar com relação ao passado das lutas populares. Ou explicar quais as mudanças históricas que permitiram a criação de um tal partido. Essas, dentre muitas outras.
Na impossibilidade de obter tais respostas, o autor chama a atenção dos petistas para o modelo pessoal e a obra do homenageado, tentando compreender esses e outros pontos cruciais. Valeria a pena observar que o engajamento de Sérgio começa pela dedicação de toda uma vida a estudar o Brasil, sem nenhum paroquialismo ou chauvinismo, antes enquadrando-o no painel da história do globo. Espírito universal, reputado por sua erudição, Sérgio assimilava a cultura do mundo para aplicá-la ao país. E não é porque fosse brasileiro e estudasse seu país que deixaria de escrever obras que se situam no mais alto patamar cosmopolita. Até nisso era democrático e popular.
Lembra o autor, com muito propósito, que Sérgio realizou no ensaio o que os grandes modernistas realizaram em outros gêneros, a saber, uma investigação do Brasil.
O trabalho de Raymundo Faoro sobre o analista das instituições brasileiras, prendendo-se sobretudo a "Do Império à República", mostra como Sérgio soube fazer uma história do ponto de vista do povo e não do poder. O desconcerto social brasileiro é ali explicado por um processo de longa duração, que persistiu no bojo da emancipação dos cativos em 1888: as massas mantinham-se sujeitas à tutela enquanto o imperador, praticamente ilimitado em seu poder pessoal, governava com parlamentares oriundos de eleições fraudulentas. Quadro, como não poderia deixar de ser, desfavorável à formação da sociedade civil e da cidadania.
Examinando as relações entre política e sociedade na obra do historiador, Maria Odila Leite da Silva Dias observa que, paradoxalmente, Sérgio não acreditava em lições do passado para aproveitamento no presente. Ao contrário, procurava no passado forças de transformação que permitissem justamente libertar-se dele.
Ilana Blaj e Ronaldo Vainfas cuidam de outros dois aspectos, conferindo-lhes o lugar de destaque que ocupam no conjunto da obra. O primeiro, fundamentando-se, em "Monções", "Caminhos e Fronteiras", "O Extremo Oeste", na cultura material. O segundo, fundamentando-se em "Visão do Paraíso", nas representações mentais. Tal complementaridade evidencia como o historiador trafegava à vontade por vários campos do ofício.
Afinal, Antonio Arnoni Prado, a quem devemos o paciente resgate do Sérgio crítico literário em artigos dispersos por jornais e revistas, resultando numa obra monumental em dois volumes, "O Espírito e a Letra" (1996), debruça-se sobre a articulação com o modernismo. Por aí se verifica que o ideário de ambos -do crítico e do movimento- nem sempre coincidiu, a perspectiva universalista de Sérgio discordando muitas vezes do radicalismo primitivista dos modernistas, enquanto divergia da crença numa elite e mesmo da necessidade de um projeto construtivo.
Fruto de um seminário em homenagem a Sérgio Buarque de Holanda (Rio, 1997) coordenado pelo organizador do volume, publicam-se agora os trabalhos que naquela ocasião foram apresentados.
Walnice Nogueira Galvão é professora de teoria literária e literatura comparada na USP e autora de "Desconversa" (Ed. da Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Folha de São Paulo
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