terça-feira, 14 de agosto de 2018

Honoráveis bandidos: um retrato do Brasil na era Sarney


Editora: Geração Editorial



“A filha Roseana Sarney, senadora pelo Maranhão, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro, o mesmo PMDB do pai, caminhava pelo plenário, muito nervosa. Estava em lágrimas quando o pai encerrou sua fala. Os oitenta pares o aplaudiram protocolarmente, mas um deles, de um salto pôs-se de pé e bateu palmas efusivas, acompanhadas do revoar de suas melenas. Tratava-se de Wellington Salgado, do PMDB mineiro, conhecido como Pedro de Lara ou Sansão.

Onde se encontravam os jornalistas de política nesse momento, que não registraram tal despautério? Pedro de Lara é aquela figura histriônica que roubava a cena no programa Silvio Santos como jurado ranzinza, debochado e falso moralista. E Sansão, o personagem bíblico que perdeu o vigor quando Dalila o traiu cortando-lhe a cabeleira.

Esta figura caricata pareceria um estranho no ninho em qualquer parlamento do mundo. Nascido no Rio, é dono da Universidade Oliveira Salgado, no município de São Gonçalo, e responde a processo por sonegação de impostos no Supremo Tribunal Federal. Conseguiu um domicílio eleitoral fajuto em Araguari, Minas Gerais, e praticamente comprou um mandato de senador ao financiar de seu próprio bolso, com 500 mil reais, uma parte da milionária campanha para o Senado de Hélio Costa, o eterno repórter do Fantástico da Rede Globo em Nova York.

Com a ida de Hélio para o Ministério das Comunicações de Lula, seu suplente Wellington então ganhou uma cadeira no Senado Federal, presente que ele paga com gratidão tão desmesurada, que separa da verba de seu gabinete todo santo mês os 7 mil reais da secretária particular do ministro. Nesse tipo de malandragem, fez como seu ídolo, colega de Senado Renan Calheiros, que vinha pagando quase 5 mil mensais para a sogra de seu assessor de imprensa ficar em casa sem fazer nada.

Mas o cabeludo senador chegou à ribalta em 2007, justamente como aguerrido integrante da tropa de choque que salvou o mandato de Renan Calheiros, então presidente do Senado e estrela principal do episódio mais indecoroso daquele ano, com amante pelada na capa da Playboy, bois voadores e fazendas-fantasma. O alagoano Renan, com uma filha fora do casamento, que teve com a apresentadora de tevê Mônica Veloso, bancava a moça com mesada paga por Cláudio Gontijo, diretor da construtora Mendes Júnior. Ao tentar explicar-se, Renan enredou-se em notas frias, rebanho superfaturado, rede de emissoras de rádio em nome de laranjas, enquanto Mônica mostrava aos leitores da revista masculina da Editora Abril a borboleta tatuada na nádega.”

*

“Memorável dia 2 de fevereiro (de 2009). Surpreendentes seriam as fotografias nos jornais do dia seguinte. Sarney de óculos escuros como os ditadores latino-americanos do passado, amparado pelo colega de PMDB Michel Temer, eleito presidente da Câmara, igualmente pela terceira vez. Barba e bigode. Este Michel Temer, com seu talhe de mordomo de filme de terror, merece umas pinceladas.

Michel Miguel Elias Temer Lulia, paulista de Tietê, nascido em 1940, é advogado, pai de três filhos. Casou em segundas núpcias em 2003 com uma jovem 42 outonos mais nova, “aspirante a Miss Paulínia”, de 20 anos.

Temer desponta no mundo político no começo da década de 1980. Filiado ao PMDB desde 1981, elegeu-se deputado federal em 1986. Foi secretário de Segurança no governo de Franco Montoro. Professor universitário de direito. Jeito cerimonioso, formal e educado.

Em 1990, Luís Antônio Fleury Filho se elege governador de São Paulo, numa eleição difícil bancada pelo governo Orestes Quércia – “quebrei o Banespa, mas elegi meu sucessor”, a frase de Quércia entrou para os anais da política desta Era Sarney. Pouco depois do massacre do Carandiru, em outubro de 1992, Fleury Filho indica Michel para a Segurança Pública. Ele organizou a Secretaria, criou condições de trabalho, deu recursos técnicos e operacionais.

Os admiradores e eleitores sabem que, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que conteve o crime organizado, foi a época de melhor coexistência pacífica entre jogo do bicho e cassinos clandestinos de um lado, e de outro lado o alto comando da polícia. Não se sabe de escândalo em sua gestão, mas não há quem não saiba em São Paulo que o comando da jogatina organizada e o impoluto jurista encarregado de reprimi-la se davam às mil maravilhas.

Michel talvez seja um dos políticos mais dissimulados do país. Não tem a arrogância de ACM, o sentimento oligárquico e o provincianismo de Sarney, o pavio curto de Ciro Gomes, os ademanes gatunos de Renan Calheiros. Usa abotoaduras de Saville Road, o templo londrino dos elegantes, ou as compra em Roma, quando vai dar aulas de direito como professor convidado. As meias são as mesmas de outro elegante, o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, de seda pura. A coleção de gravatas concorre com as 4 mil deixadas na mansão do Cosme Velho por Roberto Marinho, o general civil da ditadura militar. O cabelo, tingido, não chega a ser ridículo como o negro asa-de-graúna do presidente do Senado, que aparece ao seu lado nos jornais do dia seguinte ao indigitado 2 de fevereiro de 2009. A voz é do tipo frequência modulada, imperturbável e serena. Não há testemunho de uma grosseria, um ato tosco, um palavrão, um agravo que tenha partido de sua figura bem-posta.

No romance do cubano Alejo Carpentier, O Recurso do Método, o refinado e culto governante de uma nação caribenha é, ao mesmo tempo sanguinário ditador. O jurista Michel Temer, poderoso presidente da Câmara dos Deputados na década de 1990, foi ao mesmo tempo dono de um pedaço suculento da administração pública. Foi o padrinho, o chefe, o protetor de quem operou o maior esquema de corrupção da história das docas de Santos, maior porto comercial da América Latina.

Por lá passam 25% do que o Brasil importa ou exporta, e lá reinava um homem seu, um apadrinhado seu. Atende pelo nome de Wagner Rossi. Político de Ribeirão Preto, intimamente ligado ao quercismo, mas também a qualquer governo que possa lhe dar algo em troca. Na superintendência do porto de Santos, onde 8 mil estivadores pegam no pesado e 40 navios estão em operação num dia comum, Wagner Rossi criou um estilo debochado e extrovertido para não fazer nada pelo resto da vida, ele e os descendentes. Recebia empresários e fornecedores com um procedimento que marcou sua administração e traumatizou a maior parte de suas vítimas. Precavido, tinha no gabinete um aparelho de som potente, sintonizado nas mais inesperadas emissoras de Santos. E ao som de baladas brejeiras ou rock pauleira, tocados em altos decibéis, atendia os interessados. Assim evitava gravações. Falava quase no ouvido das pessoas, sussurrando uma cantilena de administrador ímprobo. Como se fosse o mímico Ricardo “Marcel Marceau” Bandeira das docas santistas, na calada do gabinete fechava os acordos mais espúrios com uma gesticulação que enojava ou divertia os empresários importadores ou exportadores. Sorridente, arregalava os olhos, levantava as mãos e esfregava freneticamente indicadores e polegares, sinal de dinheiro desde que o dinheiro existe. Se todo o empresariado brasileiro sabe disso, se toda a classe política sabe, se toda a imprensa nacional sempre soube, e agora você também já ficou sabendo, como Michel Temer não haveria de saber?

Este era o novo presidente da Câmara, que aparecia nas fotos praticamente amparando o novo presidente do Senado, Casas que entrariam numa fase de escândalos dia sim dia não, um deles carimbado pela mídia como “farra das passagens”.

Pois não é que Michel Temer logo usaria o agora famoso ato secreto para absolver um colega que “farreou”? O presidente da Câmara perdoaria o deputado potiguar Fábio Faria (PNM-RN), e por extensão a outros parlamentares que usam nosso dinheiro para a tal “farra das passagens". Em dezembro de 2007, Fábio Faria levou, para animar seu camarote de “carnaval fora de época” em Natal, artistas e a apresentadora de televisão Adriane Galisteu, a quem atribuiu o status de “namorada”.

Michel arquivaria o caso em 3 de junho de 2009. Respaldou a decisão em pareceres técnicos, pelos quais o erário pagou R$ 150 mil. A “análise ética”, que custou R$ 70 mil, foi do professor da Universidade de São Paulo Clóvis de Barros Filho, que ao jornal O Estado de S. Paulo declarou, em 24 de junho:

“Meu parecer é um pouco broxante, enigmático, porque não oferece uma condenação apressada nem uma absolvição ingênua. Não tenho elementos para condenar ou absolver.”

Trata-se, como se vê, de uma versão caríssima do que teria dito, de graça, o político mineiro Benedito Valadares (1892-1973), aquele que ficava “rouco de tanto ouvir”. Valadares simplificaria a questão, dizendo o seguinte:

“Deputado levar com dinheiro público acompanhante de luxo para evento carnavalesco, não sou contra nem a favor, muito pelo contrário.”



Já o parecer “jurídico” foi de Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Ao Estadão, este homem da lei disse sobre a ajuda de custo para comprar passagens de avião:

“Consiste na alocação de uma verba ao parlamentar para que este se transfira, com sua família, com suas amizades mais íntimas, seus empregados, animais de estimação etc., bem como os pertences de sua conveniência para a referida sede.”

Portanto, opina o jurista, ninguém tem nada com isso, se o parlamentar leva até a cadela para passear de avião. É, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, questão “de foro íntimo”. Seu parecer nos custou mais caro: R$ 80 mil. Parece que, com tão doutos pareceres encomendados pelo presidente da Câmara, a farra das passagens está doravante autorizada.”

*

“Pobre do congressista que viesse com conversa de moralidade naquele 2 de fevereiro de 2009. Todo o mundo sabia que na plataforma do rival de Sarney, o petista acreano Tião Viana, uma das primeiras providências era afastar o diretor-geral do Senado, Agaciel Maia. Quem em Brasília não sabia de sua casa de 5 milhões, às margens do Lago Paranoá, com quase mil metros quadrados, três andares, cinco suítes, campo de futebol, piscina em forma de taça e píer para barcos e lanchas, escamoteada em nome do irmão? Casa que o irmão, deputado João Maia (PR-RN), escondeu da Receita Federal e da Justiça Eleitoral, e para justificar tal fato, Agaciel usou o cândido argumento de que não podia pôr a casa em seu nome porque estava com os bens indisponíveis devido a outro rolo, conhecido como escândalo da gráfica do Senado – no ano eleitoral de 1994, candidatos imprimiam à custa do dinheiro público material de propaganda eleitoral. Adivinhe quem se beneficiou dessa falcatrua? Acredite se quiser: entre outros, a filha de Sarney, Roseana, então deputada e candidata vencedora ao governo do Maranhão, numa eleição que ela ganhou na mão grande.”

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“José Sarney começa sem identidade própria. É apenas o “Zé do Sarney”, por sua vez com tal nome registrado porque o avô do nosso herói, diz a história, quis homenagear um inglês ilustre que aportou a serviço no Maranhão e a quem todos chamavam de Sir Ney.”

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“Aderson Lago, de tradicional estirpe política, chefe da Casa Civil do governador maranhense Jackson Lago em 2009, é uma memória viva daqueles tempos:

“Sarney nasceu, cresceu e criou dentes dentro do Tribunal. O pai não era um fazendeiro abastado, empresário, não era porra nenhuma. Nunca tiveram nada. Nunca acertaram nem no jogo do bicho. Sarney não tem como explicar a fortuna que tem. Ele mesmo contou, quando presidente da República, na inauguração do Fórum Sarney Costa, que o pai teve que vender sua máquina de escrever para mantê-lo por uns tempos”.”

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“Aderson Lago narra a história de certo engenheiro italiano que havia construído a fortaleza de Dien Bien Phu, no Vietnã, e para cá veio tocar a construção do porto de Itaqui, perto de São Luís – por onde meio século depois sairia o minério de Carajás e outras mil riquezas do Brasil. Surgiu uma demanda judicial contra a empresa do italiano. No último julgamento, que a empresa perderia e, por isso, quebraria, descendo a escadaria do Tribunal, o italiano, referindo-se a Sarney, comentou com seus advogados:

“Se Al Capone estivesse vivo e aqui estivesse, diante desse rapaz de bigodinho seria um mero aprendiz”.”

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“Insondáveis são as razões do coração, realmente. Quando nos debruçamos sobre a folha corrida dos três pimpolhos do velho coronel Sarney, encontramos mais razões para um pai corar de vergonha do que para orgulhar-se. No entanto, o senador sempre demonstrou verdadeira devoção paterna por seus meninos, com indisfarçável xodó pela menina, a mimada mais velha dos três.

Roseana deu os primeiros passos na política em pleno Palácio do Planalto, no Gabinete Civil da Presidência da República, aos 32 anos, formada em ciências sociais, um vernizinho de esquerdista, um violão mal tocado, o apelido de Princesinha do Calhau – menção à mansão colonial na praia do Calhau, que ocupa um quarteirão inteiro de 20.000 metros quadrados, cercada por coqueiros de babaçu e um muro alto, em frente da Baía de São Marcos, em São Luís. Era onde se decidia a vida política do Maranhão. Ali pai e filha montaram suas mansões, vizinhas.

Quem entra na mansão de Sarney imagina tudo, menos uma residência. Com mania de colecionar anjinhos barrocos e outras antiguidades, chegou a retirar o portão de ferro fundido do cemitério de Alcântara, ilha tombada pelo Patrimônio Histórico, e levar para casa como peça de decoração. Quando o visitou, o ex-presidente socialista de Portugal, Mário Soares, levado à mansão, depois de algum tempo de espera, perguntou a Fernando, filho caçula do senador:

“Agora vamos à casa do presidente Sarney?”

Pensou que estava num museu.”

*

“Vizinha do pai na Praia do Calhau, vizinha do pai no Planalto: Roseana tinha gabinete montado pertinho do gabinete do pai presidente. Comportava-se como se estivesse na própria casa.

Bocuda. E desbocada. Mal chegando às bordas do poder federal, ela presenciou o encontro em que o deputado Cid Carvalho, seu conterrâneo, pediu a Sarney apoio para o PMDB nas eleições de 1985. Cid foi enfático:

“Presidente, ao senhor interessa o PMDB erecto!”

Cid voltou ao Planalto semanas depois desenxabido com o fracasso de seu candidato, que não passou do quarto lugar, com apenas dez mil votos. Roseana levantou o braço de punho fechado em posição fálica:

“Então, Cid? Cadê o PMDB erecto?”

Baixou o cotovelo e o balançou em gesto obsceno:

“Broxou?”

Ali ela já era funcionária do Senado, graças a um truque inacessível a nós mortais comuns. Consultemos a reportagem publicada na Folha Online de 25 de marco de 2009. Diz o título: “Sarney ACM e Renan criaram 4.000 vagas no Senado”. Um trecho da reportagem:

Trem da alegria – Entre os servidores efetivos, nem todos são concursados. Estes somam cerca de 1.200. Entre 1971 e 1984, os senadores aproveitaram para efetivar servidores por meio de atos administrativos, embora isso fosse vedado pela Constituição. A atual líder do governo no Senado, Roseana Sarney (PMDB-MA), é servidora do Senado graças a um trem da alegria de 1982, assinado pelo então senador Jarbas Passarinho.

O coronel Jarbas Passarinho prestou grandes desserviços à nação, seja como ministro da Educação da ditadura militar quando reprimiu e perseguiu estudantes e professores, seja como incentivador do Ato Institucional 5, o AI-5, diante de cuja truculência mandou “às favas os escrúpulos” e apoiou com entusiasmo. No finalzinho da ditadura, serviu aos apaniguados com o ato que beneficiou a filha dileta de seu amigo José Sarney, antecipando o legítimo Trem da Alegria de 1984, do senador do PDS capixaba Moacyr Dalla, que embarcou 780 felizardos na gráfica do Senado e outros 600 nos gabinetes da Casa, entre eles a mesma Roseana, que nem morava em Brasília, mas no Rio.

“Essa moça é muito raivosa. E só tem duas amigas: a rainha de copas e a Viúva Clicquot”, disse um dia o ex-governador Epitácio Cafeteira, da família dos Bules, como brincava o jornalista Stanislaw Ponte Preta.

Rainha de copas refere-se a um dos vícios, segundo Cafeteira; e Viúva Clicquot se refere a outro: é meia tradução do nome do champanha francês Veuve Clicquot.

Cafeteira, mais tarde um aliado, era então o mais popular dos adversários políticos e inimigos dos Sarney. Foi ele que em 1994, por apenas um por cento dos votos, perdeu para Roseana o governo do Estado. Ganhou folgado o primeiro turno e no segundo foi derrotado por um triz graças, segundo denúncias documentadas, a uma fraude grosseira nas apurações. O que se sabe com certeza é que papai Sarney instalou-se pessoalmente dentro do Tribunal Regional Eleitoral, o TRE, e de lá só saiu quando os votos para a vitória da filha estavam assegurados.”

*

“‘Roseana é muito inteligente, mas não tem bom coração. Zequinha tem bom coração mas não tem inteligência. Fernando não tem nenhum dos dois’, define João Castelo, outro ex-aliado que virou adversário e, até 2009, quando era prefeito de São Luís, não havia se reconciliado.”

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“Tal era a confiança de Sarney em Tauser Quinderé – nascido em Codó e ex-dono da Companhia Maranhense de Mineração –, que o usou como pombo-correio. Por mais de 20 anos, de tempos em tempos Tauser ia pessoalmente à Suíça levar a mala com as “economias” de Sarney. Certo começo de tarde, instalado numa mesa do Bar da Onça, no térreo do edifício Copan, em São Paulo, Helito, bisneto do Barão de Amparo, conta entre talagadas de uísque:

“Na ditadura, não tinha esse problema, na Suíça entra tudo, então ia com a mala. Não tinha negócio de doleiro não, economizava os quatro por cento do doleiro. E, numa dessas viagens, em Genebra, o Tauser teve um ataque fulminante do coração e morreu, no saguão do aeroporto. Atenderam o Tauser e levaram a mala. O Sarney ainda não era o bilionário que é hoje, mas já era um homem rico. Tinha sido governador, era senador, já tinha os diretorezinhos e o próprio Fernando Sarney na Eletronorte, o Astrogildo Quental levantando dinheiro pra ele, que estava começando a argamassar a fortuna. E nessa mala tinha muito, era uma mala de viagem lotada de dinheiro, e o Tauser morre com ela. Como o Sarney é sabidamente sovina, o Tauser viajava sozinho, de classe econômica, aquelas coisas, sem acompanhante, nada. Pegaram o corpo do Tauser e a grana não apareceu até hoje. Tem mais um rico no mundo.”

Depois de dois belos goles de uísque, com o copo longo envolto por um guardanapo de papel, a aristocrática figura do ex-subchefe da Casa Civil de Maluf retoma o fio da história:

“Ao saber da notícia de que perdeu o fiel escudeiro – e também a mala – o coração de Sarney fraquejou. Impactado por ambas as perdas, deixou Brasília em direção aos cardiologistas de São Paulo. No learjet do dono do cimento Cauê, o mineiro Juventino Dias, dona Marly acompanhou o marido enfartado com o rosário nas mãos”.”

*

“O novo golpe de mestre de Fernando Sarney se dará então na nova transição de governo. Fernando Collor, que havia acabado de vencer Lula no segundo turno, nas eleições de 15 de novembro de 1989, chamou José Sarney para uma conversa reservada poucos dias antes de tomar posse. Conversa entre presidente que sai e presidente que entra. Collor ia tomar posse dia 15 de março de 1990, uma quinta. Ele pediu a Sarney que decretasse feriado bancário, a fim de facilitar a tomada de medidas econômicas do novo governo.

Só quem viveu aqueles dias sabe a hecatombe que aconteceu. Não só os 31 milhões de brasileiros que votaram em Lula, mas também os 35 milhões que votaram em Collor caíram das nuvens naquele início de novo governo. Collor confiscou por 18 meses as contas bancárias acima de 50 mil cruzados de todos os cidadãos e empresas – muitas delas pela primeira vez em sua história deixaram de pagar os funcionários em dia. Houve gente que havia poupado durante anos e anos e só contava com aquela soma para tocar a vida, gente que tinha acabado de vender a casa para construir outra, gente que se suicidou, e toda sorte de atropelo para milhões de brasileiros. Não se sabe até que ponto Collor informou Sarney, mas com certeza o clã ficou sabendo que haveria confisco.

Um passarinho contou a Fernando Sarney, ou terá sido um bumba-meu-boi. Usando suas prerrogativas de filho do presidente da República, Fernandinho sorrateiramente dirigiu-se à agência do extinto BBC, Banco Brasileiro Comercial, de propriedade do ex-governador goiano e ex-senador Irapuã Costa Júnior, para combinar o resgate de dezenas de certificados de depósitos bancários (CDBs) ao portador. Não era pouco. Foi preciso fretar um carro blindado, como um daqueles da Brink's, para retirar a dinheirama, que saiu do subsolo do BBC no Setor Comercial Sul da capital federal. Fernando Sarney comandou a operação pessoalmente.

A capacidade dessa gente de escapar das maiores safadezas de que se tem notícia neste país é de dar um friozinho na barriga, ao imaginar que nem uma Operação Mãos Limpas poria esses colarinhos sujos atrás das grades. Ora veja que, em 2001, sequer uma Comissão Parlamentar de Inquérito relou num dedinho deles. Foi a CPI da CBF-Nike, e quem tentou mexer com eles foi quem se estrepou: a editora Casa Amarela, que publicava a revista Caros Amigos, produziu um livro-reportagem sobre a maracutaia e amargou o prejuízo de ver o trabalho impedido de sair pela Justiça. O presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira, se safou mais uma vez. Ele e seu vice predileto, Fernando Sarney.”

*

“Fernando, um dos vice-presidentes da CBF, antes da Operação Boi-Barrica tinha vasta pretensão: chegar a presidente da entidade-mor do futebol brasileiro, sob a bênção de Ricardo Teixeira. Todo o mundo sabe da grande amizade entre os dois. Ricardo sempre foi presença certa nas comemorações da família Sarney. Imagine o que a dupla vinha maquinando para faturar na Copa de 2014. Construção ou reforma de estádios? Muito pouco. Era sintomático que Ricardo Teixeira viesse se batendo pela privatização da Infraero, que toma conta dos aeroportos. Dizia que o país só poderia ser sede de uma Copa de padrão de primeiro mundo com aeroportos modernizados. A ideia geral era deixar Carlos Arthur Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, envergonhado com a mixaria que a turma dele faturou no Pan-Americano do Rio em 2007.

Ricardo Teixeira e Fernando Sarney iriam provar, na Copa de 2014, que dinheiro pode dar em árvore, sim.”

*

“Vanitas vanitatum, vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Está no Eclesiastes, livro da Bíblia sagrada que todo velho pecador teme ao abrir. A vaidade não se dá jamais por vencida; desmesurada, vai contra a lei dos homens – e até de Deus, se você crê. Como a esperteza, como dizem os mineiros, quando é demais engole o dono. O neocoronel segue como purpurado em cortejo sem ouvir a criança na calçada gritar que ele está é nu, pelado, peladinho.

Corre o mundo virtual o anedotário. Num blog, Veridiana Serpa, que se apresenta como bacharel em Turismo, se estarrece com o que descobriu. Em meados de 2009, ela postou na internet que, em São Luís e outras cidades do Maranhão, pode-se:

• Nascer na Maternidade Marly Sarney.

• Morar numa dessas vilas: Sarney, Sarney Filho, Kyola Sarney ou Roseana Sarney.

• Estudar nas escolas: Municipal Rural Roseana Sarney (Povoado Santa Cruz, BR-135, Capinzal do Norte); Marly Sarney (Imperatriz); José Sarney (Coelho Neto).

• Pesquisar na Biblioteca José Sarney.

• Informar-se pelo jornal Estado do Maranhão, TV Mirante, Rádios Mirante AM e FM, todos de Sarney; no interior, por uma de suas 35 emissoras de rádio ou 13 repetidoras da TV Mirante.

• Saber das contas públicas no Tribunal de Contas Roseana Murad Sarney.

• Entrar de ônibus na capital pela Ponte José Sarney, seguir pela Avenida Presidente José Sarney, descer na Rodoviária Kyola Sarney.

• Reclamar? No Fórum José Sarney de Araújo Costa, na Sala de Imprensa Marly Sarney, e dirigir-se à Sala da Defensoria Pública Kyola Sarney.

Veridiana encontrou mais estas:

• Travessa José Sarney, Anil, São Luís, Rua José Sarney, Tirirical, São Luís.

• Rua Marly Sarney, Açailândia.

• Rua Fernando Sarney, Santa Inês.

• Travessa Roseana Sarney, São Francisco, São Luís.

• Avenida Governadora Roseana Sarney, Barra da Corda.

• Avenida José Sarney, Chapadinha.

• Travessa José Sarney, Caxias.

• Avenida Sarney Filho, Vila Embratel, São Luís.

• Avenida Senador José Sarney, São Luís.

Divirta-se! O Google está aí para isso. Procure que você acha mais. Nem Tiradentes, mártir da Inconfidência e Herói Nacional, recebe tanta honraria. E está morto. Eles estão muito vivos.”

*

“O deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), tal como aquele ministro que ditou nossa política econômica nos “anos de chumbo”, seu negócio é números. Trabalhou na Xerox e na auditoria Arthur Andersen, então entrou para a política. E passou a inscrever no currículo inumeráveis suspeições.

Em 2000, a Receita Federal acusou “incompatibilidade entre sua movimentação financeira e o montante declarado ao Imposto de Renda”. Três anos depois, segundo denúncia que chegou ao presidente da Câmara, Aldo Rebelo, do PCdoB paulista, Eduardo Cunha e dois colegas deputados estavam tomando dinheiro de empresários do setor de combustíveis. Usavam a Comissão de Fiscalização e Controle para os convocar e, se quisessem livrar-se da convocação, pagavam “pedágio”. A denúncia não deu em nada.

A deputada estadual Cidinha Campos, do PDT do Rio de Janeiro, mais tarde acusou Eduardo de esquisita transação com o traficante colombiano Juan Carlos Abadia, preso em agosto de 2007 num condomínio de alto luxo em São Paulo. Cidinha afirmou em discurso na Assembleia que Eduardo vendeu para Juan Carlos uma casa no litoral fluminense por 800 mil dólares. Casa recomprada, em seguida, por 100 mil dólares a menos. Negócio feito por meio de laranjas, segundo Cidinha. Eduardo nega.

Eduardo tem afinidades com o clã Sarney – adora, por exemplo, lidar com energia. E fundos de pensão. Contra a posição da ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, e usando artifícios regimentais da Câmara que lhe permitiam chantagear, pôs na presidência de Furnas Centrais Elétricas o ex-prefeito carioca Luiz Paulo Conde. Após 14 meses no cargo, Conde ficou doente e se afastou, depois de lutar para pôr a mão no fundo de pensão Real Grandeza, dos funcionários de Furnas, que detém mais de RS 6 bilhões em caixa (lutando por seu próprio futuro, os funcionários de Furnas chegaram a entrar em greve tendo como pauta somente a não aceitação da nomeação de um apaniguado de Eduardo Cunha para seu fundo de pensão).

Entre 2003 e 2006, outro fundo de pensão, o Prece, da companhia de saneamento do Rio, gerido por gente que Eduardo indicou, deu prejuízo de mais de R$ 300 milhões, segundo apurou a CPI dos Correios. Parte do dinheiro regou o “valerioduto”, esquema de desvio de verbas públicas para comprar apoio de parlamentares – o chamado Mensalão.

Quem o pôs na política foi o tesoureiro do ex-presidente Fernando Collor, de trágica memória, Paulo César Farias, o PC. Com menos de 30 anos, Eduardo era figura importante na campanha de Collor no Rio. Virou presidente da Telerj, companhia de telecomunicações fluminense. Aliou-se a Anthony Garotinho e à mulher dele, Rosinha. Evangélico, em 2000 elegeu-se deputado estadual pelo PPB de Paulo Maluf.

Deputado federal, reeleito em 2006, tornou-se especialista em energia. Então, em 25 de março de 2009, incluiu uma mudança na regra das licitações, abrindo a possibilidade de a Eletrobrás comprar bens e contratar serviços por meio de um “procedimento licitatório simplificado”. Em seu blog, o preparado jornalista de economia Luis Nassif chamou Eduardo pelo eufemismo de “operador”. Ou seja: Eduardo Cunha operou, e doravante a turma do Sarney e do Lobão pode fechar negócio com quem quiser, como quiser. Comentário do mesmo Luis Nassif sobre a nova regra:

“Sempre existe o risco de deixar a raposa solta no galinheiro”.”

*

“O Maranhão, depois de 40 anos de predação promovida pelo clã dos Sarney, tornou-se o maior exportador de gente do país. Na primeira década do século 21, você encontraria maranhense nos lugares mais improváveis, nos garimpos da fronteira com a Venezuela, no corte de cana do interior paulista, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, na lavoura do Tocantins, no Amapá, nas Guianas, até em Florianópolis – que jamais havia visto um maranhense ao vivo, salvo turista.

A maioria dos passageiros que, partindo de São Luís, seguia no trem da ferrovia Carajás em direção ao Pará, era de maranhenses que possivelmente nunca mais voltariam. Espalhavam-se pela Amazônia como formiguinhas sem rumo em busca de migalhas. No sul do Pará, um em cada quatro habitantes já era maranhense. Dos 19 sem-terra assassinados em 1996 pela PM do Pará em Eldorado dos Carajás, 11 tinham vindo do Maranhão. Mas a que se deve tanta desgraça?”

*

“Só agora, conversando naquela tarde paulistana com o governador maranhense Jackson Lago, descubro que por trás da tragédia de Manoel da Conceição, e de um milhão de maranhenses enxotados de sua terra, também está o clã dos Sarney. (...) Podemos, sem culpa alguma na consciência, pôr na conta de quase meio século de domínio absoluto da família Sarney sobre o Maranhão:

• média de escolaridade em anos de estudo: 3,6 – a menor do país;

• das 100 cidades brasileiras com menor renda per capita, 83 são maranhenses;

• mortalidade infantil, taxa por mil crianças nascidas vivas, em 2004, era de 43,6 – vice-campeão, perdia apenas para Alagoas.

Jackson também não disse, mas terra é pouco para Sarney. O autor de O Dono do Mar é também... o dono do mar. Parece outro episódio de realismo fantástico. A ilha de Curupu, nome que quer dizer Cacique Cabelo de Velha, no município de Raposa, perto de São Luís, aonde só se chega de barco ou avião, tem uma cidade linda e 15 praias maravilhosas, tudo terreno da Marinha. Poderia ser um polo turístico extraordinário, mas quem é que se arrisca a pleitear a abertura de qualquer negócio nas praias do neocoronel? Na sua reserva ambiental privada, que ele afirma que recebeu como herança?

Todas as 15 praias de Curupu, não por coincidência, ficam nos 38 por cento que Sarney detém em Raposa, cerca de 2.500 hectares, maior que a ilha de Skorpios do bilionário Aristóteles Onassis, na Grécia, ou a do cirurgião plástico Ivo Pitanguy, em Angra dos Reis. Seus 25 mil outros viventes que dividam entre si os 62 por cento restantes, de preferência sem vista para o mar. O Ministério do Turismo sabe de tudo isso, mas se faz de joão-sem-braço. Enquanto isso, a raposa de Raposa diz que fez em Curupu uma casa à sua imagem e semelhança, bem simples, adequada a um intelectual de hábitos espartanos. Na verdade é uma mansão, à qual se junta outra luxuosa mesmo, projeto do arquiteto Sérgio Bernardes para o casal Roseana-Jorge Murad. Coisa para acabar de uma vez por todas com aquela história de que, no Maranhão, a família Sarney só não era dona do mar. Terra, para Sarney, é pouco. Aliás, não se conhece outro caso de ex-presidente dono de ilha. Nem ex-presidente dono de castelo medieval.”

*

“Das heranças malditas da ditadura, a mais pervertida delas está nas concessões de rádio e televisão. A partir da segunda metade da década de 1960, os militares passaram a cassar concessões de grupos de empresários nacionalistas e progressistas – a TV Excelsior foi um exemplo, pertencia à família Simonsen, que também perdeu a companhia aérea Panair do Brasil, celebrizada em versos de Milton Nascimento e Fernando Brant:

“Descobri que minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Panair.”

A Panair morreu para a Varig tomar conta do mercado aéreo. A Excelsior morreu para a Globo se tornar a campeã de audiência. A distribuição de concessões inaugurada pela ditadura chegou ao paroxismo quando Sarney se viu aboletado na cadeira de presidente da República. Para garantir cinco anos de mandato, e não quatro como estava “combinado” ele se mancomunou com Antonio Carlos Magalhães, seu ministro das Comunicações, e a dupla distribuiu nada menos que 1.091 concessões de rádio e televisão. Destas, 165 “compraram” parlamentares; e 257 eles distribuíram na reta final da aprovação da Constituição de 1988. Não é exagero dizer que ali os coronéis plantaram seara para colher frutos por décadas a fio.

Nem é exagero debitar na conta da dupla de coronéis a programação idiota e fabricante de idiotas que temos neste país, dado o nível de “políticos” que ganharam concessões – dispostos à imoralidade de trocar rádio e tevê por apoio a mais um ano de Sarney. São todos do mesmo saco, os grandes responsáveis pela “máquina de fazer doido”, o jornalismo emasculado e engomadinho, a picaretagem em nome de Cristo, a cafetinagem do Filho de Deus – “esta televisão” escreveu João Antônio, “que vai transformando ignorantes em idiotas”.

O historiador Wagner Cabral da Costa localiza o momento exato em que Sarney dá o pulo-do-gato na onça:

“Em 1991, Edison Lobão ganha a eleição para o governo e logo faz o acordo para comprar a TV Difusora com sobras de campanha. E o que eles devem ter arrecadado no segundo turno para ganhar as eleições deve ter sido extraordinário. Lobão 'perde' a concessão da Globo, fica tranquilo com o SBT, que era de Sarney. Assim se consuma um troca-troca, pois a TV Mirante do Sarney passa a retransmitir a Rede Globo.”

Lobão e Sarney passariam a dominar, com o SBT e a Globo, todas as telinhas do Maranhão. Através dos anos, Sarney se gabaria de que tal concessão lhe foi concedida depois que ele saiu da Presidência da República. O fato é que, a partir dali, quem decidiria o que o maranhense iria ver todo dia na televisão seriam dois “netinhos da ditadura”: Fernando Sarney, chefe de uma quadrilha segundo a Polícia Federal; e Edison Lobão Filho, o Edinho Trinta, “por causa das taxas que cobrava para realizar transações do governo do pai dele para liberar pagamentos, etc. e tal”, como diz o historiador Wagner.”

*

“Ex-jornalista, ministro aos 72 anos, natural da cidade maranhense de Mirador, Edson Lobão formou-se em Direito. Na imprensa, chegou ao auge quando assumiu a sucursal da Globo em Brasília. Foi colega de jornalistas respeitados como Tarcísio e Haroldo Holanda, João Emílio Falcão, Ari Cunha e Gilberto Amaral no Correio Braziliense. Quando precisavam de alguém para fazer um “trabalho sujo”, rejeitado por qualquer jornalista que merecesse este nome, o superintendente dos Diários e Emissoras Associadas em Brasília, Edilson Cid Varela, gritava:

“Manda pro Lobão!”

Um publicitário superinformado define:

“Se Don Corleone, na interpretação magnífica de Marlon Brando, tivesse conhecido o Lobão, faria dele seu lugar-tenente. O Lobão é de uma frieza glacial. Vai ser fiel ao Sarney até o velório. Mas, antes da missa do sétimo dia, já toma o poder dos meninos, o que não é difícil. Além disso, o Edinho odeia o Jorginho Murad, pois concorrem na mesma faixa, digamos, o mercado do percentual.”

Corajoso, atrevido, tornou-se ministro peitando Dilma Rousseff, a poderosa ministra, chefe da Casa Civil e menina dos olhos do presidente Lula como candidata à sua sucessão, e apesar de ainda outro dia estar filiado ao seu PFL velho de guerra, do qual se desfez para entrar no PMDB e se credenciar ao cargo, sempre pelas mãos do padrinho Sarney.

Quando foi nomeado ministro, o filho – seu suplente – demorou a assumir o lugar no Senado: estava esquiando em Aspen, o “paraíso gelado” nos Estados Unidos. Com seu rosto talhado em pedra. Lobão se manteve calado em meio ao tiroteio que apontava as maracutaias do filho. Não abriu a boca. Afinal, era o ápice de sua carreira.

Edinho Trinta, menino mimado de dona Nice, herdou dos pais, entre outros negócios, a representação da cervejaria Schincariol no Maranhão, que ele botou no nome de uma doméstica-laranja quando o Fisco bateu com punhos de ferro em sua porta. Por falar em Nice, deputada federal pelo ex-PFL, um amigo do casal fala duas coisas:

“A Nice é cem vezes melhor que o Lobão. O poder e a fortuna não tiraram a humanidade dela. Foi secretária de Ação Social no governo dele. Nunca votou contra aposentados e trabalhadores. Já o Lobão topa qualquer parada. Ele é inabalável, frio. Se acertar na loteria e ganhar um milhão de dólares, se ficar com ódio, se for beijado por um neto querido, mantém a expressão inalterada, a mesma expressão facial. É um homem despido de qualquer emoção.”



Edson Lobão carregará também para sempre a fama de delator e de cão fiel dos mandachuvas da ditadura.”

*

“A união com Murad, iniciada em 1976, quando Roseana Sarney era uma gatinha de 22 anos, ia mal. Os comentários, tanto sobre incursões do marido no mundo dos negócios como sobre desavenças conjugais, eram cada vez mais frequentes. (...)

Logo após, quando o governo do sogro já fazia água e os sucessivos pacotes econômicos afundavam um a um, Roseana resolveu partir. Na verdade, a saúde não estava boa, o casamento tinha acabado e ela havia reencontrado um grande amor da adolescência. Embora mais tarde, de todas as maneiras, seus assessores e companheiros de lides políticas tentassem omitir, Roseana viveu com Carlos Henrique Abreu Mendes.

Essa separação de Roseana e Jorginho também foi bancada com dinheiro público. Quer ver como?

O empresário Ornar Fontana, dono da Transbrasil, cercado por um bando de picaretas conhecidos do mercado do lobby em Brasília, alguns ligados ao PFL, pleiteava colossal empréstimo, coisa de 40 milhões de dólares, no Banco do Brasil. Inadimplente histórico, o velho e legendário comandante encontrou todas as travas possíveis para a concessão de tal crédito. Aí seus lobistas tiveram a ideia de levar o pedido a Jorge Murad.

Em Brasília, não é segredo: a assinatura de um desquite amigável, sem escândalos, bem como a aceitação tácita de uma relação que já existia entre a ainda esposa Roseana e o secretário de Moreira Franco, Carlos Henrique Abreu Mendes, ficaram condicionados à liberação do crédito a uma empresa tecnicamente falida, como era o caso da Transbrasil. O empréstimo saiu. O que terá dado Fontana a Murad em troca de tão decisivo apoio? Comenta-se que algo em torno de 10 por cento de simpatia, amizade e gratidão.”

É DURA A VIDA

DE UM SEM-TOGA

O clã começou a puxar o tapete sob os pés de Jackson Lago tão logo as urnas se abriram no fim de outubro de 2006, dando-lhe a vitória. A gente não pode esquecer que Jackson, três vezes prefeito de São Luís, que concentra um terço do eleitorado maranhense, teve ali 66% dos votos na eleição de 2006. Em Imperatriz, região tocantina, ele recebeu nada menos que 76%, três quartos do eleitorado. Nesses dois lugares a eleição teve sabor plebiscitário: o povo queria mesmo se livrar da sarna Sarney.

Imediatamente, os derrotados chamaram seus advogados e entraram com processo de cassação do vencedor, por “abuso do poder”, tal como “beneficiar-se de convênios do Estado com prefeituras durante o período eleitoral” e “comprar votos”.

O Sistema Mirante não deu sossego a Jackson um só dia, durante os dois anos seguintes à sua posse em 1º de janeiro de 2007. Um bombardeio, uma campanha de intimidação e de preparação do povo para a volta “inevitável” de Roseana, como explica o historiador Wagner Cabral da Costa:

“Desde janeiro de 2007, sistematicamente os meios de comunicação da família diziam ‘cuidado, o processo dele está sendo julgado pelo Supremo’. Ou seja, a imagem de Sarney no Maranhão é a do homem que precisa ser temido. É um grande fantasma. Alguns colegas meus diziam na época da campanha que as pessoas não votavam em outros candidatos por medo. A imagem do medo estava colocada.”

O grupo dos vencedores festejava com Jackson “o fim da oligarquia” sem atentar para um detalhe fundamental: diante dos Sarney, eles não passavam de uns pobres-diabos, um grupo de sem-toga.

Falta uma semana para o Natal de 2008. Os juízes do Tribunal Superior Eleitoral, TSE, votam pela segunda vez a cassação de Jackson Lago. A turma de Roseana se reúne nos jardins da mansão de Sarney na Praia do Calhau. A decisão é considerada o “presente de Natal” de Roseana. Começa a votação, e o ministro Eros Grau, relator do processo, pronuncia-se a favor da cassação de Jackson. Ouve-se um grito nos jardins:

“Essa toga é nossa!”

Rojões espoucam. Perto da aposentadoria, Eros Grau sonha naquele momento com uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, como lhe prometeu José Sarney. Serve também uma vaga na Corte de Haia. Poderá então morar no apartamento que tem em Paris, decorado logo no vestíbulo com uma escultura em tamanho natural que representa ele e a mulher caracterizados como Adão e Eva no paraíso.

O presente de Natal acabou adiado porque um juiz pediu vistas do processo. Então, no meio de março de 2009, enquanto Jackson e seus correligionários sofriam um suspense com a votação final que se aproximava, o pai de Roseana rumava para o Amapá, a propósito das comemorações do 19 de março, dia do padroeiro do Estado, São José. E a pessoa com quem Sarney ia encontrar-se em Macapá para um amigável café-da-manhã, lá no meio do planeta, nem em sonho toparia manter um encontro com Jackson Lago.

Tratava-se do presidente do Supremo Tribunal Federal, o empresário Gilmar Mendes, um dos três donos do Instituto Brasiliense de Direito Público, IDP. Os outros dois sócios eram Paulo Gustavo Gonet Branco, procurador regional da República, e Inocêncio Mártires Coelho, último procurador-geral da República da ditadura, nomeado pelo general João Baptista Figueiredo. Faziam parte da turma de professores do IDP vários colegas de Gilmar no Supremo, entre eles Carlos Alberto Direito, Carlos Ayres Brito, Eros Grau, Marco Aurélio Mello, Carmem Lúcia Rocha.

Na política nacional, difícil é a vida de um sem-toga. Jackson Lago, enfim seria vítima do golpe judiciário, esbulho consumado em 15 de abril de 2009. Essa expressão – golpe judiciário – usada pelo advogado Francisco Rezek durante toda a defesa de Lago, deixou Sarney espumando. Depois do julgamento, o velho coronel mandou uma carta irada ao ex-presidente do TSE. Dizia que o advogado lhe “devia” a indicação para o Supremo, aos 39 anos, durante o governo de João Figueiredo, usando a condição de presidente do PDS, e que não admitia “tamanho insulto”. Rezek respondeu que nada lhe devia e que isso não era verdade.

Este é um capítulo rosa-choque, mas cabe aqui abrir parênteses e falar de um “cabra macho”.

CORONEL CHICO

NÃO LHE CHEGARIA AOS PÉS

A carta enviada a Rezek revela que Sarney guarda ranços do coronelismo dos tempos de Chico Heráclio. A partir de Limoeiro, Chico Heráclio fez valer sua influência em Pernambuco, e também na Paraíba, nas décadas de 1950 e 60. O coronel pernambucano pelo menos era ostensivo. Costumava dizer que “oposição e sapato branco só é bonito nos outros”. Quando comparecia aos julgamentos, juiz e jurados ficavam de olho na gravata dele. Se vermelha, tinham de condenar o réu. Se verde, o sujeito estava absolvido. Mas, e se fosse amarela a gravata? Aí, tudo bem, julgassem como quisessem: o coronel só estava ali a passeio. Pode ser lenda, pode não ser. Sarney tem saudade daqueles tempos. Não precisava ter. Ele vai além, ele é pós-Chico Heráclio.

Francisco Rezek também ironizou, durante o julgamento de Jackson Lago, a celeridade incomum do processo. O vice-procurador eleitoral Francisco Xavier Filho mereceria o epíteto de The Flash: leu os volumes com 15 mil páginas em apenas 16 dias. Dá coisa de uma página por minuto, isso se não dormisse, não comesse, sequer fosse ao banheiro. E encampou a tese da acusação. Num parecer de 15 páginas, recomendou a cassação do governador e do vice, e a posse de Roseana e João Alberto de Souza, o Carcará.

Entrementes, Sarney livrou-se de um processo que pedia a cassação dele e do governador do Amapá, Waldez Góes. A decisão do ministro Fernando Gonçalves, do mesmo TSE, entrou para a história. Fernando Gonçalves sustou o processo, por conta própria, por falta de custas para extração de fotocópias. Leia o despacho, se duvidar, no Diário da Justiça de 6 de abril de 2009.

Chico Heráclio tinha era muito a aprender com o pai de Roseana.

ELEONORA GOSTA

QUE SE ENROSCA

Tão difícil quanto a vida de um sem-toga é a vida de um sem-mídia. Quando Jackson Lago entrou com recurso no Supremo Tribunal Federal e afirmou que aguardaria a decisão da Corte em palácio, de onde só sairia “arrastado”, O Globo o acusou de promover “uma quartelada” – transformando o golpeado em golpista. O mesmo O Globo em que, paradoxalmente a colunista Miriam Leitão chamou de “grotesca” a decisão da Justiça Eleitoral de cassar o vencedor e, em vez de dar posse ao vice, entregar o cargo à perdedora Roseana – Miriam comparou a situação com o impeachment de Fernando Collor em 1992: quem assumiu foi seu vice Itamar Franco, e não o perdedor Luiz Inácio Lula da Silva.

A Folha de S. Paulo já tinha feito melhor por Roseana. No dia 7 de dezembro de 2008, a edição de domingo publicou uma chamada no ponto mais nobre da primeira página – o canto esquerdo no alto. “Uma bomba na cabeça” dizia o título. O textinho acrescentava:

“A senadora Roseana Sarney, 55, fala sobre o diagnóstico de aneurisma cerebral e se prepara para sua 21ª cirurgia.”

Para disfarçar o objetivo político ali embutido, a editora-executiva Eleonora de Lucena jogou o material para a seção Saúde, onde Roseana posa sorridente em foto que toma a página de alto a baixo. A “reportagem”, de Amarílis Lage, levanta a bola de Roseana, mostrada como “corajosa”.

Mas é o caso de perguntar: como pode alguém que está com “uma bomba na cabeça” esbaldar-se no carnaval? Pois foi no camarote do governo fluminense que Roseana sambou madrugada afora, ao lado do irmão Fernando, o procurado pela Polícia, causando – segundo notas nos jornais – constrangimento ao presidente Lula, que ali estava como convidado do governador.

Eleonora de Lucena tem um quê pela família de José Sarney, prata da casa, dono da coluna da página 2 da Folha às sextas-feiras. Em 2002, quando crescia a candidatura de Roseana a presidente da República, a editora-executiva vetou reportagem feita por um enviado especial ao Maranhão. Contava em detalhes o episódio, aqui neste capítulo narrado, em que Jorge Murad, depositário infiel, acabou preso.

“Isso é machismo”, justificou a jornalista.

Eleonora pôde mostrar seus préstimos novamente quando a barra ficou pesada para o clã, com a divulgação dos crimes de Fernando Sarney, descobertos pela Polícia Federal na Operação Boi-Barrica, em outubro de 2008. O jornal até publicou a transcrição das fitas que a Polícia gravou e o conteúdo da investigação. Mas a reportagem que aprofundava o impacto da operação policial no seio do clã, escrita pela enviada especial Elvira Lobato, Eleonora enfiou numa gaveta e lá a esqueceu.

Graças a Eleonora, o pai de Roseana ganhou um palco inestimável em 26 de agosto de 2008. Eleonora tem faro para o timing. A Polícia Federal fechava o cerco a Fernando Sarney e podia meter-lhe as algemas a qualquer momento. Para o pai, com a autoestima abalada, não podia vir em melhor momento a Sabatina Folha, tendo como atração “o senador José Sarney”, no sofisticado Pátio Higienópolis, sob a escolta de recepcionistas selecionadas com esmero. Na sua insaciável busca de limpeza da própria biografia, Sarney teve um refresco naquela manhã.”

*

“O governo Sarney (1985-1990) tentou salvar-se do naufrágio segurando-se no Plano Cruzado (o Cruzado substituiu o Cruzeiro). É um plano eleitoreiro de impacto com base na inflação zero, baixado em fevereiro de 1986. Surgiram os “fiscais do Sarney”, figuras do povo que acreditavam no tabelamento de preços imposto pelo governo trapalhão. Eles saíam pelos estabelecimentos com o broche de identificação, “Sou fiscal do Sarney”, a denunciar diante das câmeras de tevê quem aumentava preços. E afundou-se o governicho de vez no Plano Cruzado II, seis dias depois de o governo faturar a maior vitória eleitoral da história da República, em 15 de novembro: elegeu 21 de 23 governadores. Com salários congelados durante nove meses, o povo foi obrigado a arcar com os seguintes aumentos num só dia:

• 60% na gasolina;

• 120% nos telefones e energia;

• 100% nas bebidas;

• 80% nos automóveis;

• 45% a 100% nos cigarros;

Veio reação. Com o Plano Cruzado II, em 21 de novembro de 1986, explode manifestação em Brasília, o Badernaço. No dia 27 houve saques, depredações e incêndios. Atônito, Sarney mandou os tanques Urutus para as ruas. Acuado, recorreu ao Exército para fazer o trajeto entre o Palácio do Planalto e a Catedral. Ajoelhou, tinha que rezar.

As manifestações contra o velho coronel começaram desde a decretação do chamado Cruzadinho, em fins de julho de 1986, quando houve aumento de preços de carros e combustíveis em 30%, enquanto o governo alardeava a tal inflação zero. Também se pode dizer que o governo Sarney acabou em 25 de junho de 1987, quando uma multidão enfurecida abordou o ônibus do presidente no Paço Imperial, na Praça XV, centro do Rio, gritando:

“Sarney, salafrário, está roubando o meu salário!”

“Sarney, ladrão, Pinochet do Maranhão.”

Arrebentaram a janela do lado em que se encontrava Sarney, ferindo-o levemente na mão. O governo federal passou a acusar o ex-governador do Rio, Leonel Brizola, pelo “atentado”. O partido de Brizola, PDT, junto com o PT e a CUT, Central Única dos Trabalhadores, tinham organizado a manifestação.

Logo, o “entulho autoritário” da ditadura em peso foi desenterrado. Sarney, com apoio do PMDB, valeu-se da Lei de Segurança Nacional para invadir residências e prender gente sem mandado judicial. A Rede Globo responsabilizou Brizola pelo episódio em editorial do jornal Nacional. O Globo aproveitou para pedir a cassação do ex-governador do Rio de Janeiro em editorial no alto da primeira página intitulado A Opção pelo Crime.

Os fatos soterraram a encenação. No 1° de julho de 1987, uma semana depois do incidente, o centro do Rio virou chamas e restos: 60 ônibus incendiados e 100 com vidraças e carrocerias destruídas. As passagens de ônibus subiram 49%, em pleno congelamento de três meses, decretado 19 dias antes por Sarney, em novo pacote, agora chamado Plano Bresser. Uma massa enfurecida, 30 mil pessoas, fez o estrago. A polícia prendeu cem. No fim da tarde o preço das passagens voltou ao que era antes.”

*

“Dos 56 cargos federais existentes no Maranhão durante os dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência da República, entre 2003 e 2009, 54 pertenciam à “cota” de José Sarney. O partido do presidente da República, Partido dos Trabalhadores, conseguiu nomear apenas dois. Não precisava ser analista político para concluir que Lula era como que refém de Sarney e seus honoráveis. Bastava lembrar o episódio em que a ministra chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, vetou Lobão para o Ministério das Minas e Energia. Sarney anunciou por todos os quadrantes, por todas as mídias, que entrava “em férias”, ao que Roseana declarou que acompanharia papai, ao que toda a base parlamentar obediente a Sarney sinalizou que se tratava de férias coletivas. Ou seja, o parlamento parava, a máquina administrativa emperraria – cairia o sistema, como se diz em informática.

No 2 de fevereiro de 2009, ao chegar ao máximo cargo do Congresso, Sarney controlava também áreas do Ministério dos Transportes, dominava a energia de ponta a ponta, preparava-se para, com ajuda de suas togas, derrubar o governador eleito pelo povo maranhense e pôr no cargo a própria filha, que havia perdido as eleições de 2006 para Jackson Lago.”

*

UM MARANHÃO

PARA CADA UM

O Caso Lunus não era nada, um passeio na floresta encantada, comparado ao impacto devastador do relatório divulgado na imprensa em 4 de outubro de 2008. Só num país como o Brasil Sarney poderia chegar aonde chegou naquele 2 de fevereiro de 2009, agora com um filho metido em falcatruas de toda ordem. A nova investigação começou a partir de uma movimentação “atípica”, de 2 milhões de reais em dinheiro vivo, comunicada ao Ministério Público pelo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras). A bolada entrou nas contas de seu filho Fernando Sarney e da mulher dele, Teresa Cristina Murad Sarney, às vésperas do segundo turno das eleições de 2006, para o governo do Maranhão. Roseana Sarney, agora no PMDB de papai José Sarney, tentava voltar ao Palácio dos Leões. Acabaria derrotada por Jackson Lago, pedetista histórico, num dos resultados mais espetaculares daquelas eleições.

O clã ficou tão desconcertado, desesperado mesmo, que Edison Lobão, já no segundo mês da gestão Jackson Lago, propôs no Senado um plebiscito no Maranhão para criar o Maranhão do Sul, capital Imperatriz, segunda maior cidade do Estado, onde Roseana também perdeu. A paixão é tanta, que queriam criar dois Maranhões. Da estapafúrdia proposta, nem a Folha de S. Paulo gostou, ela que dá uma coluna semanal ao velho senador.

*

UMA BOQUINHA

PARA O TIO GAGUINHO

Aqueles “atípicos” 2 milhões deveriam turbinar a campanha de Roseana. E a quem as togas cassarão, dois anos depois, por “abuso de poder econômico”? O vencedor das eleições, o módico Jackson Lago. Roseana volta, e com ela personagens que vão e vêm, tal qual nos filmes eternamente repetidos nas sessões da tarde da televisão. Gaguinho é um deles.

No centro histórico de São Luís, dois do povo conversam:

“Qual a pior coisa do Maranhão?”

“A família Sarney.”

“Qual a melhor coisa do Maranhão?”

“Ser da família Sarney.”

*

ÀS FAVAS A

INCONSTITUCIONALIDADE

No centro histórico de São Luís, ergue-se uma edificação do século 17, palco de sermões do Padre Antônio Vieira, um dos maiores oradores em língua portuguesa, autor dos Sermões e de um opúsculo chamado – mais uma vez não se trata de piada pronta –A Arte de Furtar.

Em 1990, o governador Epitácio Cafeteira deixa o cargo para disputar o Senado. Seu vice, João Alberto, assume. E toma a iniciativa que Sarney espera: promove a doação do Convento das Mercês ao ex-presidente, mediante escritura registrada no cartório de um parente da família Sarney. Dez anos depois, a área, com 6.500 metros quadrados, tombada pelo Patrimônio Histórico, por outro tipo de manobra se transforma, de Fundação da Memória República, em Fundação José Sarney. Será futuramente, apregoa o senador, um Memorial da República. A historiadora Maria de Fátima Gonçalves, autora de Reinvenção do Maranhão Dinástico, recorreu ao acervo ali oferecido. Não encontrou referência alguma que a ajudasse.

“Guardam almanaques, folhetos e enciclopédias dos mais variados assuntos”, diz Maria de Fátima, “esoterismo, literatura de autoajuda, livros didáticos dos antigos cursos primários de São Luís.”

E, acredite, lhe passaram também desenhos que os filhos de Sarney faziam quando eram crianças. Do genial Padre Antônio Vieira, você não encontrará nada ali. Em compensação, numa ala do pátio central vai deparar com um busto do “escritor” José Sarney, com um versinho do próprio:

Maranhão

Minha terra

Minha paixão

Ele acha isso tão bacana, que inscreveu na página dos editoriais de seu jornal.

No andar superior, há três salas reservadas a uma exposição sobre o Brasil, os ciclos históricos, e duas salas para objetos, documentos e fotos de momentos protagonizados por Sarney ou parentes dele. A curadoria assina um texto em que exalta o “ilustre maranhense”, como literato criador de personagens “imortais” como Antão Cristório e Saraminda, e como político “destacado em recente pesquisa como um dos melhores presidentes da República em toda sua história já secular”.

Como se vê, a única coisa em comum com um convento é a pobreza franciscana, nos textos e no acervo à disposição dos visitantes.

Na verdade, toda essa prosopopeia camufla a verdadeira natureza da imponente edificação. O Convento das Mercês transformou-se em mais uma mina de dinheiro do clã. Do estacionamento às instalações, o que vier eles aceitam: convenções, aniversários, seminários, casamentos, batizados. Sem contar que os sucessivos governos sarneyzistas sempre contribuíram com quantias generosas, ora a título de reformas, ora certas participações não bem explicadas.

Mas o grande acontecimento é o São João Fora de Época, isto sim é que é um negócio rendoso – patrocinado por empresas do porte da Petrobras, Vale do Rio Doce, Abyara. Não adianta nem pensar em menos de 500 mil por cota de participação.

Estive no Convento depois de uma festa dessas. A beleza que a gente vê nas fotografias não existe. A grama pisada, sujeira, garrafas PET, restos de comida para todo lado. O sinal de religiosidade que avistei foi, num desvão, um engradado de refrigerantes “made in Maranhão”, da famosa marca Jesus.

Em 2005, o deputado estadual Aderson Lago conseguiu aprovar na Assembleia projeto de lei que restituiria o Convento ao Patrimônio Público. O ministro do Supremo Marco Aurélio de Mello, toga indicada por seu primo Fernando Collor de Mello quando presidente no início da década de 1990, nem leu os argumentos que mostravam a inconstitucionalidade da doação do prédio histórico aos Sarney. Mandou tocar em frente.

*

“João e Janete Capiberibe foram igualmente vítimas do golpe judiciário denunciado por Francisco Rezek no caso Jackson Lago. (...) O casal Capiberibe acusa Sarney de ter armado a cassação de seus mandatos no Amapá, ele senador, ela deputada federal. Os dois, eleitos pelo PSB, Partido Socialista Brasileiro, tinham currículo político invejável, forjado na luta contra a ditadura.

Os métodos para derrubar João e Janete foram os habituais. O PMDB entrou com processo no TSE pedindo a cassação do mandato deles no início de 2004, acusando-os de comprar votos. As provas se desvaneceram. Havia duas mulheres, que disseram ter recebido 26 reais e 50 centavos para votar em João e Janete. Elas negaram tudo em depoimento à Polícia Federal e admitiram que tentaram extorquir o casal. Também foram apreendidos 150 mil reais e uma lista com supostos eleitores, mas o casal alegou que era um cadastro de militantes de boca de urna.

Num desdobramento muito parecido com o caso de Jackson, os advogados do casal ainda conseguiram que eles permanecessem no Congresso, apesar de cassados pelo TSE – o Tribunal Regional Eleitoral do Amapá os considerou inocentes; o Ministério Público estadual acompanhou todo o processo e não fez denúncia alguma. Mesmo assim, em 22 de setembro de 2005 o STF arquivou a liminar. E cassou o mandato dos maiores adversários de Sarney no Amapá, Estado tão desgraçado, que tem como maior atração uma linha imaginária, a Linha do Equador, e como líder-mor um coronel infelizmente real.”

*

“Colunista da página 2 da Folha, escrevendo sexta sim, outra também, Sarney vê na primeira fila da plateia Otávio Frias Filho, diretor de redação do jornal, e pensa que com o velho Frias seria mais fácil segurar noticias e manchetes desfavoráveis quando tudo explodir. Faz esforço para parecer seguro diante da plateia, malabarismos retóricos para “provar” que foi o presidente da transição democrática, que abriu caminho para o Plano Real e a estabilidade econômica do país, e mais, sem sua atuação no Planalto um metalúrgico jamais chegaria à Presidência da República. Tudo isso para, no final, na hora de correr para o abraço, ter que ouvir de um aposentado que se ergueu e, com voz firme e sem ironia alguma, a sério, proclamou:

“O senhor foi o melhor presidente que a ‘revolução’ teve!”

Numa frase, o desastrado admirador acabou com um ano de seus esforços de limpeza da biografia.”
jornalggn.com.br

Introdução ao Cristianismo: Preleções sobre o Símbolo Apostólico (Parte I)




Editora: Herder
Tradução: José Wisniewski Filho


“Crente e incrédulo, cada qual a seu modo, participam da dúvida e da fé, caso não se ocultem de si mesmos e da verdade da sua existência. Nenhum é capaz de evadir-se completamente à dúvida; nenhum pode escapar de todo à fé. Para um, a fé torna-se presente contra a dúvida; para outro, pela dúvida e em forma de dúvida. Temos aí a figura fundamental do destino humano: ser capaz de encontrar o definitivo de sua existência somente nesse inevitável embate de dúvida e fé, de agressão e certeza. Talvez esteja aqui o caminho para transformar em ponto de encontro, de contato, a dúvida que preserva a um e a outro do perigo de encapsular-se em si mesmo. Ambos estão impedidos de enrolar-se em si mesmos; o crente é impelido para o que duvida, e este para o crente. Para um temos aí uma participação no destino do incréu, para o outro, a forma pela qual a fé, apesar de tudo, continua sendo um desafio.”

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“A tendência natural do homem leva-o ao visível, ao que se pode pegar e reter como propriedade. Cumpre-lhe voltar-se, internamente, para ver até que ponto abre mão do que lhe é próprio, ao deixar-se arrastar assim para fora da sua gravidade natural. Deve converter-se, voltar-se para conhecer quão cego está ao confiar apenas no que os olhos enxergam. A fé é impossível sem essa conversão da existência, sem essa ruptura com a tendência natural. Sim, a fé é a conversão, na qual o homem descobre estar seguindo uma ilusão ao se comprometer apenas com o palpável e sensível. E aqui está a razão mais profunda por que a fé não é demonstrável: é uma volta, uma reviravolta do ser, e somente quem se volta, recebe-a. E, porque nossa tendência não cessa de arrastar-nos para outro rumo, a fé permanece sempre nova em seu aspecto de conversão ou volta, e somente através de uma conversão longa como a vida é que podemos ter consciência do que vem a ser “eu creio”.

A partir daí é compreensível que a fé representa algo de quase impossível e problemático não apenas hoje e nas condições específicas da nossa situação moderna, mas, quiçá, de modo um tanto menos claro e identificável, já representou, sempre, o salto por cima de um abismo infinito, a saber, da contingência que esmaga o homem: a fé sempre teve algo de ruptura arriscada e de salto, por representar o desafio de aceitar o invisível como realidade e fundamento incondicional. Jamais a fé foi uma atitude conatural consequente do declive da existência humana; ela foi sempre uma decisão desafiadora da mesma raiz da existência, postulando sempre uma volta, uma conversão do homem, só possível na escolha.”

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“A fé cristã não se ocupa somente com o eterno, como à primeira vista poderia supor-se, com o eterno que se conservasse como algo totalmente diverso, fora do mundo humano e do tempo; ela ocupa-se muito mais com o Deus na história, com Deus como homem. A fé apresenta-se como revelação, ao parecer vencer o abismo entre eterno e temporal, entre visível e invisível, fazendo-nos encontrar Deus como homem, o Eterno como temporal, Deus como um de nós. Aliás, a sua pretensão de ser revelação funda- se no fato de ela ter trazido o eterno, por assim dizer, para dentro do nosso mundo: “O que ninguém jamais viu – Ele no-lo explicou, aquele que descansa no peito do Pai” (Jo 1,18) – Cristo tornou-se “exegese” de Deus para os homens, quase estaria eu tentado a afirmar com base no texto bíblico7. Mas contentemo-nos com o vocábulo português; o original autoriza-nos a tomá-lo bem ao pé da letra: Jesus realmente ex-plicou (ou seja, desdobrou, abriu) a Deus, conduzindo-o para fora de si, ou, mais drasticamente, na primeira carta de João: liberou-o à nossa contemplação e palpação, de modo tal que o jamais avistado por alguém agora está ao alcance do nosso tacto histórico8.”

7: Theou oudeis eoraken popote; monogenes theos... exegesato. O verbo exegeomai significa: ser chefe, servir de guia, de conselheiro, dar exemplo e, em sentido derivado (no texto presente): explicar, interpretar, expor. Cristo seria, então, quem explica, interpreta, expõe aos homens o segredo de Deus. (A. CHASSANG, Nouveau Dictionnaire Grec- Français) (Nota do Tradutor). / 8: 1Jo 1,1-3.

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“Ao contrapor o par de conceitos “estar – compreender” àquele outro “saber – fazer”, aludo a uma expressão bíblica fundamental, intraduzível, sobre a fé, cujo profundo jogo de palavras Lutero tentara reproduzir na fórmula: “Se não crerdes, não ficareis”; mais literalmente poder-se-ia traduzir: “Se não crerdes (se não vos agarrardes a Jahvé), não tereis apoio algum” (Is 7,9). A única raiz 'mn abrange uma multiplicidade de sentidos cuja interdependência e diferenciação perfaz a grandiosidade desta frase. A raiz 'mn (amém) inclui os sentidos de: verdade, firmeza, fundamento sólido, solo, conotando ainda: fidelidade, fiel, confiar-se, apoiar-se em alguma coisa, crer em alguém ou alguma coisa. Deste modo a fé em Deus surge como um apoiar-se em Deus, mediante o qual o homem consegue base sólida para a sua vida. Com o que a fé é descrita como adesão, como um colocar-se confiante no terreno da palavra de Deus. A versão grega (Septuaginta) reproduziu a citada frase não somente idiomaticamente, mas também conceitualmente, para o mundo grego, formulando-a: “Se não crerdes, não compreendereis”. Afirmou-se, por vezes, que nesta tradução se patenteia o processo de helenização, o afastamento do sentido bíblico original. A fé teria sido intelectualizada: em vez de exprimir: estar postado no terreno firme da palavra de Deus digna de fé, teria sido criado um nexo com a compreensão e a razão, desalojando assim a fé para um plano que, de modo algum lhe condiz. No que, talvez, haja uma pitada de razão. Apesar disto, julgo que, em seu conjunto, conservou-se a ideia básica, embora com os sinais alterados.”

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“Voltemos a uma pergunta que sintetiza tudo: que é a fé, afinal de contas? Nossa resposta poderia ser: a fé é a forma de firmar-se o homem no conjunto da realidade, forma irredutível ao conhecimento e incomensurável pelo conhecimento; fé é o dar-sentido sem o que a totalidade do homem ficaria localizada, sentido que constitui a base do cálculo e da atividade humana e sem a qual, finalmente, não poderia nem calcular, nem agir, porque somente é capaz disto à luz de um sentido que o norteie. Com efeito, o homem não vive apenas do pão da facticidade; como homem, ele vive do amor, do sentido das coisas. O sentido é o pão que lhe possibilita subsistir, em sentido próprio, como homem. Sem a palavra, sem uma finalidade, sem o amor, o homem chega à situação de não poder mais viver, mesmo cercado de todo o conforto humano. Quem ignoraria até que ponto uma tal situação de fracasso (entregar os pontos... não poder mais...) pode surgir em meio à fartura exterior? Ora, sentido não se deriva de saber. Querer torná-lo real através do conhecimento da facticidade seria como a absurda tentativa do barão de Münchhausen ao querer livrar-se a si mesmo do atoleiro, puxando-se pelos cabelos. O absurdo deste quadro expõe com exatidão a situação básica do homem. Ninguém está em condições de arrancar-se a si mesmo do pantanal da incerteza, da incapacidade de viver. Nem nos salvamos de semelhante situação, como quiçá ainda poderia pensar Descartes com o seu cogito, ergo sum (penso, logo existo), mediante uma série de conclusões racionais. Sentido autofabricado não é sentido; sentido, ou seja, um solo, um pedaço de chão sobre o qual a existência possa firmar-se e desenvolver-se como um todo, um tal sentido não pode ser feito, só pode ser recebido.”

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“A atitude cristã do crente exprime-se na palavrinha “amém” em que se interpenetram os significados: confiar, confiar-se, fidelidade, firmeza, base sólida, estar em pé, verdade; e isto quer dizer que somente a verdade é o lugar em que o homem pode firmar-se, só ela pode constituir para ele um sentido. Só a verdade é a base adequada para o homem ficar em pé. Portanto o ato da fé cristã inclui essencialmente a convicção de que o fundamento que dá o sentido, o Logossobre o qual nos colocamos, também é a verdade, exatamente enquanto como sentido15. Sentido que não fosse a verdade, seria um non-sens, um absurdo. A inseparabilidade de sentido, fundamento, verdade, expressa tanto no Logos grego, como no “amém” hebraico anuncia ao mesmo tempo uma concepção cósmica inteira. Na inseparabilidade de sentido, fundamento, verdade – riqueza vocabular que não podemos reproduzir em nossa língua, com um termo só – que tais palavras encerram, transparece a rede inteira de coordenadas em que a fé cristã contempla o mundo e se lhe apresenta. E isso também significa que a fé, em sua essência, não é um amontoado de paradoxos cegos. Significa ainda que é loucura pretextar mistério como desculpa para o fracasso da inteligência, como não poucas vezes tem acontecido. Se a teologia apresenta uma série de irregularidades, querendo não só desculpá-las, mas, se possível, canonizá-las, apelando para o mistério, estamos aí diante de um abuso da autêntica ideia de “mistério”, cuja finalidade não é destruir a inteligência, mas, antes, possibilitar a fé, como ato racional. Em outras palavras: fé certamente não é conhecimento no sentido de conhecer o factível e de sua forma de calculabilidade. A fé jamais pode ser algo assim e se tornaria ridícula, se tentasse estabelecer-se nestas formas experimentais. Mas vale também o contrário: o conhecimento experimental do factível, por natureza, está limitado ao fenômeno e ao funcional, não representando o caminho para encontrar a verdade da qual desistiu em razão do seu método. O caminho que o homem recebe para preocupar-se com a verdade do ser não é o conhecimento, mas a compreensão: compreensão do sentido ao qual aderiu. Sem dúvida devemos acrescentar que a compreensão só se patenteia no “estar-em-pé” e não fora daí. Uma coisa não acontece sem a outra, porque compreender significa agarrar e conceber como tal o sentido aceito como fundamento. Creio ser isto o sentido exato de “compreender”: que aprendamos a conceber a base sobre a qual nos colocamos, como sentido e como verdade; que aprendamos a reconhecer que o fundamento representa um sentido.

Assim sendo, compreender não conota contradição à fé, mas representa os seus mais lídimos interesses. Pois o conhecimento da funcionalidade do mundo, transmitido de modo tão grandioso pelo hodierno pensamento técnico-científico, ainda não traz consigo uma compreensão do mundo e do ser. Compreensão nasce da fé. Por isto a teologia, como tratado compreensível, lógico (= racional, intelectual- compreensivo) de Deus, é uma das tarefas originais da fé cristã.”

15: O sentido do vocábulo grego Logos corresponde, de algum modo, à raiz hebraica 'mn (amém): palavra, sentido, razão, verdade estão nele incluídos.



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“Jesus é a presença do próprio eterno neste mundo. Em sua vida, na irrestrição do seu ser para os homens está presente o sentido do mundo; ele doa-se-nos como amor, que também me ama a mim, tornando amável a vida mediante dádiva, tão inconcebível, de um amor não ameaçado por nenhuma transitoriedade, por nenhuma perturbação egoística.”

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“A natureza da fé está em não ser uma reflexão sobre o que pode ser refletido e que, afinal, estaria à disposição como resultado do meu pensamento; para a fé, é característico que ela surge da audição, sendo aceitação do que não se imagina, de modo que, na fé, o pensamento sempre será, em última análise, uma reflexão sobre o que foi ouvido e aceito.

Expresso de outro modo: existe na fé uma precedência da palavra sobre o pensamento, que a distingue estruturalmente do feitio filosófico. Na filosofia o pensamento precede a palavra, porque a filosofia é produto da reflexão que, a seguir, se procura revestir de palavras, as quais, contudo, permanecem secundárias em comparação com o pensamento e, por isto, sempre podem ser substituídas por outras palavras. Pelo contrário, a fé aproxima-se de fora, sendo-lhe essencial esta qualidade de vir de fora. Repitamos: a fé não é produto auto-imaginado, mas o que me foi dito, que me encontra, me alicia e me compromete, como algo não imaginado nem imaginável. É-lhe essencial a dupla estrutura do: “Crês?” – “Creio!”, a estrutura do ser chamado de fora e da resposta. Portanto, não é anormal se, abstraindo de algumas exceções, devemos dizer: não cheguei à fé mediante uma procura particular da verdade, mas por uma aceitação que, por assim dizer, me antecedeu. E fé não pode nem deve ser mero produto da reflexão. A suposição de que a fé deveria nascer através da própria reflexão ou imaginação e mediante uma busca puramente pessoal da verdade, no fundo já é expressão de determinado ideal, de uma mentalidade intelectual que desconhece o aspecto peculiar da fé, que consiste na aceitação do que não é imaginável – aceitação responsável, sem dúvida – em que o objeto aceito jamais chega a tornar-se minha posse total, em que a dianteira nunca será vencida completamente, em que, no entanto, a meta deve ser: apoderar-se sempre mais do que foi recebido, através da minha entrega a ele como ao maior.

Por ser assim, porque a fé não é o que inventei, mas o que me sobreveio de fora, por isto a sua palavra não está à minha disposição, nem está sujeita à mudança, ao meu talante, mas é-me superior e sempre está à frente, tomando a dianteira ao meu pensamento. A figura do processo da fé está caracterizada pela positividade do que me sobrevém, não se originando de mim e revelando-me o que não sou capaz de doar-me. Por isto, existe aqui uma primazia da palavra expressa sobre o pensamento, de tal modo que não é o pensamento quem cria a sua terminologia, mas a palavra apresentada indica a rota ao pensamento que compreende. Com este primado da palavra e com a “positividade” da fé que aí se manifesta, relaciona-se o caráter social da fé, que conota uma segunda diferença frente à estrutura essencial individualística do pensamento filosófico. Filosofia, por sua natureza, é obra do indivíduo que, como tal, reflete sobre a verdade. O pensamento, o pensado pertencem-lhe, ao menos em aparência, porque surgem do próprio pensador, muito embora nenhum pensamento viva só do que lhe é próprio, mas, ciente ou inscientemente, se complique em numerosos entrelaçamentos. O laboratório do pensamento é o âmago do espírito; por isto ele, inicialmente, permanece circunscrito ao pensador, tendo estrutura individualista. Torna-se comunicável somente secundariamente, ao revestir-se da palavra que, aliás, de modo geral, só consegue torná-lo compreensível aos outros de modo aproximativo. Em oposição, como vimos, a palavra anunciadora representa o principal elemento da fé. Como o pensamento, internamente, é apenas espiritual, a palavra constitui-lhe a ponte de comunicação. A palavra é o modo de estabelecer a comunicação no campo espiritual, é a forma pela qual o espírito se encarna, isto é, se torna corpo, se torna social. O primado da palavra significa ainda que a fé está orientada para a comunidade do espírito, de maneira diversa do que o pensamento filosófico. Na filosofia encontra-se, no começo, a pesquisa particular da verdade, que, a seguir, secundariamente, procura e encontra companheiros de jornada. Fé, ao contrário, é, primeiro, o apelo dirigido à comunidade visando a união ou unidade do espírito pela unidade da palavra; seu sentido é de antemão social: criar unidade de espírito pela unidade da palavra; e só secundariamente os indivíduos encontrarão o caminho aberto para a aventura pessoal da verdade.

Ao destacar-se na estrutura dialogal da fé uma imagem humana, podemos acrescentar que igualmente surge ali uma imagem de Deus. Ao homem compete tratar com Deus, quando lhe cabe tratar com o seu próximo. A fé está essencialmente orientada para o “tu” e para o “nós”, e o homem somente consegue unir-se a Deus através destes dois vínculos. O que, ao inverso, significa não serem separáveis relação com Deus e relação com o outro, a partir da mesma estrutura interna da fé; o nexo com Deus, com o “tu”, com o “nós” é mútuo, bilateral e não corre paralelo. Ainda poderíamos formular o mesmo pensamento sob outro ponto de enfoque: Deus quer vir ao homem somente mediante o homem; não procura o homem a não ser no meio dos seus semelhantes.”

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“A fé de Israel, sem dúvida, representa um elemento novo, em confronto com a fé dos povos vizinhos; contudo não se trata de algo caído do céu, mas de uma cristalização efetuada no embate com a fé dos outros povos, em que uma seleção belicosa e uma re-interpretação diferente representam, ao mesmo tempo, o elo e a mudança.

“Iahvé, teu Deus, é um único Deus”, profissão fundamental situada no âmago do nosso “Credo” é, em seu sentido original, uma renúncia aos deuses vizinhos. É profissão no sentido pleno da palavra, isto é, não uma constatação de uma opinião ao lado de outras, mas uma opção existencial. Como renúncia aos deuses significa repúdio ao endeusamento dos poderes políticos, e ao endeusamento do “morre e torna-te” cósmico. Afirma-se que fome, amor e domínio são as três forças que movem a humanidade. Ampliando-se esta afirmação, pode-se constatar que as três formas fundamentais do politeísmo são a adoração do pão, a adoração do Eros e a divinização do poder. Os três caminhos são aberrações, absolutizações do que não é o absoluto e, por isto, escravização do homem. Certamente, trata-se de aberrações em que transparece alguma coisa do poder que sustenta o universo. Mas a profissão de fé de Israel é, como foi dito, uma declaração de guerra contra a tríplice adoração, constituindo assim um processo de máxima importância na história da libertação do homem. Na declaração de guerra contra a tríplice adoração, a profissão de fé é, ao mesmo tempo, um grito de guerra contra a proliferação do divino em geral. É a renúncia a deuses próprios. Ou, expresso de outro modo, a renúncia à divinização do que é próprio do homem, típica do politeísmo. E também é a renúncia à própria segurança, ao medo, que tenta apaziguar o ominoso, prestando-lhe culto; e é a adesão ao Deus único do céu, como potência que protege tudo; significa coragem de confiar-se à força que domina o universo inteiro, sem tomar o divino nas mãos.

A atmosfera inicial oriunda da fé de Israel não se alterou fundamentalmente no “Credo” cristão primitivo. Também nele o ingresso na comunidade e a aceitação do seu “símbolo” significa uma decisão existencial de pesadas consequências. Pois quem entrasse neste “Credo”, simultaneamente consumiria a renúncia à legislação do mundo do qual era parte integrante, uma renúncia à adoração do poder político dominador, sobre o qual se baseava o império romano, renúncia da adoração do prazer, do culto do medo e da superstição que predominavam no mundo. Não foi por acaso que a luta cristã se deflagrou no campo assim demarcado, transformando-se em guerra em torno da própria forma básica da vida pública antiga.”

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“O amor definitivo, indivisível e uno entre homem e mulher finalmente só se realiza e se compreende na unidade e indivisibilidade do amor de Deus. Hoje cresce o nosso conhecimento de que não se trata, no amor, de uma dedução filosófica independente, mas de uma realidade muito mais fundamental que resiste ou cai de acordo com a fé em um Deus único. E compreendemos melhor que a liberação do amor, degenerando em simpatia (ou camaradismo) do instinto, representa a entrega do homem às fúrias desencadeadas do sexo e do Eros, sob cuja escravidão cruel ele tomba, sonhando ter-se emancipado. Subtraindo-se a Deus, atacam-no os deuses, e a liberação do homem só se realiza na medida em que se deixa livrar e cessa de apoiar-se sobre si mesmo.”

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“Somente se tem Deus, quando não se dispõe de nenhum Deus próprio, confiando-se somente ao Deus que é o Deus dos outros, exatamente como o meu, porque ambos lhe pertencemos.”

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“O paradoxo da filosofia antiga, sob o enfoque religioso-histórico, consiste no fato de ter ela destruído o mito, racionalmente, tentando, ao mesmo tempo, re-legitimá-lo religiosamente – isto é: não foi revolucionária religiosamente, mas, no máximo, evolucionária, tratando a religião como questão do teor de vida e não como questão da verdade. Paulo descreveu muito exatamente este processo na Epístola aos Romanos (1,18-31), apoiando-se na literatura sapiencial, usando a linguagem profética (e respectivamente, o estilo antigo-testamentário dos livros sapienciais). Já no livro da Sabedoria (cap. 13-15) encontra-se a alusão a esse destino trágico da religião antiga e ao paradoxo inerente à separação de verdade e piedade (ou fé). Paulo reassume o que ali se disse em poucos versículos, descrevendo a sorte da religião antiga a partir desse divórcio entre Logos e mito: “O que de Deus se pode conhecer... é para eles manifesto, tendo-lho Deus manifestado... Mas, conhecendo embora a Deus, não o honraram como Deus... Trocaram a glória do Deus indefectível pela reprodução em imagens do homem corruptível, de aves, de quadrúpedes e de répteis... “ (Rom 1,19-23).

A religião não segue a senda do Logos, mas persiste no mito compreendido como vazio de qualquer realidade. Com isto era inevitável a sua ruína, consequência do afastamento da verdade, que levou a considerar a religião como mera institutio vitae, simples convenção e forma de vida. Em contraste com semelhante situação, Tertuliano descreveu a posição cristã com muita ênfase, em frase ousada, ao dizer: “Cristo se denominou a verdade, não o costume”16. Vejo aí uma das grandes frases da teologia patrística. Está aí condensada de modo único a luta da Igreja antiga e a tarefa permanente imposta à fé cristã, caso queira conservar-se fiel a si mesma. A divinização da consuetudo Romana, da “origem” da cidade de Roma, que transformava os seus costumes em norma autossuficiente do comportamento contrapõe-se à pretensão exclusivista da verdade. Com isto o cristianismo colocou-se decididamente ao lado da verdade, dando as costas a uma ideia de religião que se satisfazia em ser figura cerimonial, à qual se podia acrescentar um sentido qualquer na fase da interpretação.”

16: Dominus noster Christus veritatem se, non consuetudinem cognominavit. De virginibus velandis I, 1, in: Corpus Christianorum seu nova Patrum collectio (CChr), II, 1209.

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“No símbolo apostólico, base das nossas considerações, exprime-se o paradoxo da unidade do Deus da fé e do Deus dos filósofos, sobre que se apoia a imagem cristã de Deus, e isto mediante os dois atributos “Pai” e “Dominador único” (“Senhor do universo”). O segundo título – pantokrator em grego – aponta para o “Iahvé Zebaoth” (Sabaoth) do Antigo Testamento, cujo significado não é mais possível esclarecer. Traduzido literalmente vem a ser algo como “Deus das multidões”, “Deus das potências”; “Senhor das potências ou dos exércitos” é o que se lê na versão grega da Bíblia. Apesar de todas as incertezas sobre a sua origem, sempre se pode afirmar que este vocábulo quer descrever Deus como o Senhor do céu e da terra. A expressão visava, em atitude polêmica contra a religião babilônica dos astros, apresentar a Deus como o Senhor, a quem pertencem os astros, ao lado do qual eles não podem subsistir como potências divinas independentes: os astros não são deuses, mas instrumentos de Deus, postos ao alcance de suas mãos, como os exércitos à disposição do general. A palavra pantokrator, a partir daí, tem, primeiro, um sentido cósmico e, mais tarde, também um sentido político; descreve a Deus como o Senhor de todos os Senhores. Denominando a Deus, ao mesmo tempo, “Pai” e “onipotente” (ou: “único Senhor”) o Credo fundiu um conceito familiar e uma ideia de poder cósmico na descrição de Deus. Com isto exprime exatamente aquilo de que se trata na imagem cristã de Deus, a tensão do poder absoluto e do absoluto amor, da distância absoluta e da absoluta proximidade, do ser simplesmente e da imediata preocupação com o que há de mais humano no homem, o entrelaçamento do máximo e do mínimo, de que se falou antes.

O termo “Pai”, que continua totalmente aberto quanto ao seu ponto de relacionamento, reúne, ao mesmo tempo, o primeiro artigo do Credo com o segundo; aponta para a cristologia, entrelaçando ambas as peças de modo tal, que o que se deve afirmar de Deus só se torna completamente claro ao se olhar também para o Filho. Por exemplo, o que significa “onipotência”, “absoluta soberania”, torna-se claro cristãmente apenas ao pé do presépio e da cruz. Somente ali, onde o Deus conhecido como Senhor do universo penetra na última impotência da auto-entrega à menor de suas criaturas, pode ser formulado, em verdade, o conceito de onipotência em Deus. Aqui nasce também uma nova ideia de força e um conceito novo de poder e domínio. A força suprema revela-se no fato de poder ser paciente o bastante para privar-se totalmente de toda a força; no fato de ser poderosa, não através da violência, mas exclusivamente pela liberdade do amor, que, mesmo sendo repudiada, é mais forte do que os poderes jactanciosos do mundo.”

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“A ideia de liberdade é a característica da fé cristã em Deus, em oposição a qualquer espécie de monismo. A fé coloca no começo de todo o ser, não uma consciência qualquer, mas uma liberdade criadora que torna a criar liberdades. Neste sentido, poder-se-ia denominar, em grau supremo, a fé cristã como uma filosofia da liberdade. Para a fé, a explicação do real em conjunto não está em uma consciência que abrange tudo nem em uma única materialidade; pelo contrário, à frente da fé encontra-se uma liberdade que pensa e, pensando, cria liberdades, transformando assim a liberdade em forma estrutural de todo o ser.”

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“Amor é sempre mistério: mais do que se pode calcular e compreender. Portanto, o próprio amor – o Deus incriado e eterno – deve ser mistério em grau supremo: o mistério por excelência.”

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“Não existe o mero observador. Não há objetividade pura. Pode-se dizer: quanto mais elevada a posição de um objeto em relação ao homem, quanto mais tal objeto penetra no centro do que é nosso, comprometendo o próprio observador, tanto menos possível é o completo distanciar-se da objetividade pura. Portanto, onde quer que se apresente uma resposta como objetiva e desapaixonada, como declaração que, afinal, ultrapassa as piedosas prevenções, explicando tudo com científica objetividade: forçoso se torna dizer que o próprio sujeito se tornou vítima de um logro. Tal espécie de objetividade não é acessível ao homem. Ele não pode pesquisar e existir como simples observador. Quem tenta ser mero observador não descobre nada. Também a realidade “Deus” pode ser focalizada somente por quem se incluir na experiência com Deus – experiência que denominamos fé. Só entrando, consegue-se saber; só participando da experiência, consegue-se perguntar; e só quem pergunta, recebe resposta.

Pascal exprimiu isto em seu famoso argumento da aposta, com uma clareza quase monstruosa e com uma agudeza que chega a roçar as raias do suportável. O debate com o parceiro incrédulo atingiu um ponto em que ele reconhece dever decidir-se por Deus. Mas gostaria de evitar o salto, de possuir uma clareza matemática: “Não existirá algum meio de iluminar a treva e suspender a incerteza do jogo?” “Sim, há um meio e mais de um: a Sagrada Escritura e todos os outros argumentos em favor da religião”. “Mas, tenho as mãos atadas, os lábios mudos... Meu feitio é assim, não posso crer. Que fazer?” “'Então você confessa que a impossibilidade de sua fé não se origina da razão; pelo contrário: a razão conduz à fé; portanto, a sua recusa tem outro motivo. Por isto não adianta convencê-lo mais ainda, mediante um amontoado de provas da existência de Deus; antes de tudo, impõe-se que você combata as suas paixões. Você deseja alcançar a fé e não conhece o caminho? Quer ficar curado da descrença e não conhece o remédio? Aprenda daqueles que, outrora, foram acossados por dúvidas, como você... Imite-lhes o proceder, faça tudo o que a fé exige, como se já fosse crente. Frequente a Missa, use água benta, etc. Isto, certamente, o fará humilde e o conduzirá à fé”.”

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“Nossa consideração demonstra que unidade cristã denota, primeiramente, unidade com Cristo, possível onde cessa a acentuação do próprio “eu”, substituída pela existência simplesmente descomprometida “de” e “para”. A uma vida assim com Cristo, mergulhada completamente na disponibilidade daquele que não queria considerar nada como seu (veja também Fl 2,6), segue-se a completa união – “para que sejam um, como nós o somos”. Toda falta de união, toda separação baseia-se em uma carência oculta do autêntico espírito cristão, em um apego ao que é próprio, com o que se acarreta a ruína da unidade.”

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“Jesus não deixou uma doutrina passível de ser separada do seu “eu”, como se podem colecionar e avaliar as ideias dos grandes pensadores sem levar em consideração a pessoa do autor. O Símbolo não oferece uma doutrina de Jesus. Nem sequer se chegou a pensar numa evidente tentativa de ver nele uma doutrina, porque o sentido fundamental presente no Símbolo atua em direção completamente outra. E, de acordo com a declaração do Credo, Jesus não fez uma obra capaz de se distinguir e de ser representada como distinta do seu “eu”. Compreendê-lo como o “Cristo” significa estar convencido de que ele se entregou a si mesmo dentro da sua palavra: não é um “eu” que fala (como acontece conosco) – ele identificou-se com a sua palavra de modo tal, que “eu” e “palavra” são indistinguíveis: ele é palavra. De modo idêntico, para a fé, sua obra nada mais é do que o irrestrito identificar-se com essa obra; ele se faz e se dá; sua obra é sua autodoação.

Karl Barth certa vez exprimiu essa constatação da fé do modo seguinte: “Jesus é simplesmente portador de um cargo. Portanto, não é, primeiro, um homem e depois um encarregado de certa tarefa... Não existe dentro de Jesus uma humanidade neutra... Poderia ser repetida, em nome dos quatro Evangelhos, a preciosa palavra de Paulo (2 Cor 5,16): 'e, se todavia temos conhecido a Cristo segundo a carne, agora, porém, já não o conhecemos assim'. Os evangelistas se mantiveram inteiramente desinteressados a respeito de tudo o que esse homem pode ter sido e ter feito fora da sua missão de Cristo e independente de sua realização... Mesmo quando relatam sobre a sua fome e sede, suas refeições e bebidas, seu amor, sua tristeza, sua ira e até suas lágrimas, os evangelistas tocam em detalhes secundários, nos quais, em parte alguma, transparece algo assim como uma personalidade independente da obra, com determinados interesses, inclinações e afetos... Seu existir como homem é sua obra”9. Em outras palavras, a afirmação decisiva da fé sobre Jesus está na inseparável unidade das duas palavras “Cristo Jesus”, onde se oculta a experiência da identidade de existência e missão. Neste sentido, realmente pode-se falar de uma “teologia funcional”: a existência inteira de Jesus é função do “para nós”, mas – por isto mesmo – a função é sua existência10.

Interpretando assim, afinal, poder-se-ia afirmar realmente que doutrina e feitos do Jesus histórico, como tais, não são importantes, bastando o simples fato – a saber, contanto que se compreenda que tal fato conota a realidade inteira da pessoa, que se cobre, como tal, com sua doutrina, que se identifica com sua ação, tendo aí a sua peculiaridade única e a sua irrepetível unicidade. A pessoa de Jesus é sua doutrina e sua doutrina é Jesus mesmo. Portanto, fé cristã, isto é, fé em Jesus como o Cristo, é verdadeiramente “fé pessoal”. E só a partir daí é que se poderá entender realmente o que vem a ser isto. Tal fé não é a aceitação de um sistema, mas a aceitação de uma pessoa, que é a sua palavra; da palavra como pessoa e da pessoa como palavra. (...)

“Hoje podemos constatar com bastante segurança, ter sido a cruz o local de origem da fé em Jesus como o Cristo, isto é, o local do nascimento da fé “cristã”, em geral. Jesus mesmo não se proclamou diretamente como o Cristo (“Messias”). Esta afirmação, para nós um tanto estranha, destaca-se, a esta altura, com bastante clareza, do debate tantas vezes confuso dos historiadores. Nem mesmo se poderá fugir a tal conclusão, se se lança mão de crítica adequada frente ao precipitado processo de subtração em voga na atual pesquisa sobre Jesus. Portanto, Jesus não se proclamou claramente como Messias (Cristo) – quem o fez foi Pilatos ao aderir, por sua vez, à acusação dos judeus; cedendo à sua acusação, proclamou, nas três línguas universais de então, a Jesus como o Rei (Messias, Cristo) crucificado. O título da execução, paradoxalmente, passou a ser “profissão de fé”, ponto de partida e raiz da fé cristã que considera a Jesus como o Cristo: como crucificado esse Jesus é o Cristo, o rei. Sua crucificação é sua entronização; sua entronização é a doação de si mesmo aos homens; é a identificação da palavra, missão e existência na entrega desta mesma existência. Sua existência é sua palavra. Ele é palavra por ser amor. A partir da cruz, a fé compreende sempre mais que esse Jesus não somente fez e disse alguma coisa, mas que nele se identificam missão e pessoa, que ele sempre é o que diz. Para João bastou muito simplesmente tirar daí a última conclusão: se é assim – eis o pensamento cristológico fundamental do seu Evangelho então esse Jesus Cristo é a “Palavra”; ora, uma pessoa que não somente tem palavras, mas que é a sua própria palavra e sua obra é o próprio Logos (“a palavra”, o “sentido”, a “razão”); que existe desde sempre e para sempre; que é o fundamento sobre o qual repousa o universo – se em alguma parte encontrarmos uma tal pessoa, será ela aquele sentido, aquela razão (ratio) que nos sustenta e pela qual todos subsistimos.

Eis como se desdobra a compressão a que chamamos fé: os cristãos encontram, pela primeira vez, na cruz, a identificação de pessoa, palavra e obra. E ali reconheceram o elemento propriamente decisivo diante do qual o resto passa a plano secundário. Por isto, sua profissão de fé podia reduzir-se ao simples entrelaçamento das duas palavras “Jesus” e “Cristo” – fusão em que tudo estava expresso. Jesus é visto a partir da cruz, cuja linguagem é mais eloquente do que todas as palavras: ele é o Cristo – nada mais é preciso acrescentar. O “eu” crucificado do Senhor representa uma realidade de tal plenitude que tudo o mais pode ficar para trás.”

9: K. BARTH, Kirchliche Dogmatik III, 2, Zurique 1948, 66-69; citado conforme H. U. VON BALTHASAR, "Zwei Glaubensweisen", em: Spiritus Creator, Einsiedeln, 1967, 76-91, citação: 89 s. Deve-se cotejar o trabalho de BALTHASAR.

10: H. U. VON BALTHASAR, o. cit. sobretudo 90. O MESMO, Verbum Caro, Einsiedeln, 1960, 11-72, sobretudo 32 e s, 54 e ss.
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