terça-feira, 12 de outubro de 2021

A teoria da justiça de John Rawls e as ações afirmativas: reparar as contingências em direção à igualdade



Alexandre Zawaki 
PazettoNei Antonio Nunes
FORTES, Renivaldo Oliveira. A teoria da justiça de John Rawls e as ações afirmativas: reparar as contingências em direção à igualdade. Porto Alegre: Fi, 2019

Mesmo em nossos dias, com a riqueza do debate interdisciplinar, como também com a mobilização de movimentos sociais diversos, a temática das ações afirmativas pode ainda ser mal interpretada ou considerada controversa, seja pelo preconceito com relação ao seu caráter inclusivo, seja pela falta de conexões teóricas que legitimem tais medidas. Com essa problemática em mente, a obra A teoria da justiça de John Rawls e as ações afirmativas: reparar as contingências em direção à igualdade, de Renivaldo Oliveira Fortes, aborda interdisciplinarmente pontos convergentes entre as ações afirmativas e a teoria da justiça do filósofo estadunidense John Rawls (1921-2002), especialmente a partir da estrutura conceitual presente nas obras Uma teoria da justiça (2008) e O liberalismo político (2011). Assim, Fortes busca fundamentar politicamente as ações afirmativas a partir da teoria da justiça como equidade de Rawls, partindo da hipótese de que os pressupostos filosóficos da teoria rawlsiana endossariam e legitimariam as ações afirmativas.

Introdutoriamente, Fortes oferece ao leitor um panorama geral do livro, em que apresenta um quadro histórico acerca das ações afirmativas, elabora um esboço da teoria da justiça de Rawls, destaca os objetivos da obra e as questões que pretende responder a partir dela, além de expor seus procedimentos metodológicos. Ademais, o autor ressalta que sua pesquisa é motivada pela carência de argumentos utilizados ao se discutir a justificação política das ações afirmativas.

No capítulo inicial, Fortes busca apresentar uma definição das ações afirmativas a partir de um olhar interdisciplinar, dando ênfase às dimensões histórica, jurídica e filosófica. Já nas primeiras linhas, declara seu entendimento das ações afirmativas. Diz o autor: “As ações afirmativas são entendidas como políticas públicas de teor corretivo, idealizadas para preencher a lacuna entre a igualdade formal de oportunidades e a igualdade equitativa de oportunidades” (p. 25).

Em seguida, apresenta uma perspectiva histórica do termo “ação afirmativa”, inicialmente destacando sua origem nos Estados Unidos, em 1961. Aborda então a rápida evolução do termo, que passou a designar também uma forma de incluir grupos sub-representados, objetivando compensar o histórico de injustiças sofridas no passado, como, por exemplo, os casos de negros e mulheres.

A nota conceitual jurídica é iniciada asseverando que as ações afirmativas possuem legitimidade constitucional no Brasil. Em seguida, Fortes trabalha alguns conceitos acerca das ações afirmativas sob a perspectiva de juristas, evidenciando o quão fundamental é assegurar às pessoas que elas sejam capazes de ser o que desejarem, bem como garantir sua participação na sociedade como membros cooperativos que tenham plenos direitos.

O autor inicia a nota conceitual filosófica apresentando outras noções acerca das ações afirmativas, dessa vez sob a ótica de teóricos, ligados ou não a Rawls, que têm se dedicado ao tema. Fortes faz diversas inferências, abordando temas como: a dicotomia entre a discriminação e as ações afirmativas; as diferenças entre ação afirmativa fraca e ação afirmativa forte, bem como a relevância de cada uma sob ponto de vista moral; e a importância das ações afirmativas como dispositivos (políticas públicas) que combatem os diversos tipos de exclusão e injustiças.

O segundo capítulo é dedicado ao escopo teórico-filosófico, descrevendo os aspectos primordiais de uma teoria da justiça como equidade e os princípios de justiça, com destaque para o princípio de diferença.

O autor busca responder se as ações afirmativas podem ser objeto de análise da filosofia política. Para esclarecer essa questão, são discutidos alguns papéis que este campo do saber exerce na vida pública de uma sociedade democrática, levando Fortes a inferir que tais papéis vinculam-se à ideia fundamental de construir uma sociedade formada por cidadãos livres e iguais, em consonância tanto com a teoria rawlsiana quanto com as noções acerca das ações afirmativas.

Em seguida, apresenta-se a teoria da justiça como equidade de Rawls, destacando que essa baseia-se, sobretudo, na ideia de que os cidadãos livres e iguais concordariam em viver sob a ordem de princípios decididos em conjunto (contrato social), capazes de garantir os direitos e as liberdades fundamentais e iguais dos cidadãos. Assim, a partir de um arranjo justo das principais instituições políticas e sociais, constituir-se-ia a “estrutura básica da sociedade”, com a função de superar as desigualdades e injustiças entre os cidadãos, sem suprimir o valor das subjetividades.

Fortes, então, aborda a concepção política de pessoa sob a perspectiva de Rawls. Para o filósofo estadunidense, o cidadão é concebido como livre e igual, portador dos direitos e deveres no exercício da cidadania, em uma relação política com os demais sujeitos. Assim, cada pessoa tem uma inviolabilidade fundada na justiça que não deve ser desconsiderada, ou seja, o indivíduo tem um valor intrínseco, uma dignidade humana que não se deve sobrelevar.

Por fim, apresenta-se a ideia da posição original da teoria rawlsiana, em que, hipoteticamente, seriam discutidos os princípios de justiça sob os quais as pessoas viveriam. Fortes destaca que, para garantir a imparcialidade e a equidade na escolha dos princípios de justiça, Rawls impõe um “véu de ignorância”, a fim de privar as partes de informações mais específicas sobre si mesmas, como cor, gênero, nível educacional e social, etc. Rawls defende que, desse modo, ninguém levaria vantagens, e as partes buscariam um arranjo social que as favoreceria, independentemente da posição social que ocupassem. No entanto, o autor brasileiro enfatiza que a teoria de Rawls não pretende extinguir as diferenças naturais e sociais homogeneizando indivíduos e sociedades, mas que compete às instituições de um Estado bem ordenado reduzir as disparidades.

No terceiro capítulo, é problematizada a relação entre os bens primários e as ações afirmativas. Na teoria de Rawls, a concepção razoável de justiça como equidade encontra-se nos limites da estrutura básica da sociedade. Em outras palavras, está na esfera da justiça social. A partir dessa concepção, Fortes pensa as ações afirmativas como uma questão de justiça social, e propõe que, quando políticas públicas dessa modalidade são asseguradas constitucionalmente, o Estado tem maior capacidade para lidar com as injustiças e os diversos problemas do seu tempo histórico, a exemplo do racismo, intolerância e discriminação.

Na sequência, são discutidos os princípios da justiça que, de acordo com a teoria rawlsiana, seriam escolhidos de forma consensual na posição original, quais sejam: a igual liberdade, a igualdade de oportunidade e o princípio da diferença. Fortes enfatiza este último, articulando suas especificidades com a questão dos menos favorecidos e das ações afirmativas. Na concepção de justiça política de Rawls, os indivíduos não tiram vantagens uns dos outros, uma vez que somente são permitidos benefícios recíprocos. Assim, destacam-se as ações afirmativas como medidas de justiça social que se traduzem em ações de reciprocidade e de fraternidade para com os menos favorecidos, indispensáveis para eliminar privilégios sociais e, por conseguinte, construir uma sociedade efetivamente justa.

Ao final do capítulo, o autor aborda a ideia fundamental do mínimo social, em que problematiza a questão do nível e do tipo de recursos que as pessoas necessitam para viver de modo minimamente decente na sociedade. Salienta a importância de preservar o mínimo social e a igualdade de oportunidades de modo equitativo para garantir a participação dos cidadãos na sociedade, fazendo a ponte entre essa problemática e o modo como as ações afirmativas devem ser conduzidas por um Estado democrático. Por fim, Fortes destaca que, mesmo sendo difícil determinar especificamente o conteúdo do mínimo social, os Estados que buscam garanti-lo, bem como assegurar a igualdade equitativa, podem adotar paliativamente medidas de ações afirmativas, sob a justificativa do ideal da igualdade de oportunidades como meio para alcançar a justiça compensatória.

O quarto capítulo, por sua vez, apresenta os argumentos que apontam para a possibilidade de justificar as ações afirmativas a partir dos princípios de justiça como equidade. Inicialmente, a ideia de bens primários é escrutinada, culminando na seguinte noção: “aquilo de que as pessoas livres e iguais precisam como cidadãs membros de uma sociedade decente” (p. 123). Coerente a essa proposição, o autor argumenta que, satisfeitas as exigências do mínimo social, as medidas de ações afirmativas podem ser compreendidas como formas de promover justiça às vítimas de injustiças históricas.

Entretanto, como a ideia de bens primários de Rawls recebeu críticas de autores importantes, como Martha Nussbaum (2012, 2013) e Amartya Sen (1979, 2011), Fortes não se eximiu de indicá-las em sua obra. Em resumo, Nussbaum (2013) sugere o enfoque nas capacidades como alternativa à concepção de bens primários de Rawls, de modo que os princípios de justiça levem em consideração o que cada pessoa tem em comum com todas as outras. No mesmo sentido, Amartya Sen (1979) defende que a igualdade de capacidades é um fator determinante para a justiça, uma vez que a abordagem de bens primários não considera a diversidade humana. Embora o enfoque analítico proposto no livro seja a teoria de Rawls, percebe-se o esforço em ampliar o debate trazendo perspectivas diferentes no trato das ações afirmativas que sugerem, dentre outras coisas, possíveis limites na própria abordagem rawlsiana.

Na sequência, contudo, Fortes destaca a resposta de Rawls a seus críticos. Para o filósofo estadunidense, em primeiro lugar, a abordagem das capacidades avaliza a visão moral abrangente, ou seja, pressupõe sua aceitação e, por isso, vai contra os exageros do neoliberalismo. Além disso, Rawls problematiza o ato de medir e avaliar as capacidades. Diferentemente de Nussbaum e Sen, Rawls infere que, mesmo que as pessoas não tenham iguais capacidades, ainda têm, por menor grau que seja, as faculdades morais, intelectuais e físicas que lhes permitem participar e colaborar com a sociedade da qual fazem parte. Do mesmo modo, o filósofo destaca que problemas como doenças crônicas e deficiências devem ser de responsabilidade do Estado. Nessa direção, Fortes sublinha que medidas de amparo social são exemplos de ações afirmativas.

O capítulo final busca demonstrar que as ações afirmativas são admitidas pelo princípio de justiça rawlsiano. Para tanto, inicia-se com um diálogo entre Rawls e o teórico Thomas Nagel (2003), que parte da questão sobre quais são as implicações da justiça como equidade na política de ações afirmativas. Desse modo, a partir do resgate de obras de Nagel, Fortes infere que este filósofo reforça a ideia de que, à luz da teoria da justiça como equidade, as ações afirmativas são compatíveis com os princípios de justiça. Mutatis mutandis, Nagel ratificaria as proposições de Rawls acerca das ações afirmativas.

Em seguida, o autor trabalha a ideia das ações afirmativas como medidas necessárias para garantir um sistema fundamentado na igualdade equitativa de oportunidades. Nessa linha, são abordadas questões como a superação do preconceito para com os menos favorecidos ainda presentes na esfera pública, bem como a legitimação das ações afirmativas a partir de uma concepção política de justiça. Defende ainda que sua obra busca, baseada no princípio da igualdade equitativa de oportunidades, justificar a elaboração de leis, políticas e práticas afirmativas que garantam o acesso a educação, cargos e posições aos menos favorecidos, num processo que gere uma ampla inclusão social, econômica e política, ao passo que contribua para superar qualquer forma de preconceito ou discriminação, especialmente de cunho étnico-racial e de gênero.

Nas considerações finais, são apresentados os resultados sobre a hipótese de a ação afirmativa ser compatível com a teoria da justiça como equidade. Fortes salienta que seu livro não tem o objetivo de apresentar um léxico das noções rawlsianas que legitimem, por si só, as ações afirmativas, mas, ao escrutinar o conteúdo dos escritos do filósofo e de outros teóricos que o discutiram, buscar pontos de convergência que possam justificá-las.

Assim sendo, Fortes conclui que as ações afirmativas estão alinhadas aos pressupostos da teoria rawlsiana, contribuindo com a realização do princípio da liberdade, do princípio da igualdade de oportunidades, bem como do princípio da diferença. Para além disso, estão conectadas com o mínimo social e com as noções de bens primários. Desse modo, as ações afirmativas são, segundo as análises propostas no livro, validadas nos princípios de justiça, uma vez que o autor visualizou elementos suficientemente razoáveis para garantir sua legitimidade. Por fim, é destacada a importância do debate acerca das ações afirmativas nas sociedades atuais, do mesmo modo que se defende que essas práticas sociais e institucionais estejam presentes nas democracias constitucionais hodiernas, a fim de garantir às minorias desfavorecidas o acesso a condições minimamente necessárias de dignidade para que possam se desenvolver. E, se pensarmos no atual problema da crescente desigualdade no Brasil e em tantos outros países, o imperativo político da justiça social - gerador das ações afirmativas - é um desafio social e institucional e, concomitantemente, condição sine qua non para a consolidação da vida eticamente sustentável em nosso planeta.

REFERÊNCIAS

FORTES, Renivaldo Oliveira. A teoria da justiça de John Rawls e as ações afirmativas: reparar as contingências em direção à igualdade. Porto Alegre: Fi, 2019.
NAGEL, Thomas. Rawls and liberalism. In: FREEMAN, Samuel (org.). The Cambridge Companion to Rawls. Nova York: Cambridge University Press, 2003. p. 62-85.
NUSSBAUM, Martha Craven. Fronteiras da justiça. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.
NUSSBAUM, Martha Craven. Women and human development. Nova York: Cambridge University Press, 2012. Disponível em: https://genderbudgeting.files.wordpress.com/2012/12/nussbaum_women_capabilityapproach2000.pdf Acesso em: 23 maio 2017.
RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes - Selo Martins, 2008.
SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SEN, Amartya. Equality of what? Palo Alto, CA: Stanford University, 1979. Disponível em: http://tannerlectures.utah.edu/_documents/a-to-z/s/sen80.pdf Acesso em: 21 abr. 2016.
Revista Cadernos de Pesquisa

A cruel pedagogia do vírus



Amanda da Rocha Moura
Maria das Graças Gonçalves Vieira Guerra

SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020. 32p. 978-972-40-8496-1

Escrevendo no momento em que ocorre a crise social e econômica provocada pela pandemia de Covid-19, Boaventura de Sousa Santos busca analisar a forma como os países neoliberais estão lidando com seus impactos. Para tanto, o autor identifica os preceitos que orientam o capitalismo financeiro na atual sociedade e como as desigualdades foram evidenciadas no período de maior tensão do século XXI.

Santos busca estabelecer a ideia de uma crise global presente no decurso estratégico da sociedade capitalista contemporânea. Dessa maneira, a condição de uma normalidade da exceção, como postula, é a percepção de uma crise gerada no capital com intencionalidade ideológica para fins político-dominantes em uma sociedade que utiliza esse dispositivo enquanto mecanismo de dominação econômica; para o autor: “O objectivo da crise permanente é não ser resolvida” (SANTOS, 2020, p. 5-6). Torna-se, assim, a função pela qual se justificam os contínuos cortes nos setores sociais, culminando na acumulação de riqueza.

O segundo conceito trabalhado pelo autor é o de elasticidade social, que se refere aos modos como os sujeitos vivem e estão presentes na sociedade ao longo da história. A lógica do consumo, que foi imposta à sociedade da segunda metade do século XX até a atualidade, pressiona as pessoas à racionalidade econômica hipercapitalista, pautada no princípio de internalização dos mecanismos disciplinares nessa sociedade. Em outros termos, o homem foi instruído ao consumo e ao trabalho de forma a gerar lucro ao grande capital, acreditando que aquele é o estado social ideal e, assim, completa Santos, viu sua rotina sofrer uma grande cisão. Se o capital apreciado na lógica neoliberal moldou a sociedade presente e constringiu investimentos para fins de direitos sociais, a quebra de seu ritmo frenético impôs ao mesmo neoliberalismo a ampla dependência do Estado que tanto negou.

Para Santos, junto dessa longínqua vivência neoliberal que se estabeleceu em bases sólidas estão as relações sociais entre sujeitos de uma elite econômica e oprimidos pelo sistema; se a primeira parcela sente seguridade de vida - por meio de soluções financeiras, apólices e recursos para diversas finalidades, como situa o autor -, o mesmo não se pode dizer para os demais. Entretanto, uma vez dado o estopim de igualdade do ser que vive - a experiência da doença - pelo surgimento da pandemia, a segurança se dissipa e está exposta à fragilidade humana. Mais adiante no seu texto, Santos (2020, p. 21) afirma que “a quarentena não só torna mais visíveis, como reforça a injustiça, a discriminação, a exclusão social e o sofrimento imerecido que elas provocam”.

Se a pandemia exige resposta de emergência, a crise ecológica se mostra irreversível, aponta o autor, mas ambas as situações estão interligadas. Ele atribui tal situação ao modelo de produção iniciado no século XVIII, que utiliza desenfreadamente os recursos naturais sem identificar a capacidade do planeta de se recuperar. Por outro lado, Enrique Leff (2009), na obra Ecologia, capital e cultura: a territorialização da racionalidade ambiental, relaciona essa racionalidade econômica em oposição à racionalidade ambiental; produzimos além do que precisamos, sob a forma de exploração dos sujeitos com vistas a um sistema de lucros que sobrecarrega os ecossistemas, negando as diferenças socioculturais, por meio do processo de massificação da população (conceito bastante presente nas obras de Hannah Arendt) que certamente culminaria em uma queda do capital ou sua reformulação, porque o planeta não suporta a velocidade do desgaste fomentado pelo sistema. “É este o modelo que está hoje a conduzir a humanidade a uma situação de catástrofe ecológica” (SANTOS, 2020, p. 24). Não em percepção ecológica, apenas, pois o termo é parte de um todo, mas é possível compreender que a crise é de cunho ambiental; ou seja, complexa, ampla, afetando todos os setores historicamente constituídos, bem como as estruturas pensadas para a sociedade.

Ambos os autores afirmam que o capitalismo não consegue se prolongar da forma como está estabelecido. Entretanto, na mais recente produção de Santos, é possível identificar a ideia de que o capitalismo financeiro poderá se estabelecer como uma parcela menor dentro de uma estrutura maior, análoga ao capital. E mais, o neoliberalismo não se sustenta por muito tempo, uma vez que todos os países - dentre eles os Estados Unidos, maior representante neoliberal no mundo - tomaram, perante a pandemia, decisão de imediata insuflação do Estado na defesa da saúde e da própria economia.

Dessa forma, é possível compreender que novas maneiras de pensar a condição da vida dos sujeitos podem finalmente se sobrepor à dominação da extrema exploração da lucratividade. Então, parcelas políticas extremistas de direita, que aliam ideologia religiosa a uma prática neoliberal ortodoxa, perderiam força. Conseguem lidar melhor com a crise na saúde países com lógica diferente daquela neoliberalista, afirma Santos. Contudo, a fase crítica economicamente falando será com o fim da pandemia, “a pós-crise será dominada por mais políticas de austeridade e maior degradação dos serviços públicos onde isso ainda for possível” (SANTOS, 2020, p. 25).

Então se evidenciam novas práticas de emergência, no isolamento de tom unificador dos sujeitos e na ação de socorro à economia. Afirma Santos que abrandar os mecanismos de produção trouxe boas notícias aos diversos ecossistemas, apesar do grande impacto financeiro. Por outro lado, se saímos de uma guerra de mercado entre China e Estados Unidos, a crise sanitária evidencia a disputa da narrativa entre formas do comércio internacional.

Trata-se de um tipo de implosão societária daquela que foi estruturada no período após o século XVIII; o mercado torna-se, ao mesmo tempo, fluído e presente em todas as regiões do planeta, enquanto o patriarcado já existente e o colonialismo moldam os sujeitos moral e ideologicamente. Afirma Boaventura de Sousa Santos (2020, p. 12) que “todos os seres humanos são iguais (afirma o capitalismo); mas, como há diferenças naturais entre eles, a igualdade entre os inferiores não pode coincidir com a igualdade entre os superiores (afirmam o colonialismo e o patriarcado)”. Por outro lado, acredita o autor que, enquanto existir o capital, também devem coexistir o colonialismo - que afeta as relações de dominação, em especial dos países em desenvolvimento sul-americanos e africanos -, o patriarcado - que oprime a mulher - e o capacitismo - que exclui o deficiente físico. Somados, esses grupos são aqueles violados historicamente e que o Estado neoliberal não consegue proteger, comenta o autor.

Por seu contexto de exclusão histórica, os grupos do sul, segundo Santos, são os mais afetados nesse contexto de pandemia. Outras grandes vítimas são as mulheres que, majoritariamente, estão na linha de frente do combate ao vírus e, se estão mais expostas a adoecer, afirma o autor, também enfrentam o machismo com o crescente aumento dos índices de violência contra a mulher. “O confinamento das famílias em espaços exíguos e sem saída pode oferecer mais oportunidades para o exercício da violência contra as mulheres (SANTOS, 2020, p. 16).

Já os trabalhadores autônomos e informais, afirma o autor, viram seus rendimentos baixarem vertiginosamente, uma vez que, para muitos, o rendimento provém do ato laboral diário. Somando-se a essa condição a precarização do trabalho nos últimos 40 anos no capital, compreendemos uma dupla opressão para essas pessoas. Em outras palavras, “significa que potencialmente milhões de pessoas não terão dinheiro sequer para acorrer às unidades de saúde se caírem doentes ou para comprar desinfetante para as mãos e sabão” (SANTOS, 2020, p. 17). Para os que trabalham com entrega, o período é diferente, pois colocam-se no atendimento de diversas pessoas e violam a quarentena, mesmo sem querer, aponta o autor. Ambos os sujeitos veem violados os direitos à seguridade alimentar e ao trabalho salubre, seguro e estável.

Assim também encontramos as pessoas que não possuem abrigo, os que moram em situação suburbana - favelas, palafitas, barriadas - em condições precárias de higiene e em grandes aglomerados familiares e, também, os internados nos campos de refugiados; todos eles, antes da pandemia, já encontravam barreira de acesso à saúde. Esses indivíduos buscam o direito à moradia, porém “habitam na cidade sem direito à cidade, já que, vivendo em espaços desurbanizados, não têm acesso às condições urbanas pressupostas pelo direito à cidade” (SANTOS, 2020, p. 18). Sua condição é de quem enfrenta as inseguranças sanitária, alimentar e trabalhista.

Outra ideia imposta na sociedade atual versa sobre a opressão que sofrem os deficientes físicos: se, por um lado, sua condição é reconhecida na sociedade, por outro, a própria sociedade não oferta estrutura suficiente para incluí-los. A última condição de dominação apontada por Santos é a dos idosos; em uma mesma cidade, quem envelhece mais rápido, quem falece mais cedo e quem dispõe de condições de acesso aos recursos médicos? Outro ponto situado pelo autor é o contexto de a crise econômica propiciar o aumento da vida produtiva do sujeito, avançando a idade, pela interferência da ciência, tanto quanto possa contribuir para o lucro do capital. Se Santos fala sobre vida ativa, Foucault analisa a sociedade em que o poder interfere no prolongamento da capacidade produtiva dos humanos - biopolítica.

A questão que se coloca é: qual deve ser o modelo social e econômico suficientemente solidário, igualitário e principalmente democrático pelo qual deva se direcionar o mundo pós-pandemia? Devemos, portanto, pensar em uma “democracia participativa ao nível dos bairros e das comunidades e na educação cívica orientada para a solidariedade e cooperação, e não para o empreendedorismo e competitividade a todo o custo” (SANTOS, 2020, p. 8). Ao considerar soluções de produção e consumo mais adequadas do que aquelas impostas pelo sistema vigente, torna-se imprescindível pensar em uma democracia ambiental, como postula Leff (2009), pautada no respeito às populações autóctones.

Na ideia da democracia está a excepcionalidade da situação pandêmica, do pensamento caótico no contexto de normalidade. Santos volta-se às análises do filósofo Giorgio Agamben, em especial ao conceito de “Estado de exceção” (presente na obra de mesmo nome, publicado na primeira metade do século XX), ou ao momento em que o conjunto jurídico constitucional de determinado país suspende o ordenamento dos direitos do cidadão para defender o próprio Estado. Porém, na própria teoria de Agamben, “teremos de distinguir no futuro não apenas entre Estado democrático e Estado de excepção, mas também entre Estado de excepção democrático e Estado de excepção anti-democrático” (SANTOS, 2020, p. 14), e se há, nessa conjuntura, a exceção de ordenamento democrático. Em uma percepção maior, a situação da pandemia é a exceção das exceções, postula o autor.

A questão que se levanta é: qual o limite do direito à educação na situação da exceção das exceções? Existe educação - principalmente básica - viável em tempos de pandemia? Quais são os limites das tecnologias de informação aplicadas em educação? Os espaços virtuais conseguem abarcar a complexidade de uma sala de aula?

Finalmente, com a falácia do Estado neoliberal, a partir de um histórico de, pelo menos, 40 anos de capital financeiro e crescente precarização dos serviços públicos ofertados, a ideologia que acabou de ser testada mostrou que, além de não atender às particularidades da crise sanitária, também evidencia a desigualdade que culmina do desgaste das políticas públicas de proteção ao sujeito. Dessa maneira, não apenas o Estado ultraliberal de direita é minado, mas a pandemia abre caminhos para repensar todo o sistema produtivo do capital. Até a quais implicações sociais os sujeitos são expostos por uma lógica de dominação total para preservação da lucratividade é a ideia central do texto de Santos, uma vez que o capitalismo, tal qual como conhecemos, está falido.

REFERÊNCIAS

LEFF, Enrique. Ecologia, capital e cultura: a territorialização da racionalidade ambiental. Petrópolis: Vozes, 2009.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020.
Revista Cadernos de Pesquisa

Professor, ensino médio e juventude: entre a didática relacional e a construção de sentidos




MESQUITA, Silvana Soares de Araújo. Professor, ensino médio e juventude: entre a didática relacional e a construção de sentidos. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, Numa, 2018. 239 p

No livro Professor, ensino médio e juventude: entre a didática relacional e a construção de sentidos, Silvana Soares de Araújo Mesquita, professora do Departamento de Educação da PUC-Rio, discute o exercício da docência em uma escola de ensino médio regular que atende a setores populares. A obra foi produzida com base em sua tese de doutorado em Educação, que recebeu o Prêmio Capes de Teses 2017 e o Prêmio CTCH de Teses, do Decanato do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. O livro está organizado em oito capítulos, que incluem a introdução e a conclusão.

Na introdução, apresentam-se as justificativas da pesquisa realizada, os objetivos e as questões que nortearam o trabalho. A autora traz algumas discussões para a contextualização do campo e seus sujeitos, ou seja, o ensino médio no Brasil e os professores e jovens que nele trabalham e estudam. São ressaltadas as políticas educacionais para o ensino médio que vêm ganhando destaque no cenário nacional, em consequência de sua expansão por meio da universalização do ensino fundamental, tais como a Emenda Constitucional n. 59 (BRASIL, 2009)1 e a Lei n. 12.796 (BRASIL, 2013),2 que apontam para a obrigatoriedade e gratuidade desse nível de ensino. Entretanto, também é salientada a problemática que envolve o ensino médio no Brasil: a incapacidade dos sistemas públicos de atenderem à totalidade da população juvenil, o baixo nível de interesse dos jovens por essa escola, o conflito de identidade quanto à função do ensino médio, a ineficácia no que se refere à garantia de superação das desigualdades sociais, entre outros fatores. É destacada, ainda, a Lei n. 13.415 (BRASIL, 2017),3 que instituiu uma nova reforma do ensino médio, considerada pela autora um campo ainda em disputa e sobre o qual torna-se necessária a construção de indicadores que permitam sua melhor compreensão. Com relação aos sujeitos - professores que atuam no ensino médio no Brasil -, são apresentados dados quantitativos do Censo Escolar de 2016, apontando que menos da metade possui formação compatível com a disciplina que leciona. A autora conclui essa parte introdutória assinalando que o objetivo geral da pesquisa foi “compreender as especificidades do trabalho dos professores de ensino médio em suas competências e habilidades, características, funções e ações enquanto profissional responsável por formar jovens diferentes, heterogêneos, diversos para um mundo plural e complexo” (MESQUITA, 2018, p. 23). Assinala ainda que teve como principais eixos as perspectivas dos alunos sobre o ensino e a escola, por meio da indicação dos seus “bons professores”, em diálogo com as ações e concepções dos próprios docentes, identificadas no cotidiano escolar. Por fim, são apresentados brevemente os recursos de pesquisa utilizados e justifica-se a utilização do termo “bom professor”, como categoria nativa trazida pelos alunos que participaram da pesquisa.

O capítulo dois traz uma “revisão da literatura sobre bom professor, desempenho de professores, profissão e formação docente, com destaque para o cenário do ensino médio nas esferas nacional e internacional” (MESQUITA, 2018, p. 29). Tendo como principais referências Dubet (1994, 2002),4 Connell (2010),5 Cortesão (2000),6 Dias (2008),7 Fernandes (2008),8 Maués (2011),9 Bressoux (2003),10 entre outros, a autora discute a polissemia conceitual entre desempenho, competência e eficácia no âmbito do trabalho docente. Com Formosinho, Machado e Oliveira-Formosinho (2010),11 Fernandes (2008),12 Maroy (2002)13 e Lessard, Kamanzi e Larochelle (2010),14 é feita uma abordagem sociológica sobre desempenho docente e desenvolvimento profissional. Mesquita apresenta, ainda, a revisão de literatura acerca das competências para ensinar e dos saberes docentes, valendo-se principalmente dos trabalhos de Tardif (2005)15 e Perrenoud (2001)16 e do conceito de “bom professor” no contexto do ensino médio, recorrendo principalmente a Nogueira, Jesus e Cruz (2013)17 e Gatti (2010).18 Com base nos referenciais teóricos, são destacadas cinco dimensões “que podem contribuir para o bom desempenho dos professores no exercício da docência”: dimensão do conhecimento, dimensão estratégica, dimensão relacional, dimensão motivacional e dimensão profissional, que serviram de base para as análises efetuadas (MESQUITA, 2018, p. 51).

O terceiro capítulo apresenta o contexto social/territorial no qual a escola pesquisada se insere, os critérios de seleção da instituição e a descrição dos instrumentos metodológicos. A pesquisa teve como campo de investigação uma escola pública estadual de ensino médio regular, o que se justifica em virtude de a maioria das matrículas do ensino médio se concentrar nas redes estaduais e na modalidade de ensino médio regular, ou seja, voltada para a formação geral. Assim, a autora inicia por uma abordagem macro, trazendo dados relevantes sobre o ensino médio no Brasil e no estado do Rio de Janeiro e sobre a região onde a escola pesquisada está localizada. Em seguida, é feita uma abordagem micro, trazendo uma descrição minuciosa sobre a escola e seus agentes. Destaca-se que a escolha da escola se deu por três razões iniciais: ser uma escola exclusivamente de ensino médio, de grande porte e diurna, garantindo uma identificação com esse segmento de ensino. Para além dessas características, estabeleceu-se que a escola a ser escolhida deveria ser uma “escola de qualidade, que tivesse prestígio na sua região como lócus de boa formação para os jovens que atendesse” (MESQUITA, 2018, p. 63). Na sequência, a autora apresenta o contexto socioeconômico em que a escola está inserida (região da Baixada Fluminense, com grande densidade demográfica, marcada por fortes desigualdades sociais) e uma descrição detalhada da escola campo, seus agentes e sobre as referências históricas e culturais desse espaço. O capítulo finaliza com a discussão das escolhas metodológicas, destacando que a proposta foi fazer uma integração de instrumentos para a coleta das informações: questionários com professores e estudantes; entrevistas com gestores e professores indicados pelos estudantes com “bons professores”; e observação de aulas desses professores.

O capítulo quatro tem como foco o perfil do professor de ensino médio: desde uma abordagem macro, possibilitada pela análise das informações nacionais, até um enfoque micro, voltado para os docentes da escola pesquisada. A autora discute, com base nos dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais “Anísio Teixeira” (Inep), Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ), Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc-RJ) e Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (Sepe-RJ), as condições do trabalho docente no Brasil, no Rio de Janeiro e na região da Baixada Fluminense. O capítulo caracteriza ainda os docentes que atuam na escola pesquisada, no que se refere a disciplinas lecionadas, jornada de trabalho, número de turmas e alunos com que trabalham, além de abordar algumas diferentes representações e formas de atuar desses professores, em decorrência de fatores como gênero, tempo de serviço e formação. Nessa perspectiva, a autora chama a atenção para uma situação característica desse espaço, que se expressa na divisão do corpo docente em dois grandes grupos, de acordo com o tempo de atuação na escola: os professores novatos, que ingressaram há menos de cinco anos na escola; e os experientes que lá ingressaram há mais tempo.

O capítulo cinco tem como foco a análise das representações dos estudantes sobre o “bom professor”, que apontaram os docentes que foram acompanhados na segunda fase da pesquisa. Assumindo a perspectiva de uma pesquisa sobre o trabalho dos professores baseada no protagonismo dos agentes envolvidos na ação docente, a autora justifica a importância da participação dos alunos nessa investigação. Assim, nesse capítulo, é apresentado o perfil socioeconômico e cultural dos jovens que compõem o corpo discente da escola campo (aproximadamente 2.400 jovens) e também são discutidos os temas da relação com o saber e a escola e os sentidos desta e do conhecimento para esses jovens. No que se refere ao valor do conhecimento, evidenciou-se a existência, nesse espaço, de três grupos distintos de alunos: os que consideram que conhecimentos ensinados não têm significado prático e aplicabilidade no cotidiano, mostrando-se resistentes ou passivos diante do trabalho desenvolvido; os que valorizam os conhecimentos e buscam, por meio da escola, o acesso à universidade; e os que relacionam o conhecimento com as manifestações culturais e artísticas, valorizando especialmente as atividades que aí se inserem. Com relação à função da escola do ensino médio, também se evidenciou a existência de grupos que possuem diferentes interesses: a possibilidade de acesso à universidade e/ou a melhores empregos, como consequência da certificação de conclusão do ensino médio; e a socialização. Entretanto, destaca-se um eixo comum nos depoimentos desses jovens: o papel central dos professores para dar sentido ao ato de aprender. Por fim, o capítulo traz a discussão sobre as dimensões do trabalho docente, apresentadas no segundo capítulo, na perspectiva dos estudantes. Por meio do questionário aplicado e respondido por 341 estudantes, foi possível identificar a relevância dos aspectos relacionais e motivacionais para a indicação dos “bons professores”. O capítulo termina com a apresentação dos caminhos metodológicos para a indicação pelos estudantes dos professores que seriam observados pela pesquisadora e a exposição de algumas de suas características, no que se refere às dimensões do trabalho docente.

O sexto capítulo traz as análises sobre o exercício da docência no ensino médio, com base nas observações das aulas dos “bons professores” indicados pelos estudantes e nas respostas dos docentes aos questionários sobre sua prática pedagógica. A autora busca identificar os fatores que mais influenciam na efetividade do ensino desses professores indicados. Nessa perspectiva, evidenciou-se uma didática marcada pelas relações (sendo a indisciplina considerada a principal dificuldade para a realização do trabalho docente) e o envolvimento do professor - aluno como fator preponderante para o estabelecimento de um clima de aprendizagem. Nesse aspecto, ressaltou-se, ainda, um diálogo importante entre as estratégias didáticas utilizadas e a dimensão relacional do trabalho docente. No que se refere às estratégias de ensino-aprendizagem, a pesquisa constatou que as práticas desses professores são muito semelhantes e aproximam-se de um ensino tradicional. Destacaram-se três fatores que estiveram associados à ação didática desses professores: “interação, formas de tratamento e construção de regras no cotidiano da sala de aula” (MESQUITA, 2018, p. 160). Outros fatores identificados como relevantes para a efetividade do ensino nesses casos foram o papel motivador do professor em relação à aprendizagem dos alunos, a contextualização dos conteúdos selecionados, a otimização do tempo disponível para o ensino, apesar das regulações externas, e o desenvolvimento de um “estilo de ensinar”. Por meio dessas observações da prática docente e dos diferentes estilos de ensinar, a autora conclui que existem pontos comuns, mas também pontos divergentes entre tais práticas, sendo que os professores “não agem unicamente de acordo com um estatuto profissional baseado no pré-estabelecimento de normas norteadoras de condutas. A influência da subjetividade e da experiência de cada um regula fortemente a ação docente” (MESQUITA, 2018, p. 184).

Os desafios e dilemas enfrentados pelos professores do ensino médio são discutidos no sétimo capítulo, com base nas perspectivas dos docentes que participaram da pesquisa. O objetivo é entender o sentido da ação docente do ponto de vista dos próprios professores. Busca-se compreender suas concepções sobre o ensino, sobre a profissão e sobre os alunos para explicar o exercício da docência no ensino médio. O capítulo aborda as concepções desses professores acerca dos objetivos do ensino médio e da função da escola, bem como dos problemas enfrentados. Destaca-se o lugar da experiência no desenvolvimento profissional docente e no “estilo de ensinar” de cada professor. É identificada, ainda, uma satisfação profissional manifestada pelos docentes, apesar do desprestígio social da profissão, pautado no retorno dado pelo desempenho dos alunos. Por meio das discussões, a autora observou uma característica comum entre os “bons professores”: “o reconhecimento da centralidade do seu papel motivador nas escolas de massa e o efeito de suas ações na relação com os jovens”, sendo que suas habilidades foram construídas “pela prática reflexiva, com bases nos saberes da experiência, em diálogo com os conhecimentos adquiridos em seus processos formativos e com a subjetividade de cada docente” (MESQUITA, 2018, p. 211-212).

O capítulo oito traz as conclusões da pesquisa, com uma síntese dos principais temas abordados na obra. Defende-se que as dimensões motivacional e relacional são elementos norteadores da ação docente. Retomando as principais questões discutidas no livro, a autora identifica elementos comuns às aulas bem-sucedidas e reconhecidas pelos alunos como favorecedoras da aprendizagem: a gestão da classe onde predomina a autoridade negociada; a contextualização dos conteúdos de ensino articulados com as realidades dos estudantes; a utilização de estratégias de ensino mais participativas, interativas e com sentido concreto; e a boa gestão do tempo, deixando pouco tempo livre e ocioso no decorrer das aulas. Trata-se de um grupo de professores que valoriza os princípios pedagógicos e didáticos, tem compromisso com os bons resultados dos alunos e demonstra satisfação pela docência. A autora discute, ainda, as concepções didáticas dos professores e a necessidade de a escola garantir tempo e espaço comuns para a reflexão coletiva acerca das práticas de ensino, proporcionando assim condições para o desenvolvimento profissional. Ela defende a tese de que “os professores podem fazer a diferença” e destaca duas características fundamentais ao exercício da docência no ensino médio - “o professor como profissional das interações humanas e o professor como construtor de sentido” (MESQUITA, 2018, p. 222).

Recomendado a todos aqueles que se interessam pelo ensino e pelo trabalho docente, em sua complexidade e importância social, especialmente no ensino médio, o livro Professor, ensino médio e juventude: entre a didática relacional e a construção de sentidos tem potencial para fazer pensar as práticas docentes e os modelos pedagógicos que predominam nesse nível de ensino, bem como as políticas públicas voltadas para a educação dos jovens no Brasil e formação docente, em suas etapas inicial e continuada. A obra traz ainda contribuições importantes para os professores e gestores escolares no que se refere aos conceitos discutidos e às questões que se inscrevem no campo da didática em sala de aula do ensino médio.

REFERÊNCIAS

MESQUITA, Silvana Soares de Araújo. Professor, ensino médio e juventude: entre a didática relacional e a construção de sentidos. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio; Numa, 2018. 239 p.

1
BRASIL. Emenda Constitucional n. 59. Diário Oficial da União, Brasília, DF, n. 216, 12 nov. 2009. Seção 1. p. 8. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=1839-pec-dru-121109-pdf&category_slug=novembro-2009-pdf&Itemid=30192.
2
BRASIL. Presidência da República. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Casa Civil. Lei n. 12.796, de 4 de abril de 2013. Brasília, DF, 4 abr. 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12796.htm.
3
BRASIL. Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Brasília, DF, 16 fev. 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13415.htm.
4
DUBET, François. A Sociologia da experiência. Lisboa: Porto, 1994. DUBET, François. El declive de la institución: profesiones, sujetos e individuos en la modernidad. Barcelona: Gedisa, 2002.
5
CONNELL, Raewyn. Bons professores em um terreno perigoso: rumo a uma nova visão da qualidade e do profissionalismo. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n. especial, p. 165-184, 2010.
6
CORTESÃO, Luiza. Ser professor: um ofício em risco de extinção? Reflexões sobre práticas educativas face à diversidade, no limiar do século XXI. Porto: Afrontamento, 2000.
7
DIAS, Amália. Apostolado cívico e trabalhadores do ensino: história do magistério do ensino secundário no Brasil (1931-1946). 2008 Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008.
8
FERNANDES, Domingos. Avaliação de desempenho docente: desafios, problemas e oportunidades. Cacém: Texto Editores, 2008.
9
MAUÉS, Olgaíses Cabral M. A política da OCDE para a educação e a formação docente. A nova regulação? Educação, Porto Alegre, v. 34, n. 1, p. 75-85, jan./abr. 2011.
10
BRESSOUX, Pascal. As pesquisas sobre efeito-escola e efeito-professor. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 8, dez. 2003.
11
FORMOSINHO, João; MACHADO, Joaquim; OLIVEIRA-FORMOSINHO, Júlia. Formação, desempenho e avaliação de professores. Mangualde: Edições Pedago, 2010.
12
FERNANDES, Domingos. Avaliação de desempenho docente: desafios problemas e oportunidades. Cacém: Texto Editores, 2008.
13
MAROY, Christian. L’enseignement secondaire et ses enseignants. Paris: De Boeck, 2002. (Collection Pédagogies en Développement).
14
LESSARD, Claude; KAMANZI, Pierre Canisius; LAROCHELLE Mylène. O desempenho no trabalho dos educadores canadenses: o peso relativo da tarefa, as condições de ensino e as relações entre alunos e equipe pedagógica. Educar em Revista, Curitiba, n. especial 1, p. 77-99, 2010.
15
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2005.
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PERRENOUD, Philippe. Ensinar: agir na urgência, decidir na incerteza. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2001.
17
NOGUEIRA, Daniele X. P.; JESUS, Girlene R.; CRUZ, Shirleide P. S. Avaliação de desempenho docente no Brasil: desvelando concepções e tendências. Linhas Críticas, Brasília, v. 19, n. 38, p. 13-32, 2013.
18
GATTI, Bernardete. Formação de professores no Brasil: características e problemas. Educação & Sociedade, Campinas, SP, v. 31, n. 113, p. 1355-1379, out./dez. 2010.
Revista Cadernos de Pesquisa

Memórias do cárcere



“E depois? Que viria depois? O caos, provavelmente. Se os defensores da ordem a violavam, que devíamos esperar? Confusão e ruína. Desejando atacar a revolução, na verdade trabalhavam por ela. Era por isso talvez que o bacharel Nunes Leite chorava.”

(Graciliano Ramos)

Em seu segundo ensaio sobre Graciliano Ramos - o primeiro é o insigne

Ficção e confissão -, Antonio Candido considera um vínculo latente a unir os livros sob a visão do escritor. Tanto nos romances quanto nas recordações, haveria um senso de emparedamento, espécie de assombro que, difuso no tempo, estrangula a subjetividade, tornando-a dramática. Memórias do cárcere, testemunho final, concentraria, logo, ao narrar a experiência da cadeia, essa gravidade trágica, ora absorvida como “dimensão própria do século dos totalitarismos”. Completa-se assim, graças à aprendizagem concreta e à escrita laboriosa, aquele olhar já antes negativo do autor, cuja compreensão também se amplia, pois “os acontecimentos fizeram Graciliano Ramos passar do mundo como prisão à prisão enquanto mundo” (Candido, 1960).1

Com efeito, a cada episódio o depoente se esforça por romper a superfície dos fatos, à medida que investiga o íntimo das personagens (inclusive de si mesmo) e corrige todo juízo precipitado. Vemos o trabalho de uma inteligência séria, que envolve os objetos ao seu redor, atinge o miolo das ideias e apanha os matizes mais fugidios. Parte-se da generalidade ordinária, pouco ou nada aderente ao indivíduo, para descobrir, na análise do singular, os sinais que se universalizam na história. E o ponto de vista se apura. Para trazer aqui um exemplo: no capítulo 13 do volume I, Graciliano Ramos se espanta com o choro convulso do bacharel Nunes Leite, a quem a carceragem devasta enormemente; presume estar ali um homem enfermo, suscetível a abalos extremos e disparates nervosos; mas depois pondera a diferença entre os caracteres, afinal isso a ordem sempre ignora. Nunes Leite não era um maníaco, apenas não sabia existir fora dos regulamentos, daí o despropósito; em contrapeso, havia quem se acomodasse sereno atrás das grades. E a conclusão do memorista salta da circunstância ao sistema desfigurador de perfis: “A administração pública não atenta nessas ninharias, tende a uniformizar as pessoas. Somos grãos que um moinho tritura - e ninguém quer saber se resistimos à mó ou se nos pulverizamos logo” (Ramos, 1953). O discurso, já em clave plural e presente, revela o apagamento dos sujeitos pela disciplina do mundo, repressora, em tempos modernos, independentemente da região - a analogia com o moinho, a esmigalhar a matéria mais dura ou menos dura, é a síntese dessa impressão estilhaçada que nos ronda a todos, grãos diluídos na massa. Todavia, avaliar, após vários anos, o desastre e formar sobre ele um ângulo avesso ainda impõem um obstáculo à moenda.

Mesmo antes das memórias, em 1942, Carpeaux salientava o anarquismo como pulso ideológico do autor, contrário radicalmente às coisas do mundo, mas também inquieto por salvá-lo na criação artística. As sombras que ofuscam o ambiente de seus romances se projetam “do edifício da nossa civilização artificial - cultura e analfabetismo letrados, sociedade, cidade, Estado, todas as autoridades temporais e espirituais” (Carpeaux, 1968). Esses produtos falhos da história precisariam sumir, para que se erguesse nova realidade, só tecida no drama pela fresta do delírio. No fundo, a recusa abrange todo o lastro das estruturas sociais, iníquas e corruptas, porque em seus corredores se aniquila a identidade - e nos regimes de tirania, o arbítrio sobe ao plano do terror. Muito além de construir um relato acerca da ditadura varguista, o testemunho exprime as reflexões de uma consciência sob as ruínas no “século dos totalitarismos” e, por isso, representa uma contra-voz no meio do infortúnio.2



O estilo de Graciliano Ramos, na dialética de um realismo sui generis, atravessa a aparência dos acontecimentos; subsiste e até se eleva com o decorrer da história, a qual costuma reencenar as mesmas farsas e tragédias. Ocorre-me recuperar esse conceito em razão do estudo Memórias do Cárcere: da literatura ao cinema, de Paulo Roberto Ramos (2019), cujo núcleo se firma justamente no poder de significado da obra, seja como escrita, seja como filme, comunicando ao público, em diversos momentos, a resistência perante códigos autoritários: “Ao transpor as recordações de Graciliano, Nelson Pereira utiliza-se delas para dialogar não apenas com o livro, mas com o contexto do regime militar que controlava o país desde 1964 e que, na época em que a película foi realizada, em 1984, exalava seus últimos suspiros” (p.12) Cabe, sem dúvida, acrescentar uma terceira margem, pertencente ao domínio crítico, o próprio ensaio que, hoje, denuncia a tenacidade da injustiça. Tais esferas se articulam em torno dos eixos arte e despotismo, naturalmente antagônicos, e deságuam na ideia do receptor - do livro, da fita e da pesquisa -, chamado a repensar o fluxo entre a cultura e a sociedade.

Não se trata, assim, de simples exame comparativo dos moldes de invenção que partilham, nesse caso, um material verídico. Paulo Roberto se empenha em observar, atento aos expedientes formais peculiares a cada linguagem, os efeitos de representação daquele material nos distintos períodos em que se elaboram e sua extensão ao longo do tempo. Para tanto, mobiliza aspectos teóricos da crítica literária, da cinematografia, da filosofia e da militância política a fim de apreender a refração dos eventos: de um lado, operada pelo corte autobiográfico, que se faz no limite de um depoente, e de outro, a adaptação fílmica, menos fiel à peça matriz do que o leitor talvez esperasse, para, contudo, traduzir a mensagem em novo feitio. Em ambos, interessa ver a afinidade de dois criadores inconformados com o clima de abafamento que as forças armadas imprimem em quadras de exceção no país. Aliás, as obras são penetrantes a ponto de acusarem o teor não inteiramente excepcional dessas épocas, pois elas assinalam apenas fases mais agudas de um processo - daí a seqüência crítica aqui esboçada: da tradição brasileira dentro da barbárie moderna, percutindo nas ditaduras explícitas e nos raios de um círculo histórico, até hoje.






Memórias do cárcere (1983): Glória Pires (Heloísa) e Carlos Vereza (Graciliano Ramos).






O cineasta Nelson Pereira dos Santos (à esq.) nas gravações de O amuleto de Ogum (1973-1974).


A estratégia da pesquisa consiste em traçar panoramas de contexto e derivar então para a análise dos objetos, sublinhando sempre o paralelo entre as perspectivas. Ao estudar os motivos de tensão social recorrentes, adverte o veio das fraturas nacionais que muito pouco se alteram no passo das décadas. Isso permite ao cineasta, por exemplo, arranjar na tela um enredo escrito 25 anos antes, no qual se figura a má sina do retirante, com o intuito de sugerir a persistência da mazela sertaneja. É o caso do filme Vidas Secas, de 1963: “o realizador serviu-se de uma narrativa sobre o passado para falar sobre o presente” (p.149). Às voltas com o governo militar, Nelson Pereira dos Santos repete, anos mais tarde, o jogo de espelhos, desvia-se do censor obtuso e instiga a plateia a discernir os reflexos que se lançam de lá para cá: “Para o público dos cinemas em 1984, que, em menor ou maior grau, tinha algum conhecimento das ações nos porões da ditadura, as cenas associadas à tortura em Memórias do Cárcere apontam para a traumática história recente do país, construída, nas últimas duas décadas, por um regime que ainda governava seus espectadores” (p.173). Cumpre realçar que as duas obras resultam, nos itinerários dos seus autores, de uma mais larga abertura da sensibilidade ao outro, quando as vicissitudes lhes inculcaram uma visão lúcida e os aproximaram dos humildes, vítimas todos de igual violência: na cadeia, Graciliano ganhou o convívio direto com os miseráveis, derrubou as barreiras de classe e de intelecto; à procura do retrato popular, Nelson Pereira se fraternizou com as camadas pobres já longe da óptica do Cinema Novo, durante o decênio de 1970.



Merecem destaque, no conjunto do trabalho, as passagens de mais detida análise, capazes de acompanhar os elementos confluentes ou específicos que distinguem as técnicas de narração. Examinando os espaços, constata-se a mudança de enfoques provocada pela atitude a um só tempo vigilante e discreta do sujeito, carregado de um lugar para outro segundo um roteiro absurdo. Se no livro tal atmosfera se trama com o estilo sombrio de Graciliano, na película o cineasta se vale dos recursos de seu ofício, no manejo da câmera. Nas fumaças do porão do Manaus, navio de transporte dos presos, a lente captura as nuances da noite infernal rente ao olhar da testemunha: “Tudo o que é mostrado pelo dispositivo é mediado pela presença do protagonista na cena e, em alguns casos, de forma subjetiva, quando ela assume explicitamente seu ponto de vista - tal característica está presente na maior parte dos planos do filme” (p.130). Talvez ainda mais expressivo, em termos de análise, seja o capítulo a respeito da música. Ademais de registrar as paródias e sambas soantes no porão, espécie de coro de verve revolucionária, o crítico anota com minúcia o andamento em escalas que o narrador grava nesse trecho, compondo quase uma pauta reverberadora das ondas rítmicas, flutuantes do repouso à vigília. E, na fita, ressalta o emprego magnífico que Nelson Pereira faz da “Marcha solene brasileira”, de Gottschalk, para insinuar os acordes na vertigem emocional do prisioneiro: “Cada vez que a ouvimos, da janela do Palácio do Governo de Alagoas à embarcação que deixa a Colônia Correcional, ela assinala a descida do personagem para ambientes cada vez mais duros e degradados” (p.196).

Graciliano Ramos devotou os últimos sete anos de sua existência às Memórias do cárcere (1946-1953), evocando os onze meses de confinamento sofridos de março de 1936 a janeiro de 1937. O intervalo decantou, sem dúvida, a compreensão sobre o vivido e abriu vez aos meios de expressão - essa busca, aliás, foi difícil: o autor redigiu várias notas enquanto detido, mas teve de inutilizá-las, e ainda tentou em vão dar forma às reminiscências logo após a soltura. E a morte lhe impediu forjar as páginas finais (faltava somente um capítulo), suspendendo o entrecho antes da liberdade; quem sabe se tal lacuna não se ajusta melhor ao espírito da obra, na qual se lê no início: “liberdade completa ninguém desfruta”. Para render homenagem ao escritor e arrumar um epílogo, Nelson Pereira resolveu fabricar um remate simbólico. Ao invés de exibir Graciliano a abandonar os manuscritos, lançando-os à água do mar ou ocultando-os sob o colchão, planeia uma cena de congraçamento do intelectual com os companheiros, como a sugerir a aliança potencialmente remissória das letras com o povo: os papéis não se perdem, distribuem-se entre os detentos, cada um passa a ser portador de uma folha - talvez o futuro as reunisse. E o artista parece marchar rumo à liberdade.

Um jovem literato alagoano chega ao Rio de Janeiro em 1914 com a veleidade de fazer carreira na capital. Observador sagaz, perambula pela cidade grande e espreita os costumes no curso intenso que as coisas agora oferecem ao migrante vindo da província. Em crônica a propósito de cinemas, diz: “Esses agradáveis lugares onde a gente se educa, vendo as reproduções de fatos que nunca se passaram” (Ramos, 1970).3 A ironia leve apanha a cadência de alienação e mimetismo naquele princípio de século, quando os dramalhões estrangeiros empolgavam a fantasia das plateias. Mas importa acima disso reconhecer em sua gênese a demanda realista do autor, consciente de que fatos não se imaginam nem tampouco a mera cópia deles basta; é preciso interpretá-los numa imitação significativa. Não supunha, porém, o jovem a carga de reveses em seu destino, e menos ver palavras de sua tinta se transferirem às telas, num rigor estético já muito diferente dos melodramas. Decerto, o homem maduro refinaria aquela primeira noção de realismo, pois aprendeu com o tempo que os fatos não se passam, mas, sim, se reproduzem de acordo com a particularidade do olhar. Com isso, as Memórias do cárcere, livro e filme, constituem duas obras, compostas por duas autorias; é o que nos leva a pensar a mirada relativista de Graciliano Ramos, no rascunho de 1937:

Está claro que não tenho o intuito de contar como as coisas se passaram. Direi como as coisas me apareceram. Muitas narrativas foram ou serão feitas sobre os mesmos acontecimentos a que me refiro. É provável que saiam diferentes umas das outras, mas devem todas ser verdadeiras.

Referências

CANDIDO, A. Apresentação. In: Graciliano Ramos - trechos escolhidos. Rio de Janeiro: Agir, 1960. (Col. Nossos Clássicos).
CARPEAUX, O. M. Visão de Graciliano Ramos. In: RAMOS, G. Angústia. São Paulo: Martins, 1968.
PEREIRA, L. M. P. Memórias do cárcere. In: O Século de Camus - artigos para jornal (1947-1955). Rio de Janeiro: Graphia, 2015.
RAMOS, P. R. Memórias do Cárcere: da literatura ao cinema. São Paulo: Alameda, 2019.
RAMOS, G. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.
_______. Linhas tortas. São Paulo: Martins, 1970.
Revista Estudos Avançados

Acontecimento da poesia


No novo livro de Fernando Paixão, Acontecimento da poesia, o velho e desgastado debate entre formalistas e realistas, entre os adeptos da autonomia estética da poesia e os defensores da necessária abertura do poema para a vida, para o mundo extralinguístico, é superado de maneira elegante e inteligente. Paixão não reúne ali apenas textos sobre textos, análises centradas no isolamento do texto literário, embora a atenção formal não deixe de estar presente em suas análises. Depreende-se pela leitura da coletânea que a tarefa do crítico é mais ampla e transdisciplinar, pois se coloca em razão de um “entendimento global e orgânico do ato poético” (p.42), conforme se lê no excelente artigo dedicado a Alfredo Bosi, cuja influência sobre a formação de Paixão é nítida e assumida. Referindo-se à descoberta de O ser e o tempo da poesia (Bosi, 1977), Paixão escreve: “O impacto da leitura foi imediato, pois o autor de História concisa da literatura brasileira (1970) engendra nesse trabalho uma visão holística da poesia, envolvendo intrincadamente os aspectos formais, temáticos e históricos” (p.42).

Como na obra de Bosi, a poesia é pensada aqui como uma “intervenção”, isto é, como algo que, sem se negar como forma, irrompe como acontecimento no curso do tempo, da história, do destino dos homens. Exemplo privilegiado disso se encontra no texto de abertura, “Poesia ao front: Israel e Palestina”, cujo mote é a decisão da Autoridade Nacional Palestina, no início dos anos 2000, de “introduzir literatura israelense em seus currículos” em resposta a uma decisão anterior, do ministro da Educação de Israel de incluir a obra de Mohamoud Darwish nas aulas de literatura do país (p.15). Naquele momento, a poesia é um acontecimento, uma irrupção civilizatória no âmbito de um conflito secular, e, para além da diplomacia, é uma oportunidade para ambos os povos “retornar[em] ao mistério primeiro da língua” (p.15), àquilo que os une, além (ou aquém) dos conflitos recentes, como povo de origem comum e, mais ainda, como seres dotados de linguagem. É nesse sentido que Paixão observa que

[...] escapa aos senhores dos exércitos o que diz a poesia. Metáforas, ritmos e versos - motivados pelo desvio próprio da imaginação - transformam-se num mundo próprio de afinidades, em nome de outra lógica, que parece abrir mão da autoridade. (p.17)

Essa “outra lógica” é, antes de tudo, uma “outra voz”, nos termos de Octavio Paz (1993, p,40), para quem a poesia se inscreve no tempo “entre a revolução e a religião”, sua voz sendo “outra porque é a voz das paixões e das visões; é de outro mundo e é deste mundo, é antiga e é de hoje mesmo, antiguidade sem datas”.

É, portanto, o caráter ambivalente do ato poético, acontecimento histórico e linguístico, social e estético, revolucionário e religioso, que orienta a visão de poesia que subjaz os textos de Paixão. Ao fenômeno da irrupção histórica de um discurso outro, desviante, acrescentemos o impacto do acontecimento poético no seio da própria tradição literária, história outra, cuja continuidade se deixa afetar e engendra ao mesmo tempo a história do mundo. O crítico se dedica a pensar o em torno do poeta, espaço social, geopolítico, mas também literário. Destacam-se, nesse âmbito, o excelente ensaio sobre os impactos de Macunaíma na poesia modernista, reflexão que se prolonga para muito além da geração de 1922, e os dois ensaios centrados no diálogo-confronto entre as tradições poéticas do Brasil e de Portugal.

As “conexões poéticas luso-brasileiras”, para retomar o título de um dos ensaios referidos acima, interessam duplamente ao crítico, em razão do exercício de comparação entre tradições aparentadas, mas, claro, em razão também de um fato biográfico, sua origem luso-brasileira, conforme ele próprio afirma no outro ensaio em questão, intitulado “Modernismos em confronto: Brasil e Portugal”:

É na condição de Português de nascimento, transferido para o Brasil desde muito cedo (aos seis anos de idade) e interessado nessa ponte que une o colorido dos trópicos à tradicional melancolia portuguesa, que sempre me atraiu uma visão comparativa entre as ideias que movimentaram o modernismo literário brasileiro, tal como veio a ocorrer na Semana de Arte Moderna de 1922, em contraposição à eclosão do grupo da revista Orpheu de Portugal. (p.63)

Transitando entre as duas tradições, Paixão não se nega a reconhecer a indelével marca subjetiva de toda visada crítica. Aqui, penso que o retorno a Alfredo Bosi pode iluminar mais uma vez a questão. Em “A interpretação da obra literária”, o crítico e professor emérito da Universidade de São Paulo nos ensina que

[...] o intérprete é, por excelência, um mediador.. Ele trabalha rente ao texto, mas com os olhos postos em um processo formativo relativamente distante da letra.

Interpres chamavam os romanos àquele que servia de agente intermediário entre as partes em litígio. Com o tempo, interpres assumiu também a função de tradutor: o que transporta o significado da sua forma original para outra; de um código primeiro para um código segundo; o que pretende dizer a mesma mensagem, mas de modo diferente. A interpretação opera nessa consciência intervalar, e ambiciona traduzir fielmente o mesmo, servindo-se dialeticamente do outro. O outro é o discurso do próprio hermeneuta. (Bosi, 2003, p.465)

A exemplo do que escreve Bosi, o trabalho crítico do interpres Fernando Paixão se realiza no intervalo entre várias linhas de força: o texto, pensado como matéria linguística; o contexto, tempo no qual irrompe e intervém o poema; a subjetividade crítica (p.43), o discurso outro do hermeneuta, carregado de história e geografia, localizado num tempo e num espaço, e portador de uma sensibilidade, uma formação e uma cosmovisão.

Essa multiplicidade de perspectivas se materializa na própria estrutura do livro, dividido em três partes: “Da poesia”, “Dos poetas” e “Do autor”. Essa estrutura tripartida, que pode ainda apresentar outras subdivisões internas, nos permite dizer que a abordagem de Paixão busca se apropriar do fenômeno poético a partir de um constante movimento de aproximação e distanciamento do poema. Isso explica a preocupação do crítico não apenas com o texto, mas com os arredores do texto (pensemos no já citado ensaio sobre a questão Israel-Palestina), do poeta (pensemos no ensaio “Ao redor de José Paulo Paes” e vários outros nos quais o poeta analisado é confrontado com seu ambiente pessoal, histórico e literário) e, no final das contas, do próprio crítico, cuja voz, como se viu acima, é entendida como voz humana, dotada de subjetividade e temporalidade.

Mas não deixemos de ressaltar que essa voz humana, subjetiva, que carrega consigo um mundo de referências e emoções prévias também assume uma tarefa de cunho coletivo, pois é o crítico aquele que mais contribui para a sobrevivência das obras e para o alargamento dos debates em torno delas. Nesse sentido, Paixão não se conforma em revisitar escritores e obras consagradas entre nós, o que faz muito bem, diga-se de passagem, como José Paulo Paes, Fernando Pessoa, Mário de Andrade, Vinicius de Moraes, mas também busca introduzir na conversa nomes que circulam menos entre nós, leitores brasileiros do século XXI, como o do poeta franco-chinês François Cheng, recém-traduzido (por Bruno Palma) e publicado no Brasil (Duplo canto e outros poemas. Cotia: Ateliê, 2011) e do poeta croata Radovan Ivsic.

A apresentação desses poetas ao público brasileiro, o primeiro em tradução para a nossa língua e o segundo a partir de traduções esboçadas por Paixão a partir da edição francesa, se dá justamente como um convite à ampliação da conversa, como proposta de ampliação de nossos horizontes literários. Assumindo uma das mais nobres e urgentes tarefas da crítica, Paixão nos apresenta o outro convidando-nos ao mesmo tempo a pensar em nós mesmos, num jogo que reproduz o movimento que venho descrevendo nesta resenha, o movimento de negociação entre os mundos do texto e do leitor. No caso de Cheng, cuja situação intercultural, formado e vivendo na fronteira entre Oriente e Ocidente, por si só já aponta para a multiplicidade e o trânsito de linhas de força envolvidas no processo de recepção de um poeta, somos levados a recuperar, no âmbito de nossas próprias referências literárias, exemplos que nos forneçam um primeiro parâmetro de leitura para a compreensão de sua poética centrada nas coisas, no mundo objetivo, nos elementos da natureza - como não evocar João Cabral de Melo Neto, por exemplo? Ou em outra possível chave de leitura, Manoel de Barros? Seja como for, Paixão nos mostra como a apresentação de um “novo” poeta é também um acontecimento no mundo da poesia, acontecimento que mobiliza poeta, tradutor, crítico e leitor: “Que a poesia de Cheng aconteça, sob os olhos do leitor, pura como a água (p.112; grifo meu).

A todas essas vozes e perspectivas, acrescentemos, para encerrar, uma última: a voz do poeta Fernando Paixão, que se insinua entre as frases do crítico ao longo de toda a coletânea e se revela de vez nas duas entrevistas que constam da parte final do livro. Afirmando a irredutibilidade do poético ao intelecto, relegado pelo poeta à “segunda dimensão [da] matéria original” (p.144), Paixão faz o elogio da emoção como centro irradiador de sua poética. Como o crítico, o poeta também fala em “ato poético”, acontecimento que une homens e anjos decaídos no mesmo “círculo da imperfeição” (p.146), no enfrentamento moderno do caos, da violência, da distopia. Penso que o livro de Paixão como um todo busca iluminar justamente a eternidade fugaz dessa irrupção que se inscreve no tempo para superá-lo e curá-lo momentaneamente, eternidade “comprimida no instante vertical de alguns poemas”, utopia poética desde sempre e para sempre perseguida pelo poeta, mas também pelo crítico e por todo leitor de poesia.

Referências

BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1970.
_______. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix; Edusp, 1977.
_______. A interpretação da obra literária. In: ___. Céu, inferno. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003.
PAIXÃO, F. Acontecimento da poesia. São Paulo: Illuminuras, 2019.
PAZ, O. A outra voz. Trad. Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1993.
Revista Estudos Avançados

A sociologia enraizada





Autor de uma vasta obra, José de Souza Martins é um sociólogo inquietante e inspirador. Percorrendo sua trajetória cinquentenária de pesquisas e incursões Brasil adentro, rapidamente encontramos um inesgotável apetite pelos mistérios de nossa vida social. Sua carreira recebe, agora, o devido crédito no livro A sociologia enraizada de José de Souza Martins, organizado pela professora livre-docente Fraya Frehse, ex-aluna e colega de Martins na Universidade de São Paulo (USP).


Incorporando, em meio a novidades textuais específicas, reflexões e peças musicais trazidas a público cinco anos antes numa Jornada Internacional,1 também organizada por Frehse, o livro aqui em foco foi lançado por ocasião do octogésimo aniversário de Martins. Trata-se, como afirma a organizadora na “Introdução”, de uma “Festschrift” (p.13), antologia celebrativa historicamente própria do cenário acadêmico alemão que pretende avaliar criticamente a obra de um cientista de destaque em sua área de atuação, por ocasião de efemérides especiais de sua trajetória de vida. De fato, o clima festivo pode ser observado já na “orelha” do livro, escrita por Fernando Henrique Cardoso, e no prefácio de Maria Arminda do Nascimento Arruda, que exaltam a homenagem em que se traduz a coletânea. Esta, entretanto, simultaneamente se dedica - como resta claro a partir do título - a apresentar a contribuição teórico-metodológica que Martins vem legando às ciências sociais, em particular àquelas dedicadas à sociedade brasileira. Explicita Frehse na introdução que o que Martins denomina sociologia enraizada busca “enraizar socialmente modos de agir, pensar, sentir, imaginar e viver/vivenciar que impregnam a vida cotidiana e que, pela mediação justamente das contradições da própria vida de todo dia, acabam por revelar, a seu modo, processos históricos mais amplos que movem a sociedade brasileira do passado e do presente - e sinalizam para futuros possíveis” (p.14). Assim, a abordagem pode ser entendida também como aquilo que Florestan Fernandes (1959, p.13) chamou de “método de interpretação”, só que, no caso, forjado nos dilemas teórico-metodológicos postos pela vida social brasileira das últimas cinco a seis décadas. Com efeito, Frehse deixa entrever essa interpretação em sua introdução, explicitando-a posteriormente, numa palestra sobre o livro.2

Em diálogo com essa proposta, os quinze ensaios, o poema, a trilha sonora e as muitas fotografias que compõem o livro estão ali dispostos de modo a, em conjunto, demonstrar a peculiaridade dessa sociologia enraizada (p.13), embora individualmente cada contribuição se centre seja em aspectos teóricos e metodológicos da obra de Martins, seja na trajetória de vida deste. De fato, Frehse entende as quatro partes em que se divide o livro como “momentos (dialéticos)” (p.15), que acabam por evidenciar a tese dela sobre a sociologia enraizada a partir de ângulos diferentes.

Na primeira parte, a organizadora congrega interpretações mais ou menos amplas da obra de Martins, elaboradas pela historiadora Chiara Vangelista e pelos sociólogos Leonilde Medeiros, Zander Navarro, Elide Rugai Bastos e Frehse. Medeiros demonstra como a “sociologia rural” de Martins, em seu curso e desenvolvimento teórico-metodológicos, o conduz a uma interpretação das singularidades do capitalismo brasileiro (p.21-45). Isso reaparece, a seu modo, na contribuição de Bastos, só que em relação à “sociedade brasileira” em geral. Navarro, por sua vez, propõe uma leitura da obra de Martins segundo três “fases” temáticas, embora reconheça uma unidade em seu objeto fundamental: os processos sociais rurais no Brasil, por meio dos quais Martins desenvolveria uma “teoria da sociedade brasileira” (p.87). Já Vangelista explora as inovações suscitadas pela obra de Martins especificamente quanto ao estudo das migrações, o que torna seu ensaio diferente dos demais que compõem essa primeira parte do livro. Enfim, também o trabalho de Frehse apresenta uma particularidade, pois, ao perpassar vasta produção de Martins, identifica ali uma peculiar problematização sociológica do espaço até então desapercebida, no debate sociológico (brasileiro). Vem à tona assim o que se pode entender como uma riqueza ainda inexplorada na obra do autor: uma sociologia do espaço que vai “do território ao corpo e vice-versa”, enfrentando também suas respectivas “margens” (p.115).

Percebemos por tudo isso, nesse bloco do livro, um esforço por apresentar a sociologia enraizada de Martins como interpretação abrangente de natureza dialética acerca de meandros diversos que atravessam a vida cotidiana e a história da sociedade brasileira. A perspectiva é passível de destituir os principais dualismos - rural/urbano, tradicional/moderno, dentre outros - que, segundo o próprio Martins (1978, p.43-82) afirmou certa vez, se fizeram presentes na sociologia desde os primórdios.

A segunda parte da coletânea, que une três sociólogos, propõe um percurso pelos “caminhos” percorridos por Martins em sua obra, seus métodos de interpretação e “investigação” - ainda relembrando Fernandes (1959, p.13). De fato, se a influência da USP, tanto pela mediação da chamada “missão francesa” que a inaugura quanto pela da “escola sociológica de São Paulo” de que tal missão é herdeira, é ressaltada ao longo de todo o livro, ganha espaço aqui, pelo olhar de William Héctor Soto, a leitura original do método dialético de Karl Marx (1818-1883) e de Henri Lefebvre (1901-1991). Por sua vez, o ensaio de Sérgio Adorno volta-se aos caminhos revelados por uma imaginação sociológica sensível aos detalhes da vida social e ao imaginário de populações relegadas ao esquecimento. Já José Machado Pais nos mostra que Martins desvenda o oculto da vida (cotidiana) através de uma “hermenêutica da suspeita”, ciente do hiato entre “o que as pessoas fazem e o que creem fazer” (p.167). Única contribuição dessa parte da antologia sensível à pesquisa de campo que tanto marca a sociologia enraizada de Martins, o ensaio de Pais chama a nossa atenção para as “realidades carentes de interpretação perante a cegueira do olhar” (p.167). Os modos de olhar do sociólogo sugerem uma metodologia forjada na observação “dos detalhes, de coisas aparentemente sem importância, secundárias, julgadas dispensáveis, e que, no entanto, se encontram carregadas de todo um peso de significações” (p.213).

E na terceira parte da antologia, são precisamente esses detalhes, enquanto “fontes” da sociologia enraizada de Martins, que recebem atenção. Com o antropólogo Antonio Motta, descobrimos que, para nosso autor, a morte e os mortos podem servir como “um ponto de partida metodológico e mediação empírica para o entendimento de processos sociais mais complexos ocorridos na sociedade brasileira” (p.186). Das obras de arte funerária que povoam os cemitérios paulistanos às fotografias, que, como retoma o também antropólogo Etienne Samain com base em um livro específico de Martins (2008) sobre a sua própria fotografia, fazem “atravessar o espelho das aparências” (p.209), notamos, respectivamente, a morte em sua relação dialética com a vida; o diálogo constante dos vivos com os mortos; o tempo das coisas e dos homens, em imagens fotográficas que revelam tanto quanto ocultam. Encerra essa parte do livro uma poesia-metonímia que, tal como as fotografias que permeiam as páginas anteriores, permite entrever uma realidade muito maior. “O retrato” esboçado por José Jeremias, colega de Martins no Departamento de Sociologia da USP, oferece ao leitor, partindo dos detalhes ínfimos dos versos, a poesia das imagens (de Martins).

Até aqui, o mosaico de narrativas pode ser bem compreendido pelo leitor segundo o nexo proposto pela organizadora. De fato, as “buscas”, os “caminhos” e as “fontes”, tal como expostos nos onze primeiros capítulos, anunciam conjuntamente uma sociologia bastante original. Já na derradeira parte, um panorama de “impactos” dessa abordagem, se o leitor espera contribuições semelhantes aos ensaios até então percorridos - centrados em leituras de conjunto dos trabalhos de nosso autor -, encontrará antes a pessoa de Martins como professor, orientador e intelectual atuante na luta pela terra nos duros anos do regime militar (1964-1985) e da redemocratização. Os capítulos exaltam a amizade e a inspiração que se construiriam no diálogo profissional e pessoal com Martins. A socióloga Marília Sposito evidencia o seu pioneirismo no estudo da vida cotidiana, que reverberou em sua própria trajetória de pesquisadora na área da educação. Já a antropóloga Margarida Moura nos apresenta, através do Martins-orientador, uma “pessoa de pensar-sentir”. É pessoa também que, nas cartas longas e carinhosas escritas por Martins a outro orientando, o antropólogo Carlos Rodrigues Brandão, se revela um amigo atento e intelectualmente generoso. Assim, a sociologia enraizada que constitui o tema principal do livro acaba por expressar-se à luz de impressões pessoais sobre o nosso autor, num movimento narrativo que, ao se delongar sobre a sua trajetória intelectual e de vida, ressalta o impacto de suas qualidades pessoais - também, a seu modo, “enraizadas” - sobre a trajetória pessoal e intelectual dos autores em questão.

Prosseguindo na leitura, o leitor depara com uma reflexão literária acerca de um conto de Albert Camus dedicada a Martins. Com efeito, se o ensaio de Alfredo Bosi parece divergir de todas contribuições anteriores por se referir a nosso autor tão somente na dedicatória, Arruda bem o justifica em seu “Prefácio”: a socióloga identifica esse longínquo capítulo como “uma espécie de alegoria de conjunto dos textos que compõem o volume” (p.9). Tal caracterização encontrará eco no leitor aberto a outras áreas do conhecimento, além da sociologia.

Todavia, o fato é que a obra e a pessoa de Martins abrigam para a literatura um espaço ainda mais abrangente que o da crítica literária. Em 2015, o sociólogo passou a ocupar a cadeira n.22 da Academia Paulista de Letras, e o poeta Paulo Bomfim partilha com o leitor as boas-vindas que então ofereceu ao novo membro vitalício da instituição, que “vê a vida com olhos de poeta, cérebro de sociólogo, espírito de historiador e inquietação de jornalista” (p.306). E eis que o leitor depara, por fim, com a música caipira de Ivan Vilela, pura poesia da roça, cujas dez faixas dedicadas a Martins podem ser reproduzidas por via digital a partir de um link disponível na última página do livro.

Por tudo isso, o leitor terá em mãos um livro diferenciado em sua proposta. Os capítulos, em conjunto, permitem uma leitura da obra de Martins que transcende a anunciada sociologia enraizada. Pela narrativa sugerida, realiza-se o propósito da organizadora, qual seja: “contribuir de maneira sui generis para a história das ciências sociais no Brasil” (p.13). Em meio às luzes sobre a obra de Martins que são lançadas em cada capítulo, restará da leitura uma compreensão crítica de conjunto (e, como tal, sempre passível de discussão) da sociologia e do sociólogo.

Restará, outrossim, o mistério que se anuncia nas entrelinhas de cada capítulo. A sociologia enraizada de José de Souza Martins nos apresenta a um autor vigoroso, compromissado com as tramas aparentemente mais insignificantes da vida social no Brasil, com os processos escamoteados na consciência fraturada e crítica dos simples. Um livro, portanto, que nos conclama incessantemente ao ofício de decifrar o enigma que é a vida social brasileira. Ao trabalho, portanto!

Referências

FERNANDES, F. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1959.
FREHSE, F. (Org.) A sociologia enraizada de José de Souza Martins. São Paulo: Com-Arte, 2018.
_______. Apresentando A Sociologia Enraizada de José de Souza Martins. In: Apresentando a Sociologia Enraizada de José de Souza Martins, 2019. Palestra apresentada em 7.2.2019 no Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP. São Paulo: Sesc-SP, 2019.
MARTINS, J. de S. Sobre o modo capitalista de pensar. São Paulo: Hucitec, 1978.
_______. José de Souza Martins. São Paulo: Edusp, 2008. (Col. Artistas da USP).

Notas

1
Os vídeos resultantes da Jornada podem ser encontrados disponíveis em: <http://iptv.usp.br/portal/search.action?idFilter=19030&filterType=103>.
2
Cf. a respeito <http://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/atividade/apresentando-a-sociologia-enraizada-de-jose-de-souza-martins>; Acesso em: 26 fev. 2019.
Revista Estudos Avançados

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Uma história social do conhecimento: de Gutemberg a Diderot




Adriane Luisa Rodolpho*

Escola Superior de Teologia — Brasil
BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: de Gutemberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 241 p.

Hoje em dia, quando elaboramos ou lemos a resenha de um livro, poucos se perguntam sobre essa prática. Ora, Peter Burke nos informa — entre outras coisas — que as resenhas surgem no século XVII em revistas como o Journal des Savants (Paris) e a Philosofical Transactions, da Royal Society de Londres, durante a década de 1660. A narrativa de Burke é permeada por informações desse gênero e relatos que tornam a leitura bastante instigante.

Neste seu livro, Peter Burke nos leva a uma viagem pela sociologia do conhecimento através de cidades e épocas diferenciadas. O marco inicial de seu recorte temporal é a invenção da prensa tipográfica por Gutemberg em 1450, símbolo igualmente de uma nova época, a Idade Moderna. A linguagem do autor é didática, apontando para a organização de sua exposição sobre a(s) construção(ões) do conhecimento em seus variados contextos. Um tema amplo como esse é abordado por Burke na forma de pequenos ensaios, e os capítulos da obra organizados em temáticas específicas. As origens desses ensaios são conferências realizadas pelo autor e que resultaram no original publicado em 2000 (A Social History of Knowledge from Gutenberg to Diderot) em Cambridge, onde o autor é professor. Nas suas palavras:

[ ] o livro tenta uma história social informada pela teoria, as teorias "clássicas" de Émile Durkheim e de Max Weber tanto quanto as formulações mais recentes de Foucault e de Bordieu. Os capítulos II e III oferecem uma espécie de sociologia do conhecimento retrospectiva, o capítulo IV, uma geografia do conhecimento, o capítulo V, uma antropologia. O sexto discute a política do conhecimento, o sétimo, sua economia, o oitavo adota uma orientação mais literária, e a coda levanta algumas questões filosóficas. (p. 18-19).

Segundo o recorte de Burke, sua análise estende-se até o século XVIII (Diderot), com o panorama do conhecimento referendado pela Enciclopédia.1 Apesar de circunscrever seu interesse à Europa moderna, Burke trata também de diferentes contextos onde outras formas de imprensa existiam, como a China e o Japão; igualmente o Islã é por vezes evocado, sobretudo no contexto da institucionalização do saber tal como nas madrasas muçulmanas (escolas corânicas junto às mesquitas).

O que interessa a Burke é mais exatamente o que a modernidade entendia à época por conhecimento. Para tal, o contexto histórico é aqui relembrado: difusão da imprensa, descobertas não apenas de novos mundos mas também das ciências e tecnologia, a reforma protestante, as cidades e os circuitos de um saber propriamente acadêmico — "formas dominantes de conhecimento, particularmente aquele possuído pelos intelectuais europeus" (p. 24) — são seguidos e analisados com maestria pelo autor.

Acompanhemos o autor em seus primeiros capítulos. A figura do intelectual e as instituições de produção do conhecimento são seus suportes em sua explanação histórica. Inicialmente uma discussão sobre alguns conceitos se impõe, e Burke é extremamente cuidadoso com relação à utilização dos termos. Para ele, os intelectuais são aqui entendidos como

grupos sociais cujos membros se consideravam "homens de saber" (docti, eruditi, savants, Gelehrten), ou "homens de letras" (literati, hommes de lettres). Neste contexto, lettres quer dizer cultura e não literatura (donde a necessidade do adjetivo em belles-lettres). (p. 26).

Burke retoma as modificações histórico-sociais que delineiam cada vez com mais precisão a "vida de estudos como carreira" (p. 29). A partir dos mosteiros e da instalação das universidades foram se formando grupos de estudiosos leigos e religiosos medievais, que serão cada vez mais requisitados nesse início dos tempos modernos. O número de estudantes nos séculos XVI e XVII aumenta consideravelmente, e os professores universitários distinguem-se de outros grupos. O ideal de autonomia é seguido por inúmeros intelectuais que vão exercer suas funções como membros assalariados de academias ou sociedades científicas. A política igualmente absorve os letrados, e as funções de secretários, bibliotecários, conselheiros são cada vez mais necessárias no contexto de Estados centralizados.2 Criam-se então redes de informações ligando esses grupos de eruditos entre si.

A discussão sobre institucionalização do saber é aprofundada no terceiro capítulo, que versa sobre o papel inovador ou reprodutor do conhecimento. Nele Burke caracteriza a universidade medieval como transmissora de saberes, e as disputas entre diferentes teses seriam a exemplificação disto. Entretanto, em função do contexto singular do início da Idade Moderna Burke retoma três movimentos culturais: o Renascimento, a Revolução Científica e o Iluminismo. O "processo de inovação intelectual" (p. 39) é seguido pelo autor a partir dos humanistas, passando pela "nova filosofia" do século XVII, mecânica ou natural. A pesquisa propriamente dita aparece nessa época, e as instituições de fomento como sociedades e academias terão papel importante no desenvolvimento daquele "processo de inovação cultural". Com a alfabetização e a divulgação da imprensa os locais de encontro de intelectuais ampliam-se, e a discussão toma lugar dentro e fora da universidade.

Assim como o binômio inovadores—guardiães da tradição é analisado por Burke, no quarto capítulo o autor aproxima-se de sua geografia do conhecimento, discutindo o "lugar do conhecimento: centros e periferias". Importa aqui a circulação e a cooperação internacional entre essa rede de letrados, e as cidades vão desempenhar importante papel como locais de encontros e troca de informações. Nas palavras do autor trata-se de: "uma distribuição espacial do conhecimento, dos lugares em que o conhecimento foi descoberto, guardado ou elaborado, e também daqueles para os quais era difundido" (p. 56). O movimento seguido por Burke é o das periferias em direção à Europa, e a centralização do conhecimento em algumas cidades como Paris, Londres e Roma obedece a uma igualmente centralização de poder dos Estados. Da mesma forma o olhar para fora desses limites permite perceber a amplitude dos contatos com outros lugares como o Oriente, por exemplo; entretanto, Burke acentua o aspecto de que o processamento do conhecimento é feito na Europa.3

A classificação e sistematização do conhecimento a partir de categorias culturais européias são objetos do capítulo seguinte, onde o autor aborda "a classificação do conhecimento: currículos, bibliotecas e Enciclopédia". Burke chama esse seu capítulo de antropologia do conhecimento porque, segundo ele, os antropólogos, desde Durkheim, levaram a sério as categorias de classificação de outras e diferentes realidades sociais. Inicialmente, observa-se o ideal do polímata, do sábio exercendo suas competências em variados domínios: história, biologia, matemática, etc.4 O conhecimento geral e as referências ao terrain, campo, domaine são ilustrativas da imagem do intelectual dessa época. A idéia do conhecimento como uma grande árvore cheia de ramificações igualmente traduz a noção da "apresentação da cultura como se fosse natureza" (p. 82), ou seja, a concepção da organização naturalizada de uma ordem classificatória arbitrária. Com o passar do tempo, o ideal do polímata vai cedendo lugar ao do intelectual especializado, e a imagem da árvore do conhecimento cede lugar a outra imagem, abstrata, de sistema. Burke parte então para a análise de três subsistemas: os currículos, as bibliotecas e as enciclopédias.

A noção do conhecimento como algo passível de ser acumulado, melhorado e aperfeiçoado é exemplificada pelo título do livro de Francis Bacon, O Avanço do Conhecimento, de 1605. Sobre esse aspecto, Burke nos diz:

[ ] o ideal acadêmico moderno poderia ser visto como a rotinização dessas aspirações dos séculos XVII e XVIII. A inovação intelectual, mais que a transmissão da tradição, é considerada uma das principais funções das instituições de educação superior e, assim, espera-se que os candidatos aos graus mais elevados façam "contribuições ao conhecimento". (p. 105)

Os "processos de coleta, armazenamento, recuperação, uso e supressão de diferentes tipos de informação" (p. 110) por parte das duas grandes organizações à época — Igreja e Estado — são o objeto do sexto capítulo. Nele o autor aborda a crescente centralização de poder nos Estados e igualmente a de documentos e livros em prédios construídos especificamente para o armazenamento e consulta pública desse material, como arquivos e bibliotecas, nos principais centros urbanos europeus. A burocratização dos Estados, as sucessivas medidas de controle das informações, os mapeamentos, os questionários e relatos de expedições, o surgimento da estatística são alguns fatores analisados por Burke. O autor recheia seu texto de narrativas peculiares, como, por exemplo, quando comenta as reações da população francesa ao censo de 1663: "contar as famílias e gado é escravizar o povo" (p. 127). A censura aos livros era realizada tanto pela Igreja quanto pelos Estados, numa tentativa de evitar a leitura de determinadas obras; nesse sentido as listas de livros que compunham o índex de livros proibidos da Igreja Católica são exemplos.

As relações que a circulação comercial entreteve com o mercado de produção e distribuição do conhecimento são analisadas no sétimo capítulo. Três centros editoriais são escolhidos pelo autor para exemplificar historicamente esses processos de consumo: Veneza para o século XVI, Amsterdã no XVII e Londres no século XVIII. A enorme massa de informações disponíveis não provém exclusivamente de livros, mas igualmente de jornais e revistas. A comercialização das informações vai de par com a noção de informação como mercadoria. Revistas cultas divulgando conhecimentos de tipo acadêmico e outros periódicos circulavam fornecendo pela primeira vez resenhas de livros. As obras de referência, as bibliografias, os dicionários e as enciclopédias igualmente são exemplos do que doravante serão objetos de leitura extensiva: consulta e leitura fracionada. A analogia que o autor usa para esse tipo de leitura na contemporaneidade é a de "surfar pela Internet". Outras modificações surgem igualmente, como a organização em capítulos, notas, índices e sumários.

Os leitores ou consumidores recebem atenção do autor no capítulo oitavo. As modificações na tônica das formas de leitura se contrapõem, e a prática da leitura intensiva — uma obra lida em sua totalidade, do início ao fim — é combinada com a leitura mais superficial e fragmentada. Burke cita os termos utilizados nos títulos de vários livros de referência: "castelo", "compêndio", "corpus", "catálogo", "floresta" ou ainda "tesouro". Outra discussão refere-se à organização da grande massa de livros a serem classificados por tema ou ordem alfabética, cada vez mais freqüente durante o século XVII. Ao final do capítulo Burke traça um paralelo entre as maneiras de ler nos séculos XVI e XVII, a partir do exemplo de Montaigne e de Montesquieu.

A consciência de contradições entre as informações disponíveis é o tema do último capítulo do livro, onde o autor vai discutir os critérios de confiabilidade dos conhecimentos. Para ele a ascensão de ceticismos é um traço marcante dos tempos modernos. O caráter de provisoriedade do conhecimento se traduz mesmo nos títulos dos trabalhos, como os "ensaios". O método geométrico e o empirismo são apresentados como tentativas de contornar o período de 1680 a 1715, conhecido como "a crise da consciência européia", "crise intelectual da reforma" ou ainda, "crise do conhecimento". A idéia que fica é a da necessidade da complementaridade e comunicação entre os intelectuais, já que "o conhecimento universal já não está ao alcance do homem", como dizia o verbete "gens de lettres" da Enciclopédia.

Além de um texto bem estruturado e interessante, a obra de Burke ainda é apresentada com belas gravuras e imagens. Sem dúvida essa é uma obra de interesse para todos aqueles que trabalham com o conhecimento, em suas academias e universidades, pesquisando, lendo ou escrevendo resenhas.

*
Bolsista Capes ProDoc.
1
A
Enciclopédia foi um empreendimento levado a cabo por uma equipe de eruditos, como D'Alembert e Diderot, em 1750. Em formato de verbetes, discorria sobre os conhecimentos teóricos e empíricos disponíveis na época.
2
Também os dirigentes dos Estados — como Filipe II da Espanha — passam a ter uma carga de trabalho burocrático acentuada. Na Suécia, o fim do século XVI foi chamado de época do "poder dos secretários" (p. 30).
3
Como exemplos o autor aponta para a importância das companhias de exploração, como a Companhia das Índias Orientais e Ocidentais.
4
O termo deriva de
Polyhistor, um "guia de conhecimento da época" de Daniel Morhof, 1688 (p. 33, 81).
Revista Horizontes Antropológicos