Causas perdidas
13/Jun/98
Inácio Araujo
Se a condição de latino-americano já é em si precária, como censurar um trabalho que faz da precariedade seu método? A autora assinala, já no prefácio, que divide as entrevistas de seu livro em três categorias: boas, medianas e medíocres. Todas feitas com urgência jornalística, às vezes aproveitando o único quarto de hora disponível do entrevistado.
Assim, vamos trombando ora com celebridades recentes (como o ator cubano Jorge Perugorría), ora com nomes famosos pela discrição (Eduardo Coutinho), com totens da latinidade (o diretor de fotografia Gabriel Figueroa, Glauber Rocha), e nomes ascendentes, como o argentino Eliseo Subiela ou o mexicano Arturo Ripstein.
Para além do tempo, da morte, da premência, da obscuridade e da fama, o leitor chega ao final deste livro percebendo que sua unidade, antes de ser geográfica ou cinematográfica, está na utopia de uma América Latina soberana. Não se trata de uma introdução ao cinema hispano-americano, esse desconhecido, acrescido de alguns convidados brasileiros (até porque mesmo a definição de uma cinematografia hispano-americana não é assim tão evidente: estariam nessa categoria o chileno Raul Ruiz, de obra francesa, ou o argentino Agresti, que trabalha preferencialmente na Europa?).
Na verdade, o sentido do livro anuncia-se já no primeiro artigo, "Che Guevara no Cinema", que imediatamente coloca o cinema sob a tutela do político ou, mais exatamente, de um político, aquele que mais intensamente sonhou com essa América Latina soberana. Logo em seguida, surge a personagem viva mais importante, Garcia Marquez. O escritor colombiano comparece não só na qualidade de roteirista, mas como amigo de Fidel Castro e presidente da Fundação do Novo Cinema Latino-Americano.
A evocação mágica da memória de Che e a presença internacional de Marquez criam a base política sobre a qual se desenvolve o livro. Dados esses parâmetros, a autora faz seu mergulho no olimpo latino, que comporta os deuses mortos (Figueroa, Glauber, Alea), as figuras tutelares (Nelson Pereira, Jorge Fons), aqueles cujo tempo parece já ter passado (Fernando Solanas), os desconhecidos no Brasil (Francisco Lombardi e outros) etc.
Na medida em que as páginas passam, percebemos, à força de certos mecanismos se repetirem, que "Cineastas..." não é propriamente um livro sobre cinema. É, antes, um romance em que cada entrevista funciona como um capítulo. Na sucessão desses capítulos é que se pode ver melhor a trama que a autora desenvolve: a de uma luta contra o imperialismo ianque, a partir de um ponto de vista privilegiado, o da imagem, setor em que os EUA jogam pesado e não raro de maneira predatória contra qualquer possível concorrente.
Assim, não é de estranhar que cada entrevista, ou capítulo, apresente um personagem às voltas com uma trama que o supera. É o caso de Ricardo Aronovich: fotógrafo argentino, famoso no Brasil desde seu trabalho em "Os Fuzis", de Ruy Guerra. Trocou o Brasil pela França por conta do AI-5 e "foi ficando" na Europa, onde trabalhou com Alain Resnais e Ettore Scola, entre outros. Em 1992, estava há 23 anos na França, escrevia o roteiro de "A Invenção de Morel" e, sobretudo, continuava a sentir-se "um latino-americano".
Aronovich é um nome emblemático, mas não o único a significar as múltiplas vicissitudes que um cineasta latino-americano é chamado a conjurar: a indiferença do público, a precariedade da produção, o esquecimento, as perseguições políticas.
Seria possível ainda falar de Jorge Furtado, talentoso cineasta gaúcho que, por alguma razão misteriosa, nunca passou ao longa. Ou dos cubanos, atualmente sem dinheiro ou negativo para filmar. E por aí vamos. Nem todos os casos apontam para o fracasso. No geral, porém, o quadro é desalentador: Cuba não produz, o Brasil não tem exibição, a Colômbia não tem público, a maioria dos países conta com um mercado interno insuficiente, e os contatos entre as diversas cinematografias são ínfimos.
Daí a confessa precariedade de certas entrevistas não incomodar o leitor. A pressa, os temas abordados mas não desenvolvidos deixam-se ler em outra chave, bem mais fascinante. Porque na verdade a ambição de Maria do Rosário é escrever o romance do sonho latino, que um dia teve Cuba como centro e referência e agora não tem mais nada, a não ser um punhado de imagens desalinhavadas, que nem ao menos formam um conjunto. Não é de estranhar que "Cineastas Latino-Americanos" pareça, às vezes, um melancólico inventário de carreiras truncadas (ou mal começadas) e de filmes imaginados e nunca realizados.
Se insistirmos um pouco mais na idéia deste livro como um romance, será possível atribuir-lhe ainda um gênero, o realismo engajado. A autora não trabalha com a ilusão de que sua utopia possa de fato se implantar. Vê cada filme como uma peça de resistência contra a ditadura da imagem única que os EUA impõem ao continente; trata cada realizador como um Quixote que se opõe ao poder hollywoodiano; descreve uma batalha perdida, mas parte do princípio de que o resultado importa menos que o combate: coloca-se ao lado de seus entrevistados, fecha os olhos ao fato de que o público dificilmente terá acesso aos filmes e de que esse público vê a utopia latina como um anacronismo. Seu livro tem a poesia das causas perdidas, e também a das almas intactas.
Inácio Araujo é crítico de cinema da Folha e autor de "Cinema - O Mundo em Movimento" (Scipione).
Copyright © 1994-1999 Empresa Folha da Manhã S/A
13/Jun/98
Inácio Araujo
Se a condição de latino-americano já é em si precária, como censurar um trabalho que faz da precariedade seu método? A autora assinala, já no prefácio, que divide as entrevistas de seu livro em três categorias: boas, medianas e medíocres. Todas feitas com urgência jornalística, às vezes aproveitando o único quarto de hora disponível do entrevistado.
Assim, vamos trombando ora com celebridades recentes (como o ator cubano Jorge Perugorría), ora com nomes famosos pela discrição (Eduardo Coutinho), com totens da latinidade (o diretor de fotografia Gabriel Figueroa, Glauber Rocha), e nomes ascendentes, como o argentino Eliseo Subiela ou o mexicano Arturo Ripstein.
Para além do tempo, da morte, da premência, da obscuridade e da fama, o leitor chega ao final deste livro percebendo que sua unidade, antes de ser geográfica ou cinematográfica, está na utopia de uma América Latina soberana. Não se trata de uma introdução ao cinema hispano-americano, esse desconhecido, acrescido de alguns convidados brasileiros (até porque mesmo a definição de uma cinematografia hispano-americana não é assim tão evidente: estariam nessa categoria o chileno Raul Ruiz, de obra francesa, ou o argentino Agresti, que trabalha preferencialmente na Europa?).
Na verdade, o sentido do livro anuncia-se já no primeiro artigo, "Che Guevara no Cinema", que imediatamente coloca o cinema sob a tutela do político ou, mais exatamente, de um político, aquele que mais intensamente sonhou com essa América Latina soberana. Logo em seguida, surge a personagem viva mais importante, Garcia Marquez. O escritor colombiano comparece não só na qualidade de roteirista, mas como amigo de Fidel Castro e presidente da Fundação do Novo Cinema Latino-Americano.
A evocação mágica da memória de Che e a presença internacional de Marquez criam a base política sobre a qual se desenvolve o livro. Dados esses parâmetros, a autora faz seu mergulho no olimpo latino, que comporta os deuses mortos (Figueroa, Glauber, Alea), as figuras tutelares (Nelson Pereira, Jorge Fons), aqueles cujo tempo parece já ter passado (Fernando Solanas), os desconhecidos no Brasil (Francisco Lombardi e outros) etc.
Na medida em que as páginas passam, percebemos, à força de certos mecanismos se repetirem, que "Cineastas..." não é propriamente um livro sobre cinema. É, antes, um romance em que cada entrevista funciona como um capítulo. Na sucessão desses capítulos é que se pode ver melhor a trama que a autora desenvolve: a de uma luta contra o imperialismo ianque, a partir de um ponto de vista privilegiado, o da imagem, setor em que os EUA jogam pesado e não raro de maneira predatória contra qualquer possível concorrente.
Assim, não é de estranhar que cada entrevista, ou capítulo, apresente um personagem às voltas com uma trama que o supera. É o caso de Ricardo Aronovich: fotógrafo argentino, famoso no Brasil desde seu trabalho em "Os Fuzis", de Ruy Guerra. Trocou o Brasil pela França por conta do AI-5 e "foi ficando" na Europa, onde trabalhou com Alain Resnais e Ettore Scola, entre outros. Em 1992, estava há 23 anos na França, escrevia o roteiro de "A Invenção de Morel" e, sobretudo, continuava a sentir-se "um latino-americano".
Aronovich é um nome emblemático, mas não o único a significar as múltiplas vicissitudes que um cineasta latino-americano é chamado a conjurar: a indiferença do público, a precariedade da produção, o esquecimento, as perseguições políticas.
Seria possível ainda falar de Jorge Furtado, talentoso cineasta gaúcho que, por alguma razão misteriosa, nunca passou ao longa. Ou dos cubanos, atualmente sem dinheiro ou negativo para filmar. E por aí vamos. Nem todos os casos apontam para o fracasso. No geral, porém, o quadro é desalentador: Cuba não produz, o Brasil não tem exibição, a Colômbia não tem público, a maioria dos países conta com um mercado interno insuficiente, e os contatos entre as diversas cinematografias são ínfimos.
Daí a confessa precariedade de certas entrevistas não incomodar o leitor. A pressa, os temas abordados mas não desenvolvidos deixam-se ler em outra chave, bem mais fascinante. Porque na verdade a ambição de Maria do Rosário é escrever o romance do sonho latino, que um dia teve Cuba como centro e referência e agora não tem mais nada, a não ser um punhado de imagens desalinhavadas, que nem ao menos formam um conjunto. Não é de estranhar que "Cineastas Latino-Americanos" pareça, às vezes, um melancólico inventário de carreiras truncadas (ou mal começadas) e de filmes imaginados e nunca realizados.
Se insistirmos um pouco mais na idéia deste livro como um romance, será possível atribuir-lhe ainda um gênero, o realismo engajado. A autora não trabalha com a ilusão de que sua utopia possa de fato se implantar. Vê cada filme como uma peça de resistência contra a ditadura da imagem única que os EUA impõem ao continente; trata cada realizador como um Quixote que se opõe ao poder hollywoodiano; descreve uma batalha perdida, mas parte do princípio de que o resultado importa menos que o combate: coloca-se ao lado de seus entrevistados, fecha os olhos ao fato de que o público dificilmente terá acesso aos filmes e de que esse público vê a utopia latina como um anacronismo. Seu livro tem a poesia das causas perdidas, e também a das almas intactas.
Inácio Araujo é crítico de cinema da Folha e autor de "Cinema - O Mundo em Movimento" (Scipione).
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