Nossas relações comerciais
11/Jul/98
Ricardo Seitenfus
A OMC - A REGULAMENTAÇÃO DO COMÉRCIO INTERNACIONAL: UMA VISÃO BRASILEIRA /LIVRO/; CELSO LAFER; A ALCA E OS INTERESSES DO MERCOSUL /LIVRO/; GILBERTO DUPAS
11/Jul/98
Ricardo Seitenfus
A OMC - A REGULAMENTAÇÃO DO COMÉRCIO INTERNACIONAL: UMA VISÃO BRASILEIRA /LIVRO/; CELSO LAFER; A ALCA E OS INTERESSES DO MERCOSUL /LIVRO/; GILBERTO DUPAS
Ao menos uma entre as origens da Segunda Guerra Mundial é identificada pelos analistas de forma unânime. Trata-se da batalha comercial, ocorrida durante os anos que precederam o conflito, entre o liberalismo anglo-saxão e o dirigismo germânico. Na perspectiva de um fim para a contenda, foram assinados os Acordos de Bretton Woods, em 1944. Surgem, então, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a princípio com o objetivo de manter a paridade cambial, assim como o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (Bird ou Banco Mundial), misto de banco comercial e de serviço público internacional, modelo próximo das organizações internacionais clássicas.
Faltava, portanto, o terceiro pilar: o comércio. Convocou-se, em 1947, a Conferência de Havana com o intuito de criar uma Organização Internacional de Comércio (OIC). Foi um aparente fracasso, pois os 23 países presentes firmaram apenas um Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), uma aposta na liberalização do comércio internacional. Apesar da sua natureza pouco ambiciosa, o Gatt conseguiu, pelo seu dinamismo, fazer com que o comércio internacional crescesse, em meio século, quatro vezes mais do que a produção mundial. Além disso, verificou-se um processo de universalização. Atualmente o acordo é subscrito por dois terços dos Estados, e mesmo a China, país historicamente autárquico, está negociando sua adesão.
Se em 1947 o número reduzido de signatários impossibilitava a criação da mencionada OIC, em fins de 1994, em Marrakech (Marrocos), a universalização praticamente impôs o surgimento da Organização Mundial do Comércio (OMC). O recente livro de Celso Lafer aborda justamente a posição brasileira diante da nova situação do comércio internacional, posterior à criação da OMC. Esta publicação é, de fato, uma coletânea de artigos que retoma conferências e discursos oficiais. Não se trata, portanto, de uma obra estruturada em torno da posição brasileira na OMC, mas uma visão do acadêmico, a serviço da diplomacia comercial brasileira, que reflete seus desafios profissionais do momento.
Este traço faz com que a publicação possua evidentes qualidades e claras limitações. Entre as primeiras, transparece o homem de reflexão no calor da ação diplomática e confrontado, nas palavras do autor, ao "adensamento da juridicidade" que a OMC significa. A formação jurídica do autor, assim como sua experiência acadêmica e profissional, o prepararam para entender que a OMC se transformou em instrumento fundamental do sistema internacional. Uma das características deste consiste na transferência das relações de cooperação, ou de conforto, do campo político-ideológico para o domínio econômico.
Especialmente para os países do Sul, objetos, até o final da década de 80, de programas de auxílio e de ajuda ao desenvolvimento e atualmente confrontados tão-somente ao comércio e aos investimentos como instrumentos de criação de riquezas e de geração de empregos. O slogan "trade, not aid" é alvo de contundentes críticas, como por exemplo as que Nelson Mandela expressou recentemente a William Clinton, ou mesmo a posição do governo socialista francês na recente reunião do G7.
Logo, os temas tratados por Lafer são fundamentais, sobretudo os capítulos 5 a 8, que abordam o sistema de solução de controvérsias da OMC, mecanismo escassamente conhecido no Brasil. Eles são complementados com um caso prático significativo. Em tela, a apresentação da posição oficial brasileira na tentativa de fazer com que o Comitê de Balança de Pagamentos da OMC aceitasse as razões que obrigaram o governo a editar a medida provisória nº 1.024, de junho de 1995, estabelecendo quotas para a implantação de veículos.
Talvez a mais nítida limitação do livro seja a necessidade de uma leitura individual de cada capítulo, na qual se constata uma profusão de repetições, como as quatro referências ao caráter civilizatório do comércio em Kant, suplantadas pelas cinco oportunidades em que se encontra a citação de Montesquieu e o "doux commerce" ("doce comércio"). Apesar de desagradáveis, elas não comprometem a reflexão do intelectual Lafer, nem tampouco a compreensão do acadêmico em ação. Justamente como embaixador, ele deixa transparecer claramente que o seu trabalho se sustenta na percepção oficial, fiel aos ditames do governo. O leitor não deve, portanto, alimentar a esperança de encontrar uma suposta neutralidade ou independência universitária.
Acrescente-se que a obra transmite uma visão liberal e positiva dos efeitos do comércio internacional que não ficou imune a alguns dos escorregões, característicos do jargão diplomático. Quando Lafer trata das relações entre regionalismo e multilateralismo, no âmbito do artigo 24 do Gatt, apresenta a posição brasileira do chefe de Estado e do ministro das Relações Exteriores como um claro compromisso "tanto com o sistema multilateral de comércio, quanto com o aprofundamento do Mercosul, sem desconsiderar, é claro, a importância das negociações em curso da Alca". Sabe-se, contudo, o quanto é oportuno discutir as evidentes contradições que correspondem a cada uma destas alternativas.
O aprofundamento do Mercosul, para Lafer, "demonstra pela negociação de acordos, que cobrem assuntos como proteção do consumidor, medidas de salvaguardas, políticas de investimentos e concorrência", todas a serem ainda demonstradas, e algumas bastante polêmicas. O leitor poderia esperar que o jurista evidenciasse o elemento essencial para o futuro do Mercosul, qual seja, a segurança jurídica e, no mínimo, a indispensável uniformização interpretativa das regras acordadas pelos Estados-membro. As recorrentes crises do Mercosul são invariavelmente solucionadas e adiadas mediante decisões políticas.
Parece decorrer de uma certa lógica o raciocínio segundo o qual o Brasil, por ser um "global trader", encontra seus interesses nas três dimensões acima referidas. Ocorre que as negociações no âmbito da Alca "parecem cheias de risco, e as consequências de uma entrada na Alca seriam graves para a política multilateral do comércio externo brasileiro", como enfatiza Gilberto Dupas no opúsculo sobre a Alca e os interesses do Mercosul.
A breve análise de Dupas, resultado de uma conferência, tem como vantagem a concisão de um manifesto e como inconveniente o objetivo de convencer, em detrimento de explicar. As posições dos dois autores sobre o tema são opostas. Dupas alerta para o risco do Brasil optar "por um alinhamento exclusivo à orbita de influência norte-americana de complexas consequências geopolíticas". Trata-se de um eco à habitual denúncia de alguns meios empresariais, sindicais, políticos e acadêmicos. Neles, os EUA são criticados por defenderem seus interesses. Condena-se a filosofia que orienta seus negociadores, grosso modo, à busca de uma liberalização imediata, mas como uma via de mão única: nos liberalizamos, mas eles mantêm suas restrições.
Lafer minimiza a contradição entre Mercosul e Alca, preconizando o respeito do "princípio da subsidiariedade". Ou seja, a compatibilidade e a congruência das perspectivas regionais e multilaterais já existentes entre o Mercosul e a OMC, aplicadas ao relacionamento futuro entre a Alca e o Mercosul.
O exemplo a ser seguido, segundo o embaixador, são as relações entre a Associação Européia de Livre Comércio (EFTA) e a União Européia (UE). O problema é muito mais complexo e as lições a tirar são distintas, na medida em que muitos países que faziam parte da primeira foram absorvidos pela segunda. Neste sentido, o relacionamento entre as duas organizações é marcado pelo fator transitório diante da tendência histórica de extensão da UE ao conjunto do espaço europeu. Diante disso, torna-se pertinente o alerta de Dupas; caso o Mercosul não venha efetivamente a aprofundar-se, será absorvido pela Alca, com todos os riscos que tal evolução representa para a posição brasileira.
Para concluir a análise conjunta das duas publicações, lembre o leitor que os países desenvolvidos respondem por 87% do comércio mundial, enquanto a América Latina detém somente 4,6%. Tal estrutura se reflete nas negociações da OMC, pois tanto a agenda (conteúdo a ser negociado) quanto a segmentação (forma de negociação) são impostas pelos mais poderosos. Certamente tal situação é um considerável avanço comparada ao unilateralismo, como demonstram as iniciativas dos EUA com as leis Helms-Burton e D'Amato-Kennedy.
Lafer introduz rapidamente um tema de grande relevância para o Brasil, o das negociações, no âmbito da OCDE, de um Acordo Multilateral de Investimentos (AMI). Considerado por Renato Ruggiero, diretor geral da OMC, como a futura "Constituição de uma economia mundial unificada", destacam-se no texto em tela quatro características preocupantes: a) a negociação, que deveria ocorrer num organismo universal como a OMC, realiza-se num clube fechado dos países desenvolvidos; b) o AMI será, na prática, imposto aos países que não participaram de sua colaboração; c) as negociações se desenrolam sem qualquer transparência; d) o sistema de solução de controvérsias não é somente acessível às empresas, mas os juízes serão privados, afastando completamente o Estado.
Espera-se que a transcendência do tema e a ausência de debates no Brasil motivem os autores, após sua contribuição à compreensão das relações comerciais, a aprofundar, em próximas publicações, suas reflexões em torno da circulação dos investimentos e dos capitais voláteis.
Ricardo Antônio Silva Seitenfus é professor da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e autor do "Manual das Organizações Internacionais" (Livraria do Advogado).
Folha de São Paulo
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