Dissonâncias especulativas
13/Jun/98
Olgaria Matos
Esta coleção de ensaios sobre Adorno propõe, já no título, o que virá ao longo de seu trabalho. É, ao mesmo tempo, a procura de Adorno em transgredir o sentido único de palavras e conceitos. Em vez de procurar consonâncias e harmonias, Rodrigo Duarte prefere mostrar a forma pela qual vocábulos inarticulados, ainda em estado de dicionário, permitem estabelecer o trânsito da consciência finita à determinação histórica, e desta à verdade.
Privilegiando constelações temáticas, da música à ciência, da indústria cultural ao pensamento autônomo, é o próprio estatuto da filosofia que se encontra em questão. No ensaio "Sobre a Relação Atual entre Filosofia e Música" encontram-se "algumas idéias colocadas sobre o relacionamento entre música e linguagem discursiva" que "se mostram extensíveis à problemática do relacionamento entre música e filosofia". Sons inarticulados e palavras cujas conotações ainda oscilam num limiar não suscitam, ainda, as noções do verdadeiro e do falso.
Sons e palavras, quando avulsos, dão a conhecer a desarmonia entre as palavras e as coisas, em sonoridades inconscientes de sua "verdade", verdade misteriosa por ser, a um só tempo, infalível e inverificável: "Um dos elementos diferenciadores mais relevantes da música em relação à linguagem em geral", escreve Rodrigo, "é a inexistência, naquela, de conceitos no sentido estrito do termo. Sua semelhança com a linguagem ocorre, entretanto, por meio de uma espécie de protoconceitos chamados por Adorno de 'vocábulos', elementos não passíveis de definição propriamente dita, e que, no entanto, ganham sentido no seu relacionamento com a totalidade em questão (uma obra musical, por exemplo)".
Estes "vocábulos sonoros" constituem uma fala originária, ou melhor, primordial. Significantes puros, neles se reconhecem o eco de um eco ou o paradoxo de um abismo, sem vertigem, porém. O som originário na música, na filosofia, na poesia é aquele anterior à Torre de Babel, quando sons e palavras são gestos sonoros nos quais os sentidos residem em um ou mais lugares ao mesmo tempo, disseminando associações imprevistas: "Uma evidência cabal da importância da música na concepção adorniana de filosofia encontra-se no desenvolvimento daquela idéia (...) segundo a qual a filosofia deveria se constituir num esforço de dizer o indizível.
Na música encontra-se algo análogo, na medida em que o indizível se encontra de algum modo impresso no transcurso de sua 'quase linguagem', cuja característica principal, a ausência de conceito, é ao mesmo tempo condição e limite para sua manifestação".
Há nisto uma atitude filosófica e política. Filosófica: desafiando a cadência científico-sistemática característica das análises filosóficas, Adorno procura uma modalidade de expressão alternativa, "pós-metódica": "O ensaio suspende ao mesmo tempo", observa Adorno, "o conceito tradicional de método". Isto significa haver uma inequação entre pensamento e realidade. Política: exigência de uma "transconceitualidade" capaz de assegurar alternativas aos estereótipos linguísticos da cultura dominante estandardizada. É assim que Rodrigo Duarte faz intervir a função da "retórica" e a da "mímesis", a partir da decalagem de seus sentidos convencionais.
Nem arte da persuasão, da sedução ou da ilusão; tampouco imitação dolosa: "A alegação favorável à retórica", diz o autor, "deve ser entendida como um posicionamento radical contra a produção sistemática do que já é codificado mediante o uso (corrente) da linguagem".
Quanto à mímesis, evoca a afinidade não-conceitual que o produto subjetivo tem com o seu outro: natureza, tempo, alteridade. A potência mimética da consciência não reproduz passivamente o dado, mas o traz à sua expressão. Nas palavras de Rodrigo: "(A transposição) do homem à natureza que (lhe é externa, ameaçadora e desconhecida) se dá pelo enriquecimento, por parte da subjetividade, dos estímulos recebidos do exterior; é uma espécie de interpretação do dado bruto mediante um processo reflexivo interior". Retórica e mímesis na filosofia é "aquilo que só pode ser pensado na linguagem".
Costuma-se dizer que as palavras foram feitas para a comunicação do pensamento, com o que se as define como interlocução de subjetividades. Quando o som se converte em consoantes e vogais, associando-se umas às outras, o sujeito que lhes vale de suporte revela, no limite, uma "subjetividade sem transcendência" existência anônima e indivisa, já que os limites do eu e do outro não são balizas seguras. Trata-se de intersubjetividade que, kantianamente, prescinde da faculdade de julgar.
O livro "Dialética Negativa" bem poderia reunir o conjunto das reflexões de Adorno, na crítica à teoria tradicional, à ciência necessitarista, à semiformação ou cultura média midiática como também aos "Momentos Musicais". Em ensaios, excursos, fragmentos, aforismos, prismas e máximas morais, um denominador comum: são críticas ao "mundo administrativo por meio de um antimétodo, anti-sistema em sentido correlato à dramaturgia do anti-herói".
Essa atitude intelectual oferece ao leitor o espetáculo de sua meditação. Quer se trate da filosofia, da ciência, da dialética, da arte, uma experiência comum: a lógica da destruição e da ruína. Voltando-se para o fazer musical, Rodrigo indica a presença de uma preocupação que abrange todas as esferas do mundo unidimensionalizado o cânone da ciência (saber que quer ser poder) e a lógica do pior. É assim que o filósofo reconhece, no progresso, a regressão, e nesta, o progresso. Rua de mão dupla, para ela converge a "lógica do pior": "Para mostrar isso, Adorno se vale da contraposição de dois caminhos antagônicos no que se refere ao fazer musical. O primeiro é o que ele chama de 'progresso', encarnado principalmente na figura de Schõnberg. O outro é a 'restauração', representada por Stravinsky (...)", escreve Rodrigo, embora não tenha propriamente sentido "o maniqueísmo de considerar Stravinsky a figura do mal e Schõnberg a do bem, pois todos os caminhos levam de uma forma ou outra ao inferno".
Na dialética do esclarecimento, Rodrigo busca uma outra dialética, a "dialética da razão", não apenas por seu movimento interno de mutação de autonomia em servidão, do iluminismo em mitologia, da razão em irrazão no sentido em que a crítica à razão é o melhor serviço que a razão pode prestar à razão reconciliadora. Ao fim, "o que está realmente em jogo é a caracterização dessa nova maneira de fazer filosofia, que poderia ser descrita como uma espécie de 'desencantamento do conceito' enquanto antídoto da filosofia contra sua própria reificação".
Para Rodrigo, "a solução vislumbrada por Adorno aponta no sentido de uma aproximação da filosofia com as artes radicalizada até o ponto de a própria teoria se tornar estética". Redenção, portanto, do logos sombrio de um mundo sem piedade e sem compaixão o que prepara a reconciliação do homem com a natureza, consigo mesmo e com a história.
Olgaria Chain Féres Matos é professora de filosofia na USP.
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13/Jun/98
Olgaria Matos
Esta coleção de ensaios sobre Adorno propõe, já no título, o que virá ao longo de seu trabalho. É, ao mesmo tempo, a procura de Adorno em transgredir o sentido único de palavras e conceitos. Em vez de procurar consonâncias e harmonias, Rodrigo Duarte prefere mostrar a forma pela qual vocábulos inarticulados, ainda em estado de dicionário, permitem estabelecer o trânsito da consciência finita à determinação histórica, e desta à verdade.
Privilegiando constelações temáticas, da música à ciência, da indústria cultural ao pensamento autônomo, é o próprio estatuto da filosofia que se encontra em questão. No ensaio "Sobre a Relação Atual entre Filosofia e Música" encontram-se "algumas idéias colocadas sobre o relacionamento entre música e linguagem discursiva" que "se mostram extensíveis à problemática do relacionamento entre música e filosofia". Sons inarticulados e palavras cujas conotações ainda oscilam num limiar não suscitam, ainda, as noções do verdadeiro e do falso.
Sons e palavras, quando avulsos, dão a conhecer a desarmonia entre as palavras e as coisas, em sonoridades inconscientes de sua "verdade", verdade misteriosa por ser, a um só tempo, infalível e inverificável: "Um dos elementos diferenciadores mais relevantes da música em relação à linguagem em geral", escreve Rodrigo, "é a inexistência, naquela, de conceitos no sentido estrito do termo. Sua semelhança com a linguagem ocorre, entretanto, por meio de uma espécie de protoconceitos chamados por Adorno de 'vocábulos', elementos não passíveis de definição propriamente dita, e que, no entanto, ganham sentido no seu relacionamento com a totalidade em questão (uma obra musical, por exemplo)".
Estes "vocábulos sonoros" constituem uma fala originária, ou melhor, primordial. Significantes puros, neles se reconhecem o eco de um eco ou o paradoxo de um abismo, sem vertigem, porém. O som originário na música, na filosofia, na poesia é aquele anterior à Torre de Babel, quando sons e palavras são gestos sonoros nos quais os sentidos residem em um ou mais lugares ao mesmo tempo, disseminando associações imprevistas: "Uma evidência cabal da importância da música na concepção adorniana de filosofia encontra-se no desenvolvimento daquela idéia (...) segundo a qual a filosofia deveria se constituir num esforço de dizer o indizível.
Na música encontra-se algo análogo, na medida em que o indizível se encontra de algum modo impresso no transcurso de sua 'quase linguagem', cuja característica principal, a ausência de conceito, é ao mesmo tempo condição e limite para sua manifestação".
Há nisto uma atitude filosófica e política. Filosófica: desafiando a cadência científico-sistemática característica das análises filosóficas, Adorno procura uma modalidade de expressão alternativa, "pós-metódica": "O ensaio suspende ao mesmo tempo", observa Adorno, "o conceito tradicional de método". Isto significa haver uma inequação entre pensamento e realidade. Política: exigência de uma "transconceitualidade" capaz de assegurar alternativas aos estereótipos linguísticos da cultura dominante estandardizada. É assim que Rodrigo Duarte faz intervir a função da "retórica" e a da "mímesis", a partir da decalagem de seus sentidos convencionais.
Nem arte da persuasão, da sedução ou da ilusão; tampouco imitação dolosa: "A alegação favorável à retórica", diz o autor, "deve ser entendida como um posicionamento radical contra a produção sistemática do que já é codificado mediante o uso (corrente) da linguagem".
Quanto à mímesis, evoca a afinidade não-conceitual que o produto subjetivo tem com o seu outro: natureza, tempo, alteridade. A potência mimética da consciência não reproduz passivamente o dado, mas o traz à sua expressão. Nas palavras de Rodrigo: "(A transposição) do homem à natureza que (lhe é externa, ameaçadora e desconhecida) se dá pelo enriquecimento, por parte da subjetividade, dos estímulos recebidos do exterior; é uma espécie de interpretação do dado bruto mediante um processo reflexivo interior". Retórica e mímesis na filosofia é "aquilo que só pode ser pensado na linguagem".
Costuma-se dizer que as palavras foram feitas para a comunicação do pensamento, com o que se as define como interlocução de subjetividades. Quando o som se converte em consoantes e vogais, associando-se umas às outras, o sujeito que lhes vale de suporte revela, no limite, uma "subjetividade sem transcendência" existência anônima e indivisa, já que os limites do eu e do outro não são balizas seguras. Trata-se de intersubjetividade que, kantianamente, prescinde da faculdade de julgar.
O livro "Dialética Negativa" bem poderia reunir o conjunto das reflexões de Adorno, na crítica à teoria tradicional, à ciência necessitarista, à semiformação ou cultura média midiática como também aos "Momentos Musicais". Em ensaios, excursos, fragmentos, aforismos, prismas e máximas morais, um denominador comum: são críticas ao "mundo administrativo por meio de um antimétodo, anti-sistema em sentido correlato à dramaturgia do anti-herói".
Essa atitude intelectual oferece ao leitor o espetáculo de sua meditação. Quer se trate da filosofia, da ciência, da dialética, da arte, uma experiência comum: a lógica da destruição e da ruína. Voltando-se para o fazer musical, Rodrigo indica a presença de uma preocupação que abrange todas as esferas do mundo unidimensionalizado o cânone da ciência (saber que quer ser poder) e a lógica do pior. É assim que o filósofo reconhece, no progresso, a regressão, e nesta, o progresso. Rua de mão dupla, para ela converge a "lógica do pior": "Para mostrar isso, Adorno se vale da contraposição de dois caminhos antagônicos no que se refere ao fazer musical. O primeiro é o que ele chama de 'progresso', encarnado principalmente na figura de Schõnberg. O outro é a 'restauração', representada por Stravinsky (...)", escreve Rodrigo, embora não tenha propriamente sentido "o maniqueísmo de considerar Stravinsky a figura do mal e Schõnberg a do bem, pois todos os caminhos levam de uma forma ou outra ao inferno".
Na dialética do esclarecimento, Rodrigo busca uma outra dialética, a "dialética da razão", não apenas por seu movimento interno de mutação de autonomia em servidão, do iluminismo em mitologia, da razão em irrazão no sentido em que a crítica à razão é o melhor serviço que a razão pode prestar à razão reconciliadora. Ao fim, "o que está realmente em jogo é a caracterização dessa nova maneira de fazer filosofia, que poderia ser descrita como uma espécie de 'desencantamento do conceito' enquanto antídoto da filosofia contra sua própria reificação".
Para Rodrigo, "a solução vislumbrada por Adorno aponta no sentido de uma aproximação da filosofia com as artes radicalizada até o ponto de a própria teoria se tornar estética". Redenção, portanto, do logos sombrio de um mundo sem piedade e sem compaixão o que prepara a reconciliação do homem com a natureza, consigo mesmo e com a história.
Olgaria Chain Féres Matos é professora de filosofia na USP.
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