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quarta-feira, 29 de junho de 2022

Métodos de pesquisa: manual de produção científica



Silvia Regina 
Viodres InoueThais 
Laudares Soares Maia
Koller, SH; Couto, MCPP; Hohendorff, JV. Métodos de pesquisa: manual de produção científica. Porto Alegre: Penso, 2014.


Organizado por Silvia Koller, Maria Clara Couto e Jean Hohendorff, com a colaboração de experientes pesquisadores, o livro Métodos de Pesquisa - Manual de Produção Científica é direcionado a estudantes de graduação, pós-graduação, docentes e pesquisadores que têm o objetivo de escrever e publicar resultados de pesquisas ou revisões de literatura, como, também, o manejo de tempo e gestão de equipes de pesquisa. A experiência profissional dos autores proporciona ao leitor, além dos aspectos técnicos da escrita científica, elementos do contexto atual acadêmico apresentados em doze capítulos, distribuídos em três partes: escrita científica, pôsteres e apresentações orais e administração da vida acadêmica.



Os desafios da escrita científica e sua diferença de outros estilos textuais são explorados no primeiro capítulo. No decorrer do capítulo, os autores discutem e estruturam as etapas que antecedem a preparação do artigo científico e os elementos que o texto deve oferecer para que seja relevante à comunidade científica. Ainda na elucidação de como deve ser escrito o texto, são discutidos a validade científica das referências, o fator de impacto e a escolha da revista onde se pretende publicar. O autor expande as contribuições do campo metodológico encontradas nos manuais de escrita ao incluir esses dois últimos aspectos que permitem ampliar ou limitar a disseminação do conhecimento, o diálogo entre os pares e conferir visibilidade aos pesquisadores e seus projetos.



Nos capítulos dois e três, os autores desmistificam um equívoco comum entre acadêmicos iniciantes: a construção textual da revisão de literatura (como elemento de dissertações e teses), o artigo de revisão de literatura e a revisão sistemática. A revisão de literatura consistiria em avaliações críticas do material já publicado, com finalidade de organizar, integrar e avaliar estudos relevantes sobre o tema escolhido. Na revisão sistemática, os ‘participantes’, como colocado pelos autores, são os estudos, e sua finalidade é sumarizar pesquisas prévias para responder questões, testar hipóteses ou reunir evidências. O emprego de elementos gráficos, como quadros comparativos e trechos de artigos com apontamentos didáticos, são recursos que permitem ao leitor acesso rápido às etapas da revisão de literatura, bases especializadas em revisões sistemáticas e bases de dados. Ao longo do segundo capítulo, com otimismo e sem comprometer o interesse do leitor, o autor aponta os desafios concretos que o leitor (futuro pesquisador) enfrentará na elaboração de um artigo de revisão de literatura, assim como as negativas das revistas para publicação.



A elaboração de artigos empíricos e de resumos é detalhada nos capítulos quatro e cinco. A escolha minuciosa dos periódicos onde se pretende publicar o artigo, seguida da ordem e especificações de cada sessão do texto são acompanhadas de: exemplos das sessões que compõem o manuscrito, exemplos de dados e encadeamento de informações na introdução, e a revisão de literatura. Os exemplos são organizados em caixas de texto com comentários que propiciam, ao leitor, reflexões sobre como introduzir o tema de forma clara e objetiva. Os autores ampliam suas contribuições apresentando ferramentas e técnicas para planejar, escrever, revisar e tornar o artigo com ‘grandes chances de publicação’.



A primeira parte do manual é finalizada com três capítulos: o primeiro dedicado à organização de livros e os demais ao plágio, e, por fim, erros comuns da escrita em língua portuguesa. No capítulo seis, é disponibilizado um guia de perguntas que auxiliam na definição dos capítulos e dos autores e da linguagem a ser utilizada. Para facilitar o contato inicial com potenciais ‘colaboradores’, o capítulo oferece diferentes modelos de carta convite para autores e um modelo de ficha de avaliação dos capítulos. Embora a leitura dos capítulos em ordem aleatória seja plenamente possível, para o leitor que opta pela leitura sequencial do manual, um melhor ordenamento lógico seria obtido com o encerramento da primeira parte do manual com o capítulo ‘Plágio acadêmico’.



Transcendendo as discussões e técnicas da escrita e da publicação, os autores abordam, na segunda e terceira parte do manual, respectivamente: outras modalidades de comunicação acadêmica, a administração do tempo e das atividades acadêmicas e a formação e gestão de grupos de pesquisa. Na segunda parte do manual, o capítulo nove ‘Como preparar um pôster científico’ é um guia de organização do texto, das sessões e aspectos gráficos do pôster científico. Na sequência, a preparação para a apresentação oral e a própria apresentação são conduzidas como habilidades essenciais e modalidade mais elementar de disseminação do conhecimento científico e comunicação entre os pares. Na seção, se encontram: a estrutura da apresentação, os tipos de apresentação e sua adequação a públicos específicos; o manejo das respostas emocionais, como a ansiedade frente à exposição, e a administração da resposta emocional do público para despertar e manter o interesse contínuo. Os dois capítulos oferecem elementos e discussões que permitem ao leitor instrumentalizar-se para apresentações de projetos, versões parciais ou finais de pesquisas, dentre outras modalidades de comunicação e outras modalidades de apresentações orais, como aulas e palestras.



Na terceira parte do manual, os autores dedicam os dois capítulos à administração de atividades de rotina de estudantes e docentes da pós-graduação e gestores de grupos de pesquisa acadêmica, como: reuniões de departamento e de grupos de pesquisa, supervisão de alunos, atividades de ensino, escrita de propostas para editais de pesquisa, execução de pesquisas, escrever artigos e capítulos de livros, revisar artigos para periódicos, preparar palestras, e a formação e gestão de equipes de pesquisa. O tema do último capítulo parte da premissa de que o trabalho científico tem como condição o trabalho em equipe. No capítulo breve, os autores apontam estratégias para delinear o perfil desejável da equipe, captar o aluno e programar as atividades de médio e longo prazo do grupo.



Clareza e objetividade, quadros e esquemas explicativos são adequadamente empregados em todo o manual. O conteúdo dos capítulos é detalhado, oferece um passo a passo para elaboração de diferentes tipos de textos cientificos, orientações essenciais para produção e manejo de apresentação oral e gestão de equipes. O Manual de Produção Científica cumpre o objetivo de fornecer subsídios metodológicos e críticos para pesquisadores iniciantes e mais experientes na produção de manuscritos e comunicações científicas.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

A teoria da justiça de John Rawls e as ações afirmativas: reparar as contingências em direção à igualdade



Alexandre Zawaki 
PazettoNei Antonio Nunes
FORTES, Renivaldo Oliveira. A teoria da justiça de John Rawls e as ações afirmativas: reparar as contingências em direção à igualdade. Porto Alegre: Fi, 2019

Mesmo em nossos dias, com a riqueza do debate interdisciplinar, como também com a mobilização de movimentos sociais diversos, a temática das ações afirmativas pode ainda ser mal interpretada ou considerada controversa, seja pelo preconceito com relação ao seu caráter inclusivo, seja pela falta de conexões teóricas que legitimem tais medidas. Com essa problemática em mente, a obra A teoria da justiça de John Rawls e as ações afirmativas: reparar as contingências em direção à igualdade, de Renivaldo Oliveira Fortes, aborda interdisciplinarmente pontos convergentes entre as ações afirmativas e a teoria da justiça do filósofo estadunidense John Rawls (1921-2002), especialmente a partir da estrutura conceitual presente nas obras Uma teoria da justiça (2008) e O liberalismo político (2011). Assim, Fortes busca fundamentar politicamente as ações afirmativas a partir da teoria da justiça como equidade de Rawls, partindo da hipótese de que os pressupostos filosóficos da teoria rawlsiana endossariam e legitimariam as ações afirmativas.

Introdutoriamente, Fortes oferece ao leitor um panorama geral do livro, em que apresenta um quadro histórico acerca das ações afirmativas, elabora um esboço da teoria da justiça de Rawls, destaca os objetivos da obra e as questões que pretende responder a partir dela, além de expor seus procedimentos metodológicos. Ademais, o autor ressalta que sua pesquisa é motivada pela carência de argumentos utilizados ao se discutir a justificação política das ações afirmativas.

No capítulo inicial, Fortes busca apresentar uma definição das ações afirmativas a partir de um olhar interdisciplinar, dando ênfase às dimensões histórica, jurídica e filosófica. Já nas primeiras linhas, declara seu entendimento das ações afirmativas. Diz o autor: “As ações afirmativas são entendidas como políticas públicas de teor corretivo, idealizadas para preencher a lacuna entre a igualdade formal de oportunidades e a igualdade equitativa de oportunidades” (p. 25).

Em seguida, apresenta uma perspectiva histórica do termo “ação afirmativa”, inicialmente destacando sua origem nos Estados Unidos, em 1961. Aborda então a rápida evolução do termo, que passou a designar também uma forma de incluir grupos sub-representados, objetivando compensar o histórico de injustiças sofridas no passado, como, por exemplo, os casos de negros e mulheres.

A nota conceitual jurídica é iniciada asseverando que as ações afirmativas possuem legitimidade constitucional no Brasil. Em seguida, Fortes trabalha alguns conceitos acerca das ações afirmativas sob a perspectiva de juristas, evidenciando o quão fundamental é assegurar às pessoas que elas sejam capazes de ser o que desejarem, bem como garantir sua participação na sociedade como membros cooperativos que tenham plenos direitos.

O autor inicia a nota conceitual filosófica apresentando outras noções acerca das ações afirmativas, dessa vez sob a ótica de teóricos, ligados ou não a Rawls, que têm se dedicado ao tema. Fortes faz diversas inferências, abordando temas como: a dicotomia entre a discriminação e as ações afirmativas; as diferenças entre ação afirmativa fraca e ação afirmativa forte, bem como a relevância de cada uma sob ponto de vista moral; e a importância das ações afirmativas como dispositivos (políticas públicas) que combatem os diversos tipos de exclusão e injustiças.

O segundo capítulo é dedicado ao escopo teórico-filosófico, descrevendo os aspectos primordiais de uma teoria da justiça como equidade e os princípios de justiça, com destaque para o princípio de diferença.

O autor busca responder se as ações afirmativas podem ser objeto de análise da filosofia política. Para esclarecer essa questão, são discutidos alguns papéis que este campo do saber exerce na vida pública de uma sociedade democrática, levando Fortes a inferir que tais papéis vinculam-se à ideia fundamental de construir uma sociedade formada por cidadãos livres e iguais, em consonância tanto com a teoria rawlsiana quanto com as noções acerca das ações afirmativas.

Em seguida, apresenta-se a teoria da justiça como equidade de Rawls, destacando que essa baseia-se, sobretudo, na ideia de que os cidadãos livres e iguais concordariam em viver sob a ordem de princípios decididos em conjunto (contrato social), capazes de garantir os direitos e as liberdades fundamentais e iguais dos cidadãos. Assim, a partir de um arranjo justo das principais instituições políticas e sociais, constituir-se-ia a “estrutura básica da sociedade”, com a função de superar as desigualdades e injustiças entre os cidadãos, sem suprimir o valor das subjetividades.

Fortes, então, aborda a concepção política de pessoa sob a perspectiva de Rawls. Para o filósofo estadunidense, o cidadão é concebido como livre e igual, portador dos direitos e deveres no exercício da cidadania, em uma relação política com os demais sujeitos. Assim, cada pessoa tem uma inviolabilidade fundada na justiça que não deve ser desconsiderada, ou seja, o indivíduo tem um valor intrínseco, uma dignidade humana que não se deve sobrelevar.

Por fim, apresenta-se a ideia da posição original da teoria rawlsiana, em que, hipoteticamente, seriam discutidos os princípios de justiça sob os quais as pessoas viveriam. Fortes destaca que, para garantir a imparcialidade e a equidade na escolha dos princípios de justiça, Rawls impõe um “véu de ignorância”, a fim de privar as partes de informações mais específicas sobre si mesmas, como cor, gênero, nível educacional e social, etc. Rawls defende que, desse modo, ninguém levaria vantagens, e as partes buscariam um arranjo social que as favoreceria, independentemente da posição social que ocupassem. No entanto, o autor brasileiro enfatiza que a teoria de Rawls não pretende extinguir as diferenças naturais e sociais homogeneizando indivíduos e sociedades, mas que compete às instituições de um Estado bem ordenado reduzir as disparidades.

No terceiro capítulo, é problematizada a relação entre os bens primários e as ações afirmativas. Na teoria de Rawls, a concepção razoável de justiça como equidade encontra-se nos limites da estrutura básica da sociedade. Em outras palavras, está na esfera da justiça social. A partir dessa concepção, Fortes pensa as ações afirmativas como uma questão de justiça social, e propõe que, quando políticas públicas dessa modalidade são asseguradas constitucionalmente, o Estado tem maior capacidade para lidar com as injustiças e os diversos problemas do seu tempo histórico, a exemplo do racismo, intolerância e discriminação.

Na sequência, são discutidos os princípios da justiça que, de acordo com a teoria rawlsiana, seriam escolhidos de forma consensual na posição original, quais sejam: a igual liberdade, a igualdade de oportunidade e o princípio da diferença. Fortes enfatiza este último, articulando suas especificidades com a questão dos menos favorecidos e das ações afirmativas. Na concepção de justiça política de Rawls, os indivíduos não tiram vantagens uns dos outros, uma vez que somente são permitidos benefícios recíprocos. Assim, destacam-se as ações afirmativas como medidas de justiça social que se traduzem em ações de reciprocidade e de fraternidade para com os menos favorecidos, indispensáveis para eliminar privilégios sociais e, por conseguinte, construir uma sociedade efetivamente justa.

Ao final do capítulo, o autor aborda a ideia fundamental do mínimo social, em que problematiza a questão do nível e do tipo de recursos que as pessoas necessitam para viver de modo minimamente decente na sociedade. Salienta a importância de preservar o mínimo social e a igualdade de oportunidades de modo equitativo para garantir a participação dos cidadãos na sociedade, fazendo a ponte entre essa problemática e o modo como as ações afirmativas devem ser conduzidas por um Estado democrático. Por fim, Fortes destaca que, mesmo sendo difícil determinar especificamente o conteúdo do mínimo social, os Estados que buscam garanti-lo, bem como assegurar a igualdade equitativa, podem adotar paliativamente medidas de ações afirmativas, sob a justificativa do ideal da igualdade de oportunidades como meio para alcançar a justiça compensatória.

O quarto capítulo, por sua vez, apresenta os argumentos que apontam para a possibilidade de justificar as ações afirmativas a partir dos princípios de justiça como equidade. Inicialmente, a ideia de bens primários é escrutinada, culminando na seguinte noção: “aquilo de que as pessoas livres e iguais precisam como cidadãs membros de uma sociedade decente” (p. 123). Coerente a essa proposição, o autor argumenta que, satisfeitas as exigências do mínimo social, as medidas de ações afirmativas podem ser compreendidas como formas de promover justiça às vítimas de injustiças históricas.

Entretanto, como a ideia de bens primários de Rawls recebeu críticas de autores importantes, como Martha Nussbaum (2012, 2013) e Amartya Sen (1979, 2011), Fortes não se eximiu de indicá-las em sua obra. Em resumo, Nussbaum (2013) sugere o enfoque nas capacidades como alternativa à concepção de bens primários de Rawls, de modo que os princípios de justiça levem em consideração o que cada pessoa tem em comum com todas as outras. No mesmo sentido, Amartya Sen (1979) defende que a igualdade de capacidades é um fator determinante para a justiça, uma vez que a abordagem de bens primários não considera a diversidade humana. Embora o enfoque analítico proposto no livro seja a teoria de Rawls, percebe-se o esforço em ampliar o debate trazendo perspectivas diferentes no trato das ações afirmativas que sugerem, dentre outras coisas, possíveis limites na própria abordagem rawlsiana.

Na sequência, contudo, Fortes destaca a resposta de Rawls a seus críticos. Para o filósofo estadunidense, em primeiro lugar, a abordagem das capacidades avaliza a visão moral abrangente, ou seja, pressupõe sua aceitação e, por isso, vai contra os exageros do neoliberalismo. Além disso, Rawls problematiza o ato de medir e avaliar as capacidades. Diferentemente de Nussbaum e Sen, Rawls infere que, mesmo que as pessoas não tenham iguais capacidades, ainda têm, por menor grau que seja, as faculdades morais, intelectuais e físicas que lhes permitem participar e colaborar com a sociedade da qual fazem parte. Do mesmo modo, o filósofo destaca que problemas como doenças crônicas e deficiências devem ser de responsabilidade do Estado. Nessa direção, Fortes sublinha que medidas de amparo social são exemplos de ações afirmativas.

O capítulo final busca demonstrar que as ações afirmativas são admitidas pelo princípio de justiça rawlsiano. Para tanto, inicia-se com um diálogo entre Rawls e o teórico Thomas Nagel (2003), que parte da questão sobre quais são as implicações da justiça como equidade na política de ações afirmativas. Desse modo, a partir do resgate de obras de Nagel, Fortes infere que este filósofo reforça a ideia de que, à luz da teoria da justiça como equidade, as ações afirmativas são compatíveis com os princípios de justiça. Mutatis mutandis, Nagel ratificaria as proposições de Rawls acerca das ações afirmativas.

Em seguida, o autor trabalha a ideia das ações afirmativas como medidas necessárias para garantir um sistema fundamentado na igualdade equitativa de oportunidades. Nessa linha, são abordadas questões como a superação do preconceito para com os menos favorecidos ainda presentes na esfera pública, bem como a legitimação das ações afirmativas a partir de uma concepção política de justiça. Defende ainda que sua obra busca, baseada no princípio da igualdade equitativa de oportunidades, justificar a elaboração de leis, políticas e práticas afirmativas que garantam o acesso a educação, cargos e posições aos menos favorecidos, num processo que gere uma ampla inclusão social, econômica e política, ao passo que contribua para superar qualquer forma de preconceito ou discriminação, especialmente de cunho étnico-racial e de gênero.

Nas considerações finais, são apresentados os resultados sobre a hipótese de a ação afirmativa ser compatível com a teoria da justiça como equidade. Fortes salienta que seu livro não tem o objetivo de apresentar um léxico das noções rawlsianas que legitimem, por si só, as ações afirmativas, mas, ao escrutinar o conteúdo dos escritos do filósofo e de outros teóricos que o discutiram, buscar pontos de convergência que possam justificá-las.

Assim sendo, Fortes conclui que as ações afirmativas estão alinhadas aos pressupostos da teoria rawlsiana, contribuindo com a realização do princípio da liberdade, do princípio da igualdade de oportunidades, bem como do princípio da diferença. Para além disso, estão conectadas com o mínimo social e com as noções de bens primários. Desse modo, as ações afirmativas são, segundo as análises propostas no livro, validadas nos princípios de justiça, uma vez que o autor visualizou elementos suficientemente razoáveis para garantir sua legitimidade. Por fim, é destacada a importância do debate acerca das ações afirmativas nas sociedades atuais, do mesmo modo que se defende que essas práticas sociais e institucionais estejam presentes nas democracias constitucionais hodiernas, a fim de garantir às minorias desfavorecidas o acesso a condições minimamente necessárias de dignidade para que possam se desenvolver. E, se pensarmos no atual problema da crescente desigualdade no Brasil e em tantos outros países, o imperativo político da justiça social - gerador das ações afirmativas - é um desafio social e institucional e, concomitantemente, condição sine qua non para a consolidação da vida eticamente sustentável em nosso planeta.

REFERÊNCIAS

FORTES, Renivaldo Oliveira. A teoria da justiça de John Rawls e as ações afirmativas: reparar as contingências em direção à igualdade. Porto Alegre: Fi, 2019.
NAGEL, Thomas. Rawls and liberalism. In: FREEMAN, Samuel (org.). The Cambridge Companion to Rawls. Nova York: Cambridge University Press, 2003. p. 62-85.
NUSSBAUM, Martha Craven. Fronteiras da justiça. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.
NUSSBAUM, Martha Craven. Women and human development. Nova York: Cambridge University Press, 2012. Disponível em: https://genderbudgeting.files.wordpress.com/2012/12/nussbaum_women_capabilityapproach2000.pdf Acesso em: 23 maio 2017.
RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes - Selo Martins, 2008.
SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SEN, Amartya. Equality of what? Palo Alto, CA: Stanford University, 1979. Disponível em: http://tannerlectures.utah.edu/_documents/a-to-z/s/sen80.pdf Acesso em: 21 abr. 2016.
Revista Cadernos de Pesquisa

A cruel pedagogia do vírus



Amanda da Rocha Moura
Maria das Graças Gonçalves Vieira Guerra

SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020. 32p. 978-972-40-8496-1

Escrevendo no momento em que ocorre a crise social e econômica provocada pela pandemia de Covid-19, Boaventura de Sousa Santos busca analisar a forma como os países neoliberais estão lidando com seus impactos. Para tanto, o autor identifica os preceitos que orientam o capitalismo financeiro na atual sociedade e como as desigualdades foram evidenciadas no período de maior tensão do século XXI.

Santos busca estabelecer a ideia de uma crise global presente no decurso estratégico da sociedade capitalista contemporânea. Dessa maneira, a condição de uma normalidade da exceção, como postula, é a percepção de uma crise gerada no capital com intencionalidade ideológica para fins político-dominantes em uma sociedade que utiliza esse dispositivo enquanto mecanismo de dominação econômica; para o autor: “O objectivo da crise permanente é não ser resolvida” (SANTOS, 2020, p. 5-6). Torna-se, assim, a função pela qual se justificam os contínuos cortes nos setores sociais, culminando na acumulação de riqueza.

O segundo conceito trabalhado pelo autor é o de elasticidade social, que se refere aos modos como os sujeitos vivem e estão presentes na sociedade ao longo da história. A lógica do consumo, que foi imposta à sociedade da segunda metade do século XX até a atualidade, pressiona as pessoas à racionalidade econômica hipercapitalista, pautada no princípio de internalização dos mecanismos disciplinares nessa sociedade. Em outros termos, o homem foi instruído ao consumo e ao trabalho de forma a gerar lucro ao grande capital, acreditando que aquele é o estado social ideal e, assim, completa Santos, viu sua rotina sofrer uma grande cisão. Se o capital apreciado na lógica neoliberal moldou a sociedade presente e constringiu investimentos para fins de direitos sociais, a quebra de seu ritmo frenético impôs ao mesmo neoliberalismo a ampla dependência do Estado que tanto negou.

Para Santos, junto dessa longínqua vivência neoliberal que se estabeleceu em bases sólidas estão as relações sociais entre sujeitos de uma elite econômica e oprimidos pelo sistema; se a primeira parcela sente seguridade de vida - por meio de soluções financeiras, apólices e recursos para diversas finalidades, como situa o autor -, o mesmo não se pode dizer para os demais. Entretanto, uma vez dado o estopim de igualdade do ser que vive - a experiência da doença - pelo surgimento da pandemia, a segurança se dissipa e está exposta à fragilidade humana. Mais adiante no seu texto, Santos (2020, p. 21) afirma que “a quarentena não só torna mais visíveis, como reforça a injustiça, a discriminação, a exclusão social e o sofrimento imerecido que elas provocam”.

Se a pandemia exige resposta de emergência, a crise ecológica se mostra irreversível, aponta o autor, mas ambas as situações estão interligadas. Ele atribui tal situação ao modelo de produção iniciado no século XVIII, que utiliza desenfreadamente os recursos naturais sem identificar a capacidade do planeta de se recuperar. Por outro lado, Enrique Leff (2009), na obra Ecologia, capital e cultura: a territorialização da racionalidade ambiental, relaciona essa racionalidade econômica em oposição à racionalidade ambiental; produzimos além do que precisamos, sob a forma de exploração dos sujeitos com vistas a um sistema de lucros que sobrecarrega os ecossistemas, negando as diferenças socioculturais, por meio do processo de massificação da população (conceito bastante presente nas obras de Hannah Arendt) que certamente culminaria em uma queda do capital ou sua reformulação, porque o planeta não suporta a velocidade do desgaste fomentado pelo sistema. “É este o modelo que está hoje a conduzir a humanidade a uma situação de catástrofe ecológica” (SANTOS, 2020, p. 24). Não em percepção ecológica, apenas, pois o termo é parte de um todo, mas é possível compreender que a crise é de cunho ambiental; ou seja, complexa, ampla, afetando todos os setores historicamente constituídos, bem como as estruturas pensadas para a sociedade.

Ambos os autores afirmam que o capitalismo não consegue se prolongar da forma como está estabelecido. Entretanto, na mais recente produção de Santos, é possível identificar a ideia de que o capitalismo financeiro poderá se estabelecer como uma parcela menor dentro de uma estrutura maior, análoga ao capital. E mais, o neoliberalismo não se sustenta por muito tempo, uma vez que todos os países - dentre eles os Estados Unidos, maior representante neoliberal no mundo - tomaram, perante a pandemia, decisão de imediata insuflação do Estado na defesa da saúde e da própria economia.

Dessa forma, é possível compreender que novas maneiras de pensar a condição da vida dos sujeitos podem finalmente se sobrepor à dominação da extrema exploração da lucratividade. Então, parcelas políticas extremistas de direita, que aliam ideologia religiosa a uma prática neoliberal ortodoxa, perderiam força. Conseguem lidar melhor com a crise na saúde países com lógica diferente daquela neoliberalista, afirma Santos. Contudo, a fase crítica economicamente falando será com o fim da pandemia, “a pós-crise será dominada por mais políticas de austeridade e maior degradação dos serviços públicos onde isso ainda for possível” (SANTOS, 2020, p. 25).

Então se evidenciam novas práticas de emergência, no isolamento de tom unificador dos sujeitos e na ação de socorro à economia. Afirma Santos que abrandar os mecanismos de produção trouxe boas notícias aos diversos ecossistemas, apesar do grande impacto financeiro. Por outro lado, se saímos de uma guerra de mercado entre China e Estados Unidos, a crise sanitária evidencia a disputa da narrativa entre formas do comércio internacional.

Trata-se de um tipo de implosão societária daquela que foi estruturada no período após o século XVIII; o mercado torna-se, ao mesmo tempo, fluído e presente em todas as regiões do planeta, enquanto o patriarcado já existente e o colonialismo moldam os sujeitos moral e ideologicamente. Afirma Boaventura de Sousa Santos (2020, p. 12) que “todos os seres humanos são iguais (afirma o capitalismo); mas, como há diferenças naturais entre eles, a igualdade entre os inferiores não pode coincidir com a igualdade entre os superiores (afirmam o colonialismo e o patriarcado)”. Por outro lado, acredita o autor que, enquanto existir o capital, também devem coexistir o colonialismo - que afeta as relações de dominação, em especial dos países em desenvolvimento sul-americanos e africanos -, o patriarcado - que oprime a mulher - e o capacitismo - que exclui o deficiente físico. Somados, esses grupos são aqueles violados historicamente e que o Estado neoliberal não consegue proteger, comenta o autor.

Por seu contexto de exclusão histórica, os grupos do sul, segundo Santos, são os mais afetados nesse contexto de pandemia. Outras grandes vítimas são as mulheres que, majoritariamente, estão na linha de frente do combate ao vírus e, se estão mais expostas a adoecer, afirma o autor, também enfrentam o machismo com o crescente aumento dos índices de violência contra a mulher. “O confinamento das famílias em espaços exíguos e sem saída pode oferecer mais oportunidades para o exercício da violência contra as mulheres (SANTOS, 2020, p. 16).

Já os trabalhadores autônomos e informais, afirma o autor, viram seus rendimentos baixarem vertiginosamente, uma vez que, para muitos, o rendimento provém do ato laboral diário. Somando-se a essa condição a precarização do trabalho nos últimos 40 anos no capital, compreendemos uma dupla opressão para essas pessoas. Em outras palavras, “significa que potencialmente milhões de pessoas não terão dinheiro sequer para acorrer às unidades de saúde se caírem doentes ou para comprar desinfetante para as mãos e sabão” (SANTOS, 2020, p. 17). Para os que trabalham com entrega, o período é diferente, pois colocam-se no atendimento de diversas pessoas e violam a quarentena, mesmo sem querer, aponta o autor. Ambos os sujeitos veem violados os direitos à seguridade alimentar e ao trabalho salubre, seguro e estável.

Assim também encontramos as pessoas que não possuem abrigo, os que moram em situação suburbana - favelas, palafitas, barriadas - em condições precárias de higiene e em grandes aglomerados familiares e, também, os internados nos campos de refugiados; todos eles, antes da pandemia, já encontravam barreira de acesso à saúde. Esses indivíduos buscam o direito à moradia, porém “habitam na cidade sem direito à cidade, já que, vivendo em espaços desurbanizados, não têm acesso às condições urbanas pressupostas pelo direito à cidade” (SANTOS, 2020, p. 18). Sua condição é de quem enfrenta as inseguranças sanitária, alimentar e trabalhista.

Outra ideia imposta na sociedade atual versa sobre a opressão que sofrem os deficientes físicos: se, por um lado, sua condição é reconhecida na sociedade, por outro, a própria sociedade não oferta estrutura suficiente para incluí-los. A última condição de dominação apontada por Santos é a dos idosos; em uma mesma cidade, quem envelhece mais rápido, quem falece mais cedo e quem dispõe de condições de acesso aos recursos médicos? Outro ponto situado pelo autor é o contexto de a crise econômica propiciar o aumento da vida produtiva do sujeito, avançando a idade, pela interferência da ciência, tanto quanto possa contribuir para o lucro do capital. Se Santos fala sobre vida ativa, Foucault analisa a sociedade em que o poder interfere no prolongamento da capacidade produtiva dos humanos - biopolítica.

A questão que se coloca é: qual deve ser o modelo social e econômico suficientemente solidário, igualitário e principalmente democrático pelo qual deva se direcionar o mundo pós-pandemia? Devemos, portanto, pensar em uma “democracia participativa ao nível dos bairros e das comunidades e na educação cívica orientada para a solidariedade e cooperação, e não para o empreendedorismo e competitividade a todo o custo” (SANTOS, 2020, p. 8). Ao considerar soluções de produção e consumo mais adequadas do que aquelas impostas pelo sistema vigente, torna-se imprescindível pensar em uma democracia ambiental, como postula Leff (2009), pautada no respeito às populações autóctones.

Na ideia da democracia está a excepcionalidade da situação pandêmica, do pensamento caótico no contexto de normalidade. Santos volta-se às análises do filósofo Giorgio Agamben, em especial ao conceito de “Estado de exceção” (presente na obra de mesmo nome, publicado na primeira metade do século XX), ou ao momento em que o conjunto jurídico constitucional de determinado país suspende o ordenamento dos direitos do cidadão para defender o próprio Estado. Porém, na própria teoria de Agamben, “teremos de distinguir no futuro não apenas entre Estado democrático e Estado de excepção, mas também entre Estado de excepção democrático e Estado de excepção anti-democrático” (SANTOS, 2020, p. 14), e se há, nessa conjuntura, a exceção de ordenamento democrático. Em uma percepção maior, a situação da pandemia é a exceção das exceções, postula o autor.

A questão que se levanta é: qual o limite do direito à educação na situação da exceção das exceções? Existe educação - principalmente básica - viável em tempos de pandemia? Quais são os limites das tecnologias de informação aplicadas em educação? Os espaços virtuais conseguem abarcar a complexidade de uma sala de aula?

Finalmente, com a falácia do Estado neoliberal, a partir de um histórico de, pelo menos, 40 anos de capital financeiro e crescente precarização dos serviços públicos ofertados, a ideologia que acabou de ser testada mostrou que, além de não atender às particularidades da crise sanitária, também evidencia a desigualdade que culmina do desgaste das políticas públicas de proteção ao sujeito. Dessa maneira, não apenas o Estado ultraliberal de direita é minado, mas a pandemia abre caminhos para repensar todo o sistema produtivo do capital. Até a quais implicações sociais os sujeitos são expostos por uma lógica de dominação total para preservação da lucratividade é a ideia central do texto de Santos, uma vez que o capitalismo, tal qual como conhecemos, está falido.

REFERÊNCIAS

LEFF, Enrique. Ecologia, capital e cultura: a territorialização da racionalidade ambiental. Petrópolis: Vozes, 2009.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020.
Revista Cadernos de Pesquisa

Professor, ensino médio e juventude: entre a didática relacional e a construção de sentidos




MESQUITA, Silvana Soares de Araújo. Professor, ensino médio e juventude: entre a didática relacional e a construção de sentidos. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, Numa, 2018. 239 p

No livro Professor, ensino médio e juventude: entre a didática relacional e a construção de sentidos, Silvana Soares de Araújo Mesquita, professora do Departamento de Educação da PUC-Rio, discute o exercício da docência em uma escola de ensino médio regular que atende a setores populares. A obra foi produzida com base em sua tese de doutorado em Educação, que recebeu o Prêmio Capes de Teses 2017 e o Prêmio CTCH de Teses, do Decanato do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. O livro está organizado em oito capítulos, que incluem a introdução e a conclusão.

Na introdução, apresentam-se as justificativas da pesquisa realizada, os objetivos e as questões que nortearam o trabalho. A autora traz algumas discussões para a contextualização do campo e seus sujeitos, ou seja, o ensino médio no Brasil e os professores e jovens que nele trabalham e estudam. São ressaltadas as políticas educacionais para o ensino médio que vêm ganhando destaque no cenário nacional, em consequência de sua expansão por meio da universalização do ensino fundamental, tais como a Emenda Constitucional n. 59 (BRASIL, 2009)1 e a Lei n. 12.796 (BRASIL, 2013),2 que apontam para a obrigatoriedade e gratuidade desse nível de ensino. Entretanto, também é salientada a problemática que envolve o ensino médio no Brasil: a incapacidade dos sistemas públicos de atenderem à totalidade da população juvenil, o baixo nível de interesse dos jovens por essa escola, o conflito de identidade quanto à função do ensino médio, a ineficácia no que se refere à garantia de superação das desigualdades sociais, entre outros fatores. É destacada, ainda, a Lei n. 13.415 (BRASIL, 2017),3 que instituiu uma nova reforma do ensino médio, considerada pela autora um campo ainda em disputa e sobre o qual torna-se necessária a construção de indicadores que permitam sua melhor compreensão. Com relação aos sujeitos - professores que atuam no ensino médio no Brasil -, são apresentados dados quantitativos do Censo Escolar de 2016, apontando que menos da metade possui formação compatível com a disciplina que leciona. A autora conclui essa parte introdutória assinalando que o objetivo geral da pesquisa foi “compreender as especificidades do trabalho dos professores de ensino médio em suas competências e habilidades, características, funções e ações enquanto profissional responsável por formar jovens diferentes, heterogêneos, diversos para um mundo plural e complexo” (MESQUITA, 2018, p. 23). Assinala ainda que teve como principais eixos as perspectivas dos alunos sobre o ensino e a escola, por meio da indicação dos seus “bons professores”, em diálogo com as ações e concepções dos próprios docentes, identificadas no cotidiano escolar. Por fim, são apresentados brevemente os recursos de pesquisa utilizados e justifica-se a utilização do termo “bom professor”, como categoria nativa trazida pelos alunos que participaram da pesquisa.

O capítulo dois traz uma “revisão da literatura sobre bom professor, desempenho de professores, profissão e formação docente, com destaque para o cenário do ensino médio nas esferas nacional e internacional” (MESQUITA, 2018, p. 29). Tendo como principais referências Dubet (1994, 2002),4 Connell (2010),5 Cortesão (2000),6 Dias (2008),7 Fernandes (2008),8 Maués (2011),9 Bressoux (2003),10 entre outros, a autora discute a polissemia conceitual entre desempenho, competência e eficácia no âmbito do trabalho docente. Com Formosinho, Machado e Oliveira-Formosinho (2010),11 Fernandes (2008),12 Maroy (2002)13 e Lessard, Kamanzi e Larochelle (2010),14 é feita uma abordagem sociológica sobre desempenho docente e desenvolvimento profissional. Mesquita apresenta, ainda, a revisão de literatura acerca das competências para ensinar e dos saberes docentes, valendo-se principalmente dos trabalhos de Tardif (2005)15 e Perrenoud (2001)16 e do conceito de “bom professor” no contexto do ensino médio, recorrendo principalmente a Nogueira, Jesus e Cruz (2013)17 e Gatti (2010).18 Com base nos referenciais teóricos, são destacadas cinco dimensões “que podem contribuir para o bom desempenho dos professores no exercício da docência”: dimensão do conhecimento, dimensão estratégica, dimensão relacional, dimensão motivacional e dimensão profissional, que serviram de base para as análises efetuadas (MESQUITA, 2018, p. 51).

O terceiro capítulo apresenta o contexto social/territorial no qual a escola pesquisada se insere, os critérios de seleção da instituição e a descrição dos instrumentos metodológicos. A pesquisa teve como campo de investigação uma escola pública estadual de ensino médio regular, o que se justifica em virtude de a maioria das matrículas do ensino médio se concentrar nas redes estaduais e na modalidade de ensino médio regular, ou seja, voltada para a formação geral. Assim, a autora inicia por uma abordagem macro, trazendo dados relevantes sobre o ensino médio no Brasil e no estado do Rio de Janeiro e sobre a região onde a escola pesquisada está localizada. Em seguida, é feita uma abordagem micro, trazendo uma descrição minuciosa sobre a escola e seus agentes. Destaca-se que a escolha da escola se deu por três razões iniciais: ser uma escola exclusivamente de ensino médio, de grande porte e diurna, garantindo uma identificação com esse segmento de ensino. Para além dessas características, estabeleceu-se que a escola a ser escolhida deveria ser uma “escola de qualidade, que tivesse prestígio na sua região como lócus de boa formação para os jovens que atendesse” (MESQUITA, 2018, p. 63). Na sequência, a autora apresenta o contexto socioeconômico em que a escola está inserida (região da Baixada Fluminense, com grande densidade demográfica, marcada por fortes desigualdades sociais) e uma descrição detalhada da escola campo, seus agentes e sobre as referências históricas e culturais desse espaço. O capítulo finaliza com a discussão das escolhas metodológicas, destacando que a proposta foi fazer uma integração de instrumentos para a coleta das informações: questionários com professores e estudantes; entrevistas com gestores e professores indicados pelos estudantes com “bons professores”; e observação de aulas desses professores.

O capítulo quatro tem como foco o perfil do professor de ensino médio: desde uma abordagem macro, possibilitada pela análise das informações nacionais, até um enfoque micro, voltado para os docentes da escola pesquisada. A autora discute, com base nos dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais “Anísio Teixeira” (Inep), Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ), Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc-RJ) e Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (Sepe-RJ), as condições do trabalho docente no Brasil, no Rio de Janeiro e na região da Baixada Fluminense. O capítulo caracteriza ainda os docentes que atuam na escola pesquisada, no que se refere a disciplinas lecionadas, jornada de trabalho, número de turmas e alunos com que trabalham, além de abordar algumas diferentes representações e formas de atuar desses professores, em decorrência de fatores como gênero, tempo de serviço e formação. Nessa perspectiva, a autora chama a atenção para uma situação característica desse espaço, que se expressa na divisão do corpo docente em dois grandes grupos, de acordo com o tempo de atuação na escola: os professores novatos, que ingressaram há menos de cinco anos na escola; e os experientes que lá ingressaram há mais tempo.

O capítulo cinco tem como foco a análise das representações dos estudantes sobre o “bom professor”, que apontaram os docentes que foram acompanhados na segunda fase da pesquisa. Assumindo a perspectiva de uma pesquisa sobre o trabalho dos professores baseada no protagonismo dos agentes envolvidos na ação docente, a autora justifica a importância da participação dos alunos nessa investigação. Assim, nesse capítulo, é apresentado o perfil socioeconômico e cultural dos jovens que compõem o corpo discente da escola campo (aproximadamente 2.400 jovens) e também são discutidos os temas da relação com o saber e a escola e os sentidos desta e do conhecimento para esses jovens. No que se refere ao valor do conhecimento, evidenciou-se a existência, nesse espaço, de três grupos distintos de alunos: os que consideram que conhecimentos ensinados não têm significado prático e aplicabilidade no cotidiano, mostrando-se resistentes ou passivos diante do trabalho desenvolvido; os que valorizam os conhecimentos e buscam, por meio da escola, o acesso à universidade; e os que relacionam o conhecimento com as manifestações culturais e artísticas, valorizando especialmente as atividades que aí se inserem. Com relação à função da escola do ensino médio, também se evidenciou a existência de grupos que possuem diferentes interesses: a possibilidade de acesso à universidade e/ou a melhores empregos, como consequência da certificação de conclusão do ensino médio; e a socialização. Entretanto, destaca-se um eixo comum nos depoimentos desses jovens: o papel central dos professores para dar sentido ao ato de aprender. Por fim, o capítulo traz a discussão sobre as dimensões do trabalho docente, apresentadas no segundo capítulo, na perspectiva dos estudantes. Por meio do questionário aplicado e respondido por 341 estudantes, foi possível identificar a relevância dos aspectos relacionais e motivacionais para a indicação dos “bons professores”. O capítulo termina com a apresentação dos caminhos metodológicos para a indicação pelos estudantes dos professores que seriam observados pela pesquisadora e a exposição de algumas de suas características, no que se refere às dimensões do trabalho docente.

O sexto capítulo traz as análises sobre o exercício da docência no ensino médio, com base nas observações das aulas dos “bons professores” indicados pelos estudantes e nas respostas dos docentes aos questionários sobre sua prática pedagógica. A autora busca identificar os fatores que mais influenciam na efetividade do ensino desses professores indicados. Nessa perspectiva, evidenciou-se uma didática marcada pelas relações (sendo a indisciplina considerada a principal dificuldade para a realização do trabalho docente) e o envolvimento do professor - aluno como fator preponderante para o estabelecimento de um clima de aprendizagem. Nesse aspecto, ressaltou-se, ainda, um diálogo importante entre as estratégias didáticas utilizadas e a dimensão relacional do trabalho docente. No que se refere às estratégias de ensino-aprendizagem, a pesquisa constatou que as práticas desses professores são muito semelhantes e aproximam-se de um ensino tradicional. Destacaram-se três fatores que estiveram associados à ação didática desses professores: “interação, formas de tratamento e construção de regras no cotidiano da sala de aula” (MESQUITA, 2018, p. 160). Outros fatores identificados como relevantes para a efetividade do ensino nesses casos foram o papel motivador do professor em relação à aprendizagem dos alunos, a contextualização dos conteúdos selecionados, a otimização do tempo disponível para o ensino, apesar das regulações externas, e o desenvolvimento de um “estilo de ensinar”. Por meio dessas observações da prática docente e dos diferentes estilos de ensinar, a autora conclui que existem pontos comuns, mas também pontos divergentes entre tais práticas, sendo que os professores “não agem unicamente de acordo com um estatuto profissional baseado no pré-estabelecimento de normas norteadoras de condutas. A influência da subjetividade e da experiência de cada um regula fortemente a ação docente” (MESQUITA, 2018, p. 184).

Os desafios e dilemas enfrentados pelos professores do ensino médio são discutidos no sétimo capítulo, com base nas perspectivas dos docentes que participaram da pesquisa. O objetivo é entender o sentido da ação docente do ponto de vista dos próprios professores. Busca-se compreender suas concepções sobre o ensino, sobre a profissão e sobre os alunos para explicar o exercício da docência no ensino médio. O capítulo aborda as concepções desses professores acerca dos objetivos do ensino médio e da função da escola, bem como dos problemas enfrentados. Destaca-se o lugar da experiência no desenvolvimento profissional docente e no “estilo de ensinar” de cada professor. É identificada, ainda, uma satisfação profissional manifestada pelos docentes, apesar do desprestígio social da profissão, pautado no retorno dado pelo desempenho dos alunos. Por meio das discussões, a autora observou uma característica comum entre os “bons professores”: “o reconhecimento da centralidade do seu papel motivador nas escolas de massa e o efeito de suas ações na relação com os jovens”, sendo que suas habilidades foram construídas “pela prática reflexiva, com bases nos saberes da experiência, em diálogo com os conhecimentos adquiridos em seus processos formativos e com a subjetividade de cada docente” (MESQUITA, 2018, p. 211-212).

O capítulo oito traz as conclusões da pesquisa, com uma síntese dos principais temas abordados na obra. Defende-se que as dimensões motivacional e relacional são elementos norteadores da ação docente. Retomando as principais questões discutidas no livro, a autora identifica elementos comuns às aulas bem-sucedidas e reconhecidas pelos alunos como favorecedoras da aprendizagem: a gestão da classe onde predomina a autoridade negociada; a contextualização dos conteúdos de ensino articulados com as realidades dos estudantes; a utilização de estratégias de ensino mais participativas, interativas e com sentido concreto; e a boa gestão do tempo, deixando pouco tempo livre e ocioso no decorrer das aulas. Trata-se de um grupo de professores que valoriza os princípios pedagógicos e didáticos, tem compromisso com os bons resultados dos alunos e demonstra satisfação pela docência. A autora discute, ainda, as concepções didáticas dos professores e a necessidade de a escola garantir tempo e espaço comuns para a reflexão coletiva acerca das práticas de ensino, proporcionando assim condições para o desenvolvimento profissional. Ela defende a tese de que “os professores podem fazer a diferença” e destaca duas características fundamentais ao exercício da docência no ensino médio - “o professor como profissional das interações humanas e o professor como construtor de sentido” (MESQUITA, 2018, p. 222).

Recomendado a todos aqueles que se interessam pelo ensino e pelo trabalho docente, em sua complexidade e importância social, especialmente no ensino médio, o livro Professor, ensino médio e juventude: entre a didática relacional e a construção de sentidos tem potencial para fazer pensar as práticas docentes e os modelos pedagógicos que predominam nesse nível de ensino, bem como as políticas públicas voltadas para a educação dos jovens no Brasil e formação docente, em suas etapas inicial e continuada. A obra traz ainda contribuições importantes para os professores e gestores escolares no que se refere aos conceitos discutidos e às questões que se inscrevem no campo da didática em sala de aula do ensino médio.

REFERÊNCIAS

MESQUITA, Silvana Soares de Araújo. Professor, ensino médio e juventude: entre a didática relacional e a construção de sentidos. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio; Numa, 2018. 239 p.

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Revista Cadernos de Pesquisa

sexta-feira, 2 de abril de 2021

A África Antiga: possibilidades de ensino e pesquisa




Pode a história da África Antiga ser contada através de autores greco-romanos


Can classical authors tell us about Africa’s ancient history?


Rennan Lemos*


* University of Cambridge, Department of Archaeology and Emmanuel College, Cambridge, UK. rdsl3@cam.ac.uk

FURLANI, João Carlos. A África Antiga: possibilidades de ensino e pesquisa. Serra, ES: Milfontes, 2019. 271 p.p.

RESUMO:

O livro coletivo parte do pressuposto de que textos de autores greco-romanos podem ser utilizados como fonte para escrevermos a história da África na Antiguidade. A resenha busca problematizar esse pressuposto, com ênfase na diversidade de experiências humanas complexas, em sua maioria ágrafas, no continente africano na Antiguidade.

Palavras-chave: África; História Antiga; Diversidade cultural


ABSTRACT:

The chapters of this edited volume aim to create historical narratives of Africa in Antiquity based on Classical works. The present review criticises this assumption at the same time it emphasises a diverse range of complex human experiences left out of external textual accounts.

Keywords: Africa; Ancient History; Cultural diversity


Quando começa a história do continente africano? Diante da recente expansão de pesquisas e projetos pedagógicos em história da África no Brasil, sobretudo a partir da promulgação da lei n. 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história da África em escolas do país, o livro coletivo ora resenhado pretende suprir uma lacuna; especificamente, aquela relativa à Antiguidade africana. Para os autores dos diversos capítulos, um problema, identificado logo no início da obra coletiva, no prefácio e no capítulo introdutório, é a predominância de estudos sobre passados africanos mais recentes, em detrimento da Antiguidade. Mas talvez isso se deva simplesmente ao fato de que há maior número de pesquisadores, em departamentos de história e áreas afins no Brasil, dedicados ao estudo de outros recortes cronológicos. Assim, por exemplo, há diversos trabalhos recentes no país sobre a história da África que não ignoram a Antiguidade do continente e, algumas vezes, nem mesmo sua pré-história (ver Macedo, 2008; Costa e Silva, 2011; Macedo, 2014; Souza e Mortari, 2016; Frizzo, 2016; Sagredo, 2017; Vieira, 2017). De qualquer maneira, a publicação de um volume dedicado exclusivamente à Antiguidade da África - ou a certa versão dessa Antiguidade - é, sem sombra de dúvidas, muito pertinente.

O livro coletivo pode ser considerado como um todo coerente, na medida em que é resultado de uma disciplina de pós-graduação ofertada na Universidade Federal do Espírito Santo; portanto, nesta resenha, a obra será abordada como uma unidade, em vez de optar por descrever capítulos individuais. O livro busca, seguindo certa postura pós-colonial, incluir a África em narrativas brasileiras sobre a Antiguidade, com base na identificação do papel ativo de populações africanas capazes de produzir sua própria história, e que foram silenciadas por discursos coloniais antigos e modernos. O volume também busca oferecer subsídios para a integração entre essas pesquisas e o ensino de história da África, embora esse aspecto acabe sendo secundário na obra.

Coletivamente, os capítulos desta obra buscam levar adiante sua proposta com base em documentos textuais produzidos por autores greco-romanos, mesmo que o organizador, no capítulo introdutório, afirme “enganar-se quem acredita que distintos povos, culturas, tradições, línguas, religiões e instituições políticas tenham sido inteiramente normalizadas por uma cultura maior e soberana” (p. 17). Ora, sabemos, por exemplo, que os egípcios do Reino Novo (c. 1550-1070 a.C.) utilizaram amplo aparato textual e iconográfico para, ideologicamente, caracterizar os núbios como bárbaros e inferiores - uma tentativa de justificar o imperialismo e a colonização egípcios da região (Smith, 2003; Anthony, 2016; Vieira, 2018). Ou mesmo César, que, em seus Comentarii de Bello Gallico, utilizou uma série de estratégias discursivas para caracterizar ideologicamente seus oponentes de maneira que seu poderio político pudesse sobressair (Webster, 1996; Riggsby, 2006; Rosa, 2007). Um método como o de Le Bart (1998), que identifica as invariantes do discurso político, pode nos ajudar a descortinar estratégias político-ideológicas que sustentam discursos imperialistas/coloniais que buscam simplificar o “outro”. Para que o livro pudesse cumprir efetivamente sua proposta de escrever uma história da África com base em documentos greco-romanos - alguns escritos por autores clássicos originários do norte da África, porém o que não os fazia menos greco-romanos, uma vez que faziam parte de círculos das elites imperiais, como Apuleio (capítulos 8 e 9)1 - seria preciso que o livro incluísse, seja na introdução geral ou de forma diluída em cada capítulo, uma discussão sobre método. Afinal, é possível abordar contextos africanos na Antiguidade com base em documentos produzidos externamente a esses contextos? Como entender a diversidade sociocultural da África Antiga com base em discursos elaborados por estrangeiros, membros de elites imperiais, com uma visão de civilização que garantia ao “outro” um status inferior e bárbaro? Pode a história da África na Antiguidade ser contada através de textos greco-romanos?

O livro coletivo ora resenhado propõe que sim, é possível escrever uma história da África na Antiguidade com base em fontes clássicas. Porém, ao lado da falta de uma discussão metodológica que explique como tais documentos permitem ao pesquisador abordar contextos socioculturais mais diversos e amplos do que os tratados preconceituosamente por autores clássicos no continente africano, o livro parte de uma visão de civilização que é igualmente excludente de realidades materiais diversas por toda África Antiga. Trata-se de uma visão que é, em grande medida, atrelada a um pressuposto status superior conferido a documentos textuais, garantia de “civilização”, entendida por Ventura (Capítulo 2) como:


Uma sociedade que apresenta, em primeiro lugar, uma organização política formal, que costumamos identificar como Estado, um polo da sociedade que detém o monopólio da coerção física e é responsável pela coordenação de projetos coletivos-construção de monumentos, templos, necrópoles - e pela arrecadação dos excedentes, o que, em geral, pressupõe a existência de um sistema de escrita (p. 23).

Tal definição exclui experiências passadas antigas como as das populações nômades dos desertos ao redor do vale do Nilo no Egito e no Sudão, que estabeleceram redes complexas de interação entre diversos grupos nômades, e entre estes e a população assentada no vale do Nilo (Barnard e Duistermaat, 2012; Weschenfelder, 2014; Manzo, 2017); ou grupos ocupantes de regiões no sul do Sudão, na parte subsaariana da África, cujos sítios arqueológicos, como Jebel Moya, oferecem subsídios para que entendamos as relações entre grupos pastoris, e entre estes e o Estado meroítico (Brass et al., 2018). Contextos como esses são ignorados tanto por documentos clássicos quanto por definições tradicionais de civilização; ao contrário, uma definição mais ampla pode ajudar, em termos teórico-metodológicos, a abordar as inúmeras experiências materiais humanas na África na Antiguidade: “a capacidade das sociedades de formar uma comunidade moral -um campo estendido de trocas e interações -apesar de diferenças étnicas, linguísticas, de crenças ou de filiação territorial (Wengrow, 2018, p. XV; ver igualmente Edwards 2019).

Grandes compêndios como o Cambridge history of Africa (Clark, 1982) e o Oxford handbook of African archaeology (Mitchell, Lane, 2013) concordam que a Antiguidade africana pode ser traçada até mesmo à origem da espécie humana no continente -uma ideia que aparece também no capítulo de Ventura (p. 23). Porém, o foco em civilizações que produziram Estado e escrita, aliado ao corpus documental clássico como base para caracterizar amplamente a África Antiga, talvez seja excessivamente excludente da “incrível diversidade e riqueza das experiências africanas em produção de alimentos, complexidade social, urbanismo, arte, formações estatais e comércio internacional através dos últimos 10.000 anos” (Mitchell, Lane, 2013, p. 3; ver também Costa e Silva, 2011). Dessa maneira, o foco do livro coletivo ora resenhado é restrito, e não é representativo da diversidade sociocultural da África Antiga, seja porque acaba limitando o objeto de estudo ao que pode ser abordado a partir de documentos escritos - produzidos externamente aos contextos abordados - ou devido à própria noção de civilização veiculada no capítulo 2, sobre o Egito Antigo, e que pode ser extrapolada como um todo para a obra coletiva.

Entretanto, isso não quer dizer que a obra não apresente elementos promissores, que abrem caminho para pesquisas interessantes e, ao mesmo tempo, para pensar o potencial educativo do corpus documental escolhido em relação à África. É preciso ter muita cautela ao se empregar documentos textuais clássicos para abordar contextos socioculturais diversos e, em sua maioria, ágrafos, porém não pouco complexos. Esse é um tradicional debate em egiptologia, que por muito tempo utilizou-se de documentação puramente textual e iconográfica - produzida pelas elites egípcias em todos os períodos de sua história - para generalizar regras sociais para toda a população (Kemp, 1984). Ao contrário, hoje em dia, com a escavação de contextos associados às não-elites no Egito e no Sudão (ver Kemp et al., 2013; Spencer, 2014), nossa visão sobre a sociedade egípcia é muito mais diversa e complexa, uma vez que a arqueologia oferece acesso direto a populações mal representadas em textos produzidos por aqueles que as dominaram. A aplicação de dados arqueológicos na abordagem crítica de fontes textuais pode abrir interessantes caminhos de pesquisa, sobretudo quando aliada a perspectivas pós-coloniais (ver Costa e Silva, 2011; Smith, 2010).

Alguns capítulos desta obra seguem por esse caminho. Por exemplo, Carvalho, ao tratar do segundo reino Núbio (Meróe) a partir de Heródoto e Diodoro da Sicília, enfatiza a parcialidade e preconceito de autores clássicos ao descrever costumes na Alta Núbia, sobretudo aqueles relacionados à morte. Em contraste com dados arqueológicos provenientes de escavações em Meróe, à autora foi permitido identificar estratégias discursivas, baseadas no estranhamento dos autores clássicos, para simplificar práticas locais complexas, reveladas pelas escavações. Trata-se de um exercício analítico muito interessante que, caso expandido, pode gerar resultados relevantes. Entretanto, tais resultados dependem da cultura material, que permite aos pesquisadores abordar a diversidade de práticas locais, enquanto fontes textuais tornam-se limitadoras da abordagem da diversidade. Igualmente, Soares deixa claro que os textos clássicos estavam “a serviço de um ideal de civilização, não constituindo, desse modo, uma descrição fidedigna dos hábitos e costumes dos povos africanos” (p. 90).

No geral, vários capítulos mostram possibilidades interessantes de pesquisa, mas que acabam sendo limitadas pela documentação clássica utilizada como base. A obra oferece exercícios e caminhos interessantes de pesquisa, sobretudo ao desafiar os textos clássicos e sua visão deturpada dos contextos dos quais tratam. Porém, isso não é suficiente para se abordar a “África Antiga” em sua complexidade e diversidade. Ao contrário, autores clássicos nos permitem contar a história da África Antiga tal como ela não foi. Dessa maneira, textos se tornam fontes secundárias nas adaptações metodológicas que pesquisadores devem fazer ao abordar inúmeras realidades históricas, em sua maioria ágrafas, na África Antiga. Tal como há muito apontado por Ki-Zerbo (2010) na introdução geral da História geral da África, é impossível entender a história da África, sobretudo na Antiguidade, com base somente em um tipo de documento. Fontes textuais produzidas por sociedades complexas africanas na Antiguidade são raras, com exceção do Egito e, muito posteriormente, da Núbia meroítica. Por mais que os autores do livro ora resenhado tenham apontado para a necessidade de enfatizar o caráter exógeno dos textos clássicos, o resultado, que é dependente de uma noção de civilização que é excludente e da falta de uma discussão metodológica clara, é uma história parcial da África na Antiguidade. Afinal, como já havia dito Costa e Silva no prefácio à primeira edição de A enxada e a lança, “para os povos do norte da África, as paisagens além do Saara e a oeste do Mar Vermelho sempre estiveram distantes e sempre foram exóticas”. O livro ora resenhado consiste numa análise parcial, que não representa a vastíssima história das experiências humanas no passado antigo da África, justamente porque não se pode contar a história da África Antiga com base em autores greco-romanos.




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1Quando mencionados, capítulos específicos seguem minha própria numeração, já que não foram numerados pela editora.
Revista Tempo - UFF

História & Ensino de História




Resenhas História do ensino de História no Brasil: uma retomada plural*

Helenice Aparecida Bastos Rocha

Professora das séries iniciais do Ensino Fundamental do Colégio Pedro II; professora-assistente do DCH da FFP/UERJ; doutoranda do PPGE/UFF. E-mail: helenicerocha@uol.com.br


Thais Nivia de Lima e Fonseca, História & Ensino de História, Belo Horizonte, Autêntica, 2003, 120 p.

História & Ensino de História é o sexto livro da coleção História & Reflexões, da Editora Autêntica, lançado em 2003. Apesar do intervalo entre seu lançamento e a apresentação desta resenha, a obra mantém-se atual por sua qualidade, temática e contribuição à ampla área constituída pela História da Educação, ensino e história do ensino de História. O texto conciso consegue descortinar parte importante da problemática da história do ensino de História no Brasil e trata do tema apresentando o percurso da História como disciplina escolar e sua realização como pesquisa até as últimas décadas do século XX. Por conseguinte, sua leitura é de interesse do amplo público formado por professores e pesquisadores da área.

O acerto do empreendimento somente seria possível a alguém que conhecesse bem o território a ser desvendado. Thais Nivia de Lima e Fonseca, pesquisadora em História da Educação da UFMG, participa de projetos sobre práticas culturais e educativas em diversos períodos, especialmente o colonial. O resultado de suas pesquisas contribui para o adensamento do texto com documentos e sua análise. Na escrita do livro, transita no território interdisciplinar da pesquisa em História e em Educação, cuidando de fontes documentais e preocupando-se com a mediação cultural, seja na escola ou fora dela. A amplitude de sua inserção está indicada no diálogo com um amplo leque de referências bibliográficas.

O livro se divide em quatro capítulos. Já na introdução, Thais anuncia que o ensino de História se insere na problemática da disciplinarização dos conhecimentos, podendo ser abordado a partir de diversos ângulos, o que vai realizar privilegiando a dimensão histórica.

No primeiro capítulo, a autora define a disciplina escolar a partir de referencial amplo e contemporâneo. Esclarece que não irá em busca de "genealogias enganosas" para o ensino de História, endossando advertência de Dominique Julia.1 Procura mostrar que, ao longo do século XX, os estudos sobre as disciplinas escolares estiveram demarcados ora pela Sociologia, ora pela História da Educação. Ainda evidencia a importância da noção de transposição didática aplicada à disciplina escolar História a partir de diversos autores, mostrando pontos de convergência e divergência entre eles. A importância deste saber ou conhecimento histórico escolar específico, que não se confunde com o saber acadêmico, vai orientar o percurso da autora ao longo da obra.

Na breve visão panorâmica acerca dos trabalhos sobre as disciplinas escolares até a década de 1970, há um registro que merece funcionar como alerta para os pesquisadores do ensino de História. É a tendência a enxergar a instituição escolar, as políticas educacionais e o pensamento pedagógico como contextos explicativos privilegiados para os conteúdos e os métodos ensinados nas escolas. A autora diagnostica este movimento vinculado a uma tradição historiográfica que via o Estado como o centro do processo histórico. Sua afirmação nos pode alertar para análises das disciplinas pautadas principalmente ou apenas nas formulações curriculares, em função dos pressupostos pedagógicos ou de políticas públicas.

Na segunda metade deste capítulo, começa a se desenvolver efetivamente a história do ensino da História. Neste sentido, a obra aprofunda o que é apresentado em algumas outras, como no antológico texto de Elza Nadai2 ou nos Parâmetros Curriculares Nacionais.3 Mostra que, na longa duração, a trajetória da História ensinada nas escolas não cor-responde necessariamente à da História como campo do conhecimento, já que a história sagrada e de caráter providencialista ocupou lugar significativo inicialmente nas escolas.

Na seqüência, o texto incorre em um movimento comum às obras do gênero: atribui à história do ensino de História da França um espaço maior do que possivelmente ocupa, ou seja, generaliza para um todo indistinto, europeu talvez, aquilo que é conhecido para esta história, exaustivamente estudada. Diversas pesquisas históricas, como as da própria autora, começam a evidenciar que, na América colonial portuguesa, as coisas não se passaram tal como François Furet afirma em A Oficina da História.4 Estas pesquisas indicam que é mais provocador apontar onde há lacunas ou levantar hipóteses relativas ao ensino da História no Brasil Colonial que assumir para este espaço/tempo uma história por extensão à da França moderna.

No segundo capítulo, a obra analisará a coerência entre as tendências apresentadas anteriormente e as pesquisas atuais sobre o ensino de História, concluindo que elas vêm privilegiando um curto recuo temporal. A maior parte dos estudos (em teses, livros e capítulos) se volta para currículos e programas atuais ou recuados no máximo ao período Vargas, e os confronta com a produção historiográfica, estabelecendo um valor relativo para este ensino.

Por conseguinte, a autora avalia que um enfoque histórico sobre o ensino de História é minoritário nos estudos e nas pesquisas e que muitos deles se sustentam fragilmente nas referências teórico-metodológicas contemporâneas, articulando estas referências de maneira vaga ou contraditória. Nesta crítica, é possível inferir uma contribuição da autora às pesquisas que se constroem no limiar da educação e da história. Para além dos problemas de consistência entre os referenciais teórico-metodológicos e a obra apresentada, os textos que tratam da justaposição ou da oposição entre ensino de História e historiografia muitas vezes produzem um efeito secundário: fortalecem um fosso simbólico entre a produção acadêmica e a escolar. Estabelecem, muitas vezes, sem pesquisar no campo da escola e da sala de aula, como ocorrem as práticas, determinando no discurso e no confronto com a historiografia uma prática inventada na teoria e ignorando que elas precisam ser conhecidas de fato e em sua historicidade.

No capítulo III, a pesquisadora vai tratar do ensino de História no Brasil. Nele, o texto vai coincidir em alguns aspectos com a produção existente, como já citado. Entretanto, busca ir além. Procura pincelar os traços de uma educação escolar antes do século XIX, indo em busca do que se aproximaria, àquela época, de um ensino de História. Sua análise de fontes do período pombalino contribui com a história do ensino da História já mais conhecida. O espaço entre os séculos XVIII e XIX apresenta lacunas que não são da obra e sim da pesquisa da área, ainda a ser feita. A autora procura preencher este espaço com dados contextuais e uma análise que interpreta o pensamento social relativo à educação escolar; como exemplo, a relação que estabelece entre o movimento intelectual do século XIX e a escravidão. Este é um dos territórios abertos ao interesse de pesquisas futuras.

A partir dos anos 30 do século XIX, o texto da autora muito contribui para o que está posto em circulação sobre o tema. Seu texto aprofunda a trilha já aberta, mergulhando em fontes diversas e determinando interessantes relações em livros didáticos como em materiais de ensino, textos de apresentação dos mesmos e a legislação pertinente. Quando chega ao XX, no regime militar, o texto consegue elaborar uma alternativa à apresentação de uma época de ouro anterior a este período de nossa história. Entretanto, chega ao limite do problema apontado pela autora no início do livro. Refiro-me à tendência a apresentar as políticas educacionais e o pensamento pedagógico como única origem para os conteúdos e os métodos ensinados nas escolas. Certamente, havia um Estado autoritário, mas ele não era o único centro do processo histórico de que o ensino de História fazia parte.

Assim, àquela época, o currículo e a legislação que interessavam ao regime militar impunham uma visão de sociedade harmoniosa. Com alguma semelhança, no que se refere à ambição de transformação através de instâncias centrais, os PCNs hoje propõem a formação de uma identidade sem muitos conflitos. E o ensino de História acontece na prática, em planos que se articulam mais ou menos a ideários ou ideologias presentes em propostas curriculares ou legislações de diferentes tempos. Basta perguntarmos a professores que realizam este ensino, como algumas pesquisas já têm feito, a respeito de pelo menos duas dimensões da realidade social: seu conhecimento sobre os documentos oficiais e o uso ou apropriação que conferem às orientações destes documentos. Não é fato novo a apropriação seletiva de orientações didático-pedagógicas, conforme indicam pesquisas da educação.

Caminhando para o final do século XX, a obra aponta a década de 1980 como o momento de elaboração de propostas curriculares ao nível estadual ou municipal, passando a analisar o programa curricular implantado em Minas Gerais, que seria considerado como síntese de expectativas por um ensino de História democrático e participativo. A autora problematiza como as mudanças trazidas pelo modelo mineiro, concretizadas nos livros e na apropriação de professores, substituiu uma teleologia da história por outra, de orientação marxista. A partir desta mudança, a disciplina escolar História teria acabado sem fato e sem sujeito, com categorias por demais abstratas.

Ao final deste capítulo, somos brindados com uma análise ancorada na História Cultural, contribuição da trajetória de pesquisas da autora. Thais articula a análise de livros e festas cívicas, em torno do tema da Inconfidência Mineira e de seu principal herói no imaginário coletivo, Tiradentes. Em período determinado, a autora mostra como as características do evento e do herói variam e até se deslocam de um pólo ao outro, de acordo com o seu ajuste ao interesse de conformação de certa imagem da nação e de seu povo.

De forma semelhante, no último capítulo, Thais faz um exercício de análise a partir do tema da escravidão entre os séculos XVI e XIX. Agora, seu objetivo "é averiguar as formas de apropriação do conhecimento histórico e suas permanências na memória coletiva, por meio de representações reconhecidas como verdades históricas comprovadas". Iniciando pela revisão historiográfica do final do século XX sobre o tema, a autora avalia como limitada a assimilação desta revisão pelo ensino. Realiza então um exame das fontes em livros didáticos do século relativos ao tema, evidenciando a permanência de concepções nas obras e na memória de ex-estudantes. Conclui pela validade de empreendimentos desta natureza em relação a outros temas, períodos e inclusive mídias, assim como registra o efeito de novelas de época na memória de depoentes das pesquisas citadas.

História & Ensino de História extrapola seu título e seu tamanho, passeando por aspectos do ensino de História e de sua pesquisa. Há uma contribuição adicional presente no conjunto da obra: o uso de temas mineiros em seus exemplos e análises, como a Inconfidência e os documentos de época, de um lado, e a análise da proposta curricular de Minas Gerais, de outro. Tendo em vista a concentração de publicações sobre o tema do ensino no pólo Rio de Janeiro–São Paulo, o surgimento de livros de qualidade a partir de outras regiões ou pólos anuncia um bom recomeço para a escrita da história do ensino de História em nosso país. Anuncia uma história que pode ser reescrita de uma perspectiva plural, portanto, mais complexa.

*Resenha recebida em abril de 2006 e aprovada para publicação em junho de 2006.

1 Dominique Julia. "Disciplinas escolares: objetivos, ensino e apropriação", Alice Casemiro Lopes & Elizabeth Macedo (orgs.), Disciplinas e integração curricular: história e políticas, Rio de Janeiro, DP&A, 2002, p.37-71.
2 Elza Nadai, "O Ensino de História no Brasil: trajetória e perspectiva", Revista Brasileira de História, v. 13, n. 25/26, São Paulo, 1993.
3 Brasil, Secretaria de Educação fundamental, Parâmetros Curriculares Nacionais: história/ SEF –Brasília, MEC/SEF, 1998.
4 François Furet, A oficina da História, Lisboa, Gradiva, s/d.
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