A revolução antiliberal
11/Jul/98
Tarso Genro
GIOVANNI ARRIGHI
O livro de Arrighi contém um conjunto de ensaios que examinam o desenvolvimento econômico mundial, sobretudo entre o início dos anos 50 e o fim dos anos 80. Investiga "as comunicações horizontais entre os diversos mercados, particularmente as relações centro-periferia e as relações entre os proprietários dos fatores de produção, particularmente as relações capital-trabalho" (Fernando Haddad, prefácio). Não é um livro sobre economia no sentido do conceito dominante, ou seja, um estudo sobre o movimento "puro" da mercadoria e do processo de acumulação, como se este processo não fosse comandado por sujeitos com interesse.
É um livro de economia política, posicionado em relação aos conflitos políticos atuais, que submete, portanto, o seu objeto a um sistema de valores opostos aos antivalores neoliberais.
O próprio modelo analítico adotado na obra de Arrighi é, desde logo, comprometido com uma visão crítica do sistema mundialmente imperante. Ele parte da existência concreta de um "núcleo orgânico" dominante, política e financeiramente; de uma "semiperiferia", que se industrializa e se desenvolve de forma contida, em regra sem desafiar o domínio do "núcleo orgânico"; e de uma "periferia" que necessita existir para que haja drenagem de riquezas e variedade de alternativas para a acumulação daquele "núcleo orgânico".
Este "núcleo orgânico", impelido tanto pela exploração extensiva das classes trabalhadoras nos territórios das suas periferias como pelo desafogamento da pressão das suas classes trabalhadoras, pela "concorrência" dos imigrantes, reproduz crescentemente seu poder e riqueza.
Tanto a sintética "orelha" do livro, escrita por José Luis Fiori, como o extenso prefácio de Haddad ressaltam a originalidade do esforço teórico de Arrighi. Fiori lembra o vínculo das ações políticas do Estado americano para consolidar o atual quadro de desigualdade mundial; Haddad ressalta a dialética da "inovação" capitalista (seja através dos métodos e processos de trabalho, seja por novos instrumentos de alta tecnologia) impulsionada pela cultura produtiva dos países que se cristalizaram como dominantes.
Recolho, das análises de Arrighi, três teses que, entre outras, emergem da sua análise de desenvolvimento econômico mundial. Seleciono as que têm imediata e estreita relação com a atual situação do nosso país. São as teses mais instigantes, acerca de países "semiperiféricos" como o nosso, que têm toda sua estratégia econômica alicerçada no desejo de assumir uma vaga no "primeiro mundo" e, por isso, são bem-comportados aplicadores do receituário neoliberal.
O Brasil de FHC aposta num modelo de desenvolvimento que busca a modernização produtiva "forçada" -vinda de fora-, induzida, por exemplo, pela "abertura" que sucateia o nosso parque industrial de bens de capital, setor cujo fortalecimento nas nossas próprias mãos seria fundamental. Combina esta política com a ausência de um projeto industrial de longo curso que fosse capaz de conectar o país com a economia globalizada e também proteger o seu futuro, com investimentos maciços em pesquisa científico-tecnológica. Assim, o caminho do Brasil, dirigido pelo teórico da dependência, é o caminho da dependência subordinada assumida. É uma relação de cooperação submissa e permanente, como mostra Arrighi, quando disseca as relações do "núcleo orgânico" com as periferias do atual sistema mundial de dominação.
No texto "A Estratificação da Economia Mundial", Arrighi sustenta que a passagem de uma para outra condição -da "semiperiferia" para o "núcleo orgânico", por exemplo- só pode funcionar como exceção à regra, que determina que os países permaneçam na situação estratificada de dependência. No caso brasileiro, o aumento da dependência, os humores do "capital volátil" e o crescente aumento da dívida do Estado indicam que não é possível antever qualquer exceção. O rompimento do círculo infernal -mais dívida, mais política de atração do capital volátil, mais subordinação política- é para o Brasil uma possibilidade remota.
No ensaio "A Desigualdade Mundial da Renda e o Futuro do Socialismo", Arrighi examina o processo de acumulação desigual e a desigualdade na distribuição global da renda. Demonstra que industrialização e desenvolvimento não são necessariamente a "mesma coisa". O uso do equivalente "industrialização/desenvolvimento", para os países pobres, é profundamente equivocado. E isso se dá sobretudo porque "a eficácia da industrialização em distribuir riqueza como um todo declinou com sua expansão geral até que, na média, seus retornos se tornaram negativos". Aqui os "tigres" se tornam "hienas"!
O Brasil pode ser visto como exemplo: uma população cada vez mais pobre e mais doente, uma nação mais insegura e mais tensa, que sucedeu ao modelo do desenvolvimento imposto pela ditadura. As categorias econômicas passam a ter, assim, uma densidade ético-política, pois a economia, em Arrighi, é tratada também como uma ciência "politizada", não somente como equações e cálculos, estatísticas e fórmulas, nas quais o crescimento e o desenvolvimento, como conceitos, não têm dimensões éticas.
Finalmente, no ensaio "A Ilusão do Desenvolvimento", Arrighi estuda, remetendo para o seu texto anterior ("O Longo Século 20"), a reestruturação mundial atual como uma reestruturação da acumulação privada. Ela vai da "expansão material" para a "expansão financeira", como um processo que não é uma deformidade, mas o "resultado normal da acumulação de capital". Nosso país, atualmente, recria o seu processo de dependência e subordinação neste ciclo. Logo, sujeita o seu projeto de desenvolvimento e compatibiliza o Estado a esta necessidade "normal".
Tal opção significa abdicar de um projeto nacional próprio de integração -negativa e positiva na economia globalizada- e subordina o futuro do país ao jogo cruel do capital financeiro: acumulação sem trabalho, concentração de riqueza sem produção e exclusão social sem retorno.
O livro de Arrighi é um consistente estudo da globalização econômica, com visão política inovadora e capacidade de desmistificação da ilusão neoliberal.
Em recente artigo publicado no jornal "El País" (03/5/98, pág.94), o professor Luis de Sebastian, catedrático em economia da Universidade Ramon Lull (Barcelona), lança a seguinte questão para debate: o neoliberalismo é, na verdade, uma "revolução antiliberal" porque, para J.S. Mill e os liberais clássicos, a economia -como política- "contemplava os aspectos da vida social que afetavam as realidades econômicas e eram afetadas por elas" e o "neoliberalismo postula nos processos econômicos, como o da globalização, um determinismo absoluto".
Segundo o professor Sebastian, para os liberais clássicos, era necessário combater os monopólios, enquanto que a forma com que opera a globalização, aceita e estimulada pelos neoliberais, proporciona aquisições e fusões que oligopolizam o mercado e eliminam a concorrência. Os clássicos -lembra o articulista- inventaram a progressividade dos sistemas fiscais como requisitos da eficiência e da equidade; os neoliberais a combatem com a justificativa de que inibe os investimentos.
O livro de Arrighi -seguindo-se à linha de pensamento do ilustre professor catalão- trata, portanto, de como o conservadorismo político, escorado na aparente centralidade das categorias econômicas, se impõe no mundo e afirma, com novos métodos e um conteúdo ainda mais desumano, a velha dominação colonial. Desta feita amparado não só pela força econômica e pela decisão política dos grandes, mas também pelo controle do processo de formação da opinião dos próprios dominados.
Tarso Genro é ex-prefeito de Porto Alegre.
Folha de São Paulo
11/Jul/98
Tarso Genro
GIOVANNI ARRIGHI
O livro de Arrighi contém um conjunto de ensaios que examinam o desenvolvimento econômico mundial, sobretudo entre o início dos anos 50 e o fim dos anos 80. Investiga "as comunicações horizontais entre os diversos mercados, particularmente as relações centro-periferia e as relações entre os proprietários dos fatores de produção, particularmente as relações capital-trabalho" (Fernando Haddad, prefácio). Não é um livro sobre economia no sentido do conceito dominante, ou seja, um estudo sobre o movimento "puro" da mercadoria e do processo de acumulação, como se este processo não fosse comandado por sujeitos com interesse.
É um livro de economia política, posicionado em relação aos conflitos políticos atuais, que submete, portanto, o seu objeto a um sistema de valores opostos aos antivalores neoliberais.
O próprio modelo analítico adotado na obra de Arrighi é, desde logo, comprometido com uma visão crítica do sistema mundialmente imperante. Ele parte da existência concreta de um "núcleo orgânico" dominante, política e financeiramente; de uma "semiperiferia", que se industrializa e se desenvolve de forma contida, em regra sem desafiar o domínio do "núcleo orgânico"; e de uma "periferia" que necessita existir para que haja drenagem de riquezas e variedade de alternativas para a acumulação daquele "núcleo orgânico".
Este "núcleo orgânico", impelido tanto pela exploração extensiva das classes trabalhadoras nos territórios das suas periferias como pelo desafogamento da pressão das suas classes trabalhadoras, pela "concorrência" dos imigrantes, reproduz crescentemente seu poder e riqueza.
Tanto a sintética "orelha" do livro, escrita por José Luis Fiori, como o extenso prefácio de Haddad ressaltam a originalidade do esforço teórico de Arrighi. Fiori lembra o vínculo das ações políticas do Estado americano para consolidar o atual quadro de desigualdade mundial; Haddad ressalta a dialética da "inovação" capitalista (seja através dos métodos e processos de trabalho, seja por novos instrumentos de alta tecnologia) impulsionada pela cultura produtiva dos países que se cristalizaram como dominantes.
Recolho, das análises de Arrighi, três teses que, entre outras, emergem da sua análise de desenvolvimento econômico mundial. Seleciono as que têm imediata e estreita relação com a atual situação do nosso país. São as teses mais instigantes, acerca de países "semiperiféricos" como o nosso, que têm toda sua estratégia econômica alicerçada no desejo de assumir uma vaga no "primeiro mundo" e, por isso, são bem-comportados aplicadores do receituário neoliberal.
O Brasil de FHC aposta num modelo de desenvolvimento que busca a modernização produtiva "forçada" -vinda de fora-, induzida, por exemplo, pela "abertura" que sucateia o nosso parque industrial de bens de capital, setor cujo fortalecimento nas nossas próprias mãos seria fundamental. Combina esta política com a ausência de um projeto industrial de longo curso que fosse capaz de conectar o país com a economia globalizada e também proteger o seu futuro, com investimentos maciços em pesquisa científico-tecnológica. Assim, o caminho do Brasil, dirigido pelo teórico da dependência, é o caminho da dependência subordinada assumida. É uma relação de cooperação submissa e permanente, como mostra Arrighi, quando disseca as relações do "núcleo orgânico" com as periferias do atual sistema mundial de dominação.
No texto "A Estratificação da Economia Mundial", Arrighi sustenta que a passagem de uma para outra condição -da "semiperiferia" para o "núcleo orgânico", por exemplo- só pode funcionar como exceção à regra, que determina que os países permaneçam na situação estratificada de dependência. No caso brasileiro, o aumento da dependência, os humores do "capital volátil" e o crescente aumento da dívida do Estado indicam que não é possível antever qualquer exceção. O rompimento do círculo infernal -mais dívida, mais política de atração do capital volátil, mais subordinação política- é para o Brasil uma possibilidade remota.
No ensaio "A Desigualdade Mundial da Renda e o Futuro do Socialismo", Arrighi examina o processo de acumulação desigual e a desigualdade na distribuição global da renda. Demonstra que industrialização e desenvolvimento não são necessariamente a "mesma coisa". O uso do equivalente "industrialização/desenvolvimento", para os países pobres, é profundamente equivocado. E isso se dá sobretudo porque "a eficácia da industrialização em distribuir riqueza como um todo declinou com sua expansão geral até que, na média, seus retornos se tornaram negativos". Aqui os "tigres" se tornam "hienas"!
O Brasil pode ser visto como exemplo: uma população cada vez mais pobre e mais doente, uma nação mais insegura e mais tensa, que sucedeu ao modelo do desenvolvimento imposto pela ditadura. As categorias econômicas passam a ter, assim, uma densidade ético-política, pois a economia, em Arrighi, é tratada também como uma ciência "politizada", não somente como equações e cálculos, estatísticas e fórmulas, nas quais o crescimento e o desenvolvimento, como conceitos, não têm dimensões éticas.
Finalmente, no ensaio "A Ilusão do Desenvolvimento", Arrighi estuda, remetendo para o seu texto anterior ("O Longo Século 20"), a reestruturação mundial atual como uma reestruturação da acumulação privada. Ela vai da "expansão material" para a "expansão financeira", como um processo que não é uma deformidade, mas o "resultado normal da acumulação de capital". Nosso país, atualmente, recria o seu processo de dependência e subordinação neste ciclo. Logo, sujeita o seu projeto de desenvolvimento e compatibiliza o Estado a esta necessidade "normal".
Tal opção significa abdicar de um projeto nacional próprio de integração -negativa e positiva na economia globalizada- e subordina o futuro do país ao jogo cruel do capital financeiro: acumulação sem trabalho, concentração de riqueza sem produção e exclusão social sem retorno.
O livro de Arrighi é um consistente estudo da globalização econômica, com visão política inovadora e capacidade de desmistificação da ilusão neoliberal.
Em recente artigo publicado no jornal "El País" (03/5/98, pág.94), o professor Luis de Sebastian, catedrático em economia da Universidade Ramon Lull (Barcelona), lança a seguinte questão para debate: o neoliberalismo é, na verdade, uma "revolução antiliberal" porque, para J.S. Mill e os liberais clássicos, a economia -como política- "contemplava os aspectos da vida social que afetavam as realidades econômicas e eram afetadas por elas" e o "neoliberalismo postula nos processos econômicos, como o da globalização, um determinismo absoluto".
Segundo o professor Sebastian, para os liberais clássicos, era necessário combater os monopólios, enquanto que a forma com que opera a globalização, aceita e estimulada pelos neoliberais, proporciona aquisições e fusões que oligopolizam o mercado e eliminam a concorrência. Os clássicos -lembra o articulista- inventaram a progressividade dos sistemas fiscais como requisitos da eficiência e da equidade; os neoliberais a combatem com a justificativa de que inibe os investimentos.
O livro de Arrighi -seguindo-se à linha de pensamento do ilustre professor catalão- trata, portanto, de como o conservadorismo político, escorado na aparente centralidade das categorias econômicas, se impõe no mundo e afirma, com novos métodos e um conteúdo ainda mais desumano, a velha dominação colonial. Desta feita amparado não só pela força econômica e pela decisão política dos grandes, mas também pelo controle do processo de formação da opinião dos próprios dominados.
Tarso Genro é ex-prefeito de Porto Alegre.
Folha de São Paulo
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