A busca infinita da perfeição
13/Jun/98
Jean-Philippe Chimot
TRADUÇÃO: MARIA DAS GRAÇAS DE SOUZA DO NASCIMENTO
As "Quatro Estações Hartmann" do Museu de Arte de São Paulo estão em Paris. Na exposição "Delacroix, les Dernières Années", nas Galeries Nationales du Grand Palais, elas formam o conjunto mais significativo da última seção da exposição.
Essas quatro telas são excepcionalmente grandes entre os quadros de cavalete do último Delacroix. É também espetacular o consentimento em tratar este tema do tempo cíclico. Ovídio, estes deuses nos quais nem mesmo os gregos acreditavam mais, seus atos, tão definitivos quanto derrisórios. Tudo é melancolia e crueldade: Eurídice morre. Acteão é punido por Diana. Ariane ainda está na tristeza do abandono e Juno reclama com Éolo da destruição de uma frota! As sombras da fábula penetram nas cores da arte.
O inacabamento, nestes últimos anos de Delacroix, nos leva a interrogar sobre o modo de aparição, sobre o estatuto destas obras: pintura que se faz ou que se desfaz? Como os assuntos são aparições (Acteão, Baco) e desaparições (Eurídice), ou os dois (os ventos sobre o mar), a existência plástica associa a plenitude de certas formas e a falta de outras. Crepúsculo dos deuses ou morte da arte?
Em vez de uma exposição monumental como aquela de 1963, preferiu-se montar um buquê de exposições. Se a melhor parte corresponde às pinturas e desenhos dos últimos anos, uma outra ilustra a obra gravada, de maneira extensiva e com aproximações da época muito convincentes: na província, notadamente Rouen e Tours também quiseram servir ao bicentenário.
Contudo, a comemoração, por si só, não pode dar idéias: a memória e o respeito não podem substituir a sensibilidade e a inteligência. No catálogo da exposição do Grand Palais, o título do artigo de Lee Jhonson , "As Últimas Obras, Continuidades e Variações" já tem o ar de um completo lugar-comum; o "Delacroix Visto por Seus Contemporâneos" é um flashback pobre; o artigo consagrado às relações entre "Delacroix e o Estado, os Colecionadores e os Marchands" só é central de um ponto de vista marginal; quanto ao "Delacroix e a América", de Joseph J. Rishel, vê-se que só foi escrito por gentileza diplomática para com os museus norte-americanos, que emprestaram as obras e aguardam a exposição em Filadélfia.
A escolha da apresentação da obra por gêneros e subgêneros não é mais feliz. Querendo encontrar uma solução simples e atribucionista, questões de fundo acabaram ficando pendentes. Agrupar separadamente as últimas obras supõe que o pressentimento da morte traz uma mudança no caráter distintivo do artista: se não for isto, estaremos diante de uma pura complacência biografista.
Separar alegorias e mitologias de inspiração literária é um artifício estéril, na medida em que, de um lado, todos os temas passam ou são passados pela literatura e, de outro, uma boa parte dos temas de extração literária por exemplo os de Byron ou de Goethe estão, nestas décadas, em vias de passar à mitificação com o concurso de Delacroix. A "lição marroquina" poderia, do mesmo modo, ser recitada por "felinos e caças".
Quanto à aspiração religiosa, parece-me que o título leva claramente para uma pista falsa. O exame das obras, dos assuntos e dos procedimentos mostra que, quando Delacroix pinta, não é a religião que o interessa, mas o sofrimento, que o cristianismo lhe convém na medida em que é suscetível de uma recepção que contorna a transcendência. Mesmo quando Delacroix se aproxima de zonas miraculosas, ele não penetra nestas zonas.
O Cristo sobre o lago de Genezaré seis versões na exposição mostra sempre o momento que precede a pacificação milagrosa das águas. Ele não intervém, ele dorme, e nós temos diante dos olhos o espetáculo no limite, chocante de um homem que dorme enquanto a tripulação se esforça para enfrentar a ventania. Delacroix mostra no Cristo um homem sozinho, experimentando provações.
Com o tempo, ele não se queixa de não ter mais idéias, mas frequentemente de não ter mais forças. Apenas a energia o sustenta contra a idade e a doença. Pintar é um combate: talvez seja isto que mais fundamentalmente signifiquem as caças a animais ferozes e os raptos, onde os gestos são raros e como arrancados à força. O par de forças em redemoinho aí é sempre central: atração-repulsão. No coração destes tornados, o entrelaçamento das cores, a anastomose das linhas de força serão os mais difíceis de serem realizados, tornando a mudança inalterável.
Delacroix não procura o impossível: se a arte não é mais um ofício, não é mais o trabalho bem feito que a caracteriza, é a busca infinita da perfeição, tomando, de improviso, regras e receitas.
Quando Delacroix aceita pintar uma réplica de uma tela anterior, geralmente menor do que a original, esta réplica se afasta da primeira, deixando aparecer preocupações diferentes. Como não ser inferior a si mesmo, ser fiel e permanecer livre? O exemplo de "A Tomada de Constantinopla pelos Cruzados" (1852, réplica da tela de 1841) retém a atenção: se bem que a segunda tela seja 15 vezes menor do que a primeira, o grupo de atores da história está recuado, mais reduzido em relação às arquiteturas e à paisagem. O resplandescente grupo dos arrogantes destrutores de Constantinopla está bem próximo deste "miserável pequeno monte de segredos", diria Malraux.
Dando continuidade a uma pintura que foi demasiadamente transformada em discurso, desconfiando da eloquência, Delacroix parece agir como se colocar em cena o desnorteamento (dos vencedores e dos vencidos) exigisse de imediato embaralhar as linhas, manter a agitação dos tons, fazer sentir o perigo da sombra posta sobre a cor remexida. Para o pintor, mesmo o troco da fatalidade é incerto.
As obras posteriores a 1850 são frequentemente menos monumentais, mais opacas quanto ao colorido, por causa da trituração imprevisível das cores: a matéria permanece e a forma se perde. Credo antiplatônico. Delacroix nos faz medir o preço das figuras com o risco de seu apagamento. Enquanto artista que age, Delacroix não é pessimista nem otimista: está por demais ocupado para entregar-se a uma ou outra destas complacências. O contato com as obras do passado é ao mesmo tempo caloroso (excelência) e gelado (elas estão mortas). Para libertar-se à força destes absolutos, é preciso apostar, ou seja, pintar.
Se Delacroix renunciasse a pintar, "eles" ganhariam, os mortos gloriosos. O único meio de conjurar estes fantasmas é manter uma relação com eles, mas esta relação pode ser decepcionante. Continuar é acabar. Fazer recuar a monumentalidade e a forma explícita é tirar da arte a possibilidade de se perpetuar repetindo-se e, por assim dizer, obrigá-la à invenção.
Jean-Philippe Chimot é historiador da arte e professor na Universidade de Paris 1 (Sorbonne-Panthéon).
Tradução de Maria das Graças de Souza do Nascimento.
Copyright © 1994-1999 Empresa Folha da Manhã S/A
13/Jun/98
Jean-Philippe Chimot
TRADUÇÃO: MARIA DAS GRAÇAS DE SOUZA DO NASCIMENTO
As "Quatro Estações Hartmann" do Museu de Arte de São Paulo estão em Paris. Na exposição "Delacroix, les Dernières Années", nas Galeries Nationales du Grand Palais, elas formam o conjunto mais significativo da última seção da exposição.
Essas quatro telas são excepcionalmente grandes entre os quadros de cavalete do último Delacroix. É também espetacular o consentimento em tratar este tema do tempo cíclico. Ovídio, estes deuses nos quais nem mesmo os gregos acreditavam mais, seus atos, tão definitivos quanto derrisórios. Tudo é melancolia e crueldade: Eurídice morre. Acteão é punido por Diana. Ariane ainda está na tristeza do abandono e Juno reclama com Éolo da destruição de uma frota! As sombras da fábula penetram nas cores da arte.
O inacabamento, nestes últimos anos de Delacroix, nos leva a interrogar sobre o modo de aparição, sobre o estatuto destas obras: pintura que se faz ou que se desfaz? Como os assuntos são aparições (Acteão, Baco) e desaparições (Eurídice), ou os dois (os ventos sobre o mar), a existência plástica associa a plenitude de certas formas e a falta de outras. Crepúsculo dos deuses ou morte da arte?
Em vez de uma exposição monumental como aquela de 1963, preferiu-se montar um buquê de exposições. Se a melhor parte corresponde às pinturas e desenhos dos últimos anos, uma outra ilustra a obra gravada, de maneira extensiva e com aproximações da época muito convincentes: na província, notadamente Rouen e Tours também quiseram servir ao bicentenário.
Contudo, a comemoração, por si só, não pode dar idéias: a memória e o respeito não podem substituir a sensibilidade e a inteligência. No catálogo da exposição do Grand Palais, o título do artigo de Lee Jhonson , "As Últimas Obras, Continuidades e Variações" já tem o ar de um completo lugar-comum; o "Delacroix Visto por Seus Contemporâneos" é um flashback pobre; o artigo consagrado às relações entre "Delacroix e o Estado, os Colecionadores e os Marchands" só é central de um ponto de vista marginal; quanto ao "Delacroix e a América", de Joseph J. Rishel, vê-se que só foi escrito por gentileza diplomática para com os museus norte-americanos, que emprestaram as obras e aguardam a exposição em Filadélfia.
A escolha da apresentação da obra por gêneros e subgêneros não é mais feliz. Querendo encontrar uma solução simples e atribucionista, questões de fundo acabaram ficando pendentes. Agrupar separadamente as últimas obras supõe que o pressentimento da morte traz uma mudança no caráter distintivo do artista: se não for isto, estaremos diante de uma pura complacência biografista.
Separar alegorias e mitologias de inspiração literária é um artifício estéril, na medida em que, de um lado, todos os temas passam ou são passados pela literatura e, de outro, uma boa parte dos temas de extração literária por exemplo os de Byron ou de Goethe estão, nestas décadas, em vias de passar à mitificação com o concurso de Delacroix. A "lição marroquina" poderia, do mesmo modo, ser recitada por "felinos e caças".
Quanto à aspiração religiosa, parece-me que o título leva claramente para uma pista falsa. O exame das obras, dos assuntos e dos procedimentos mostra que, quando Delacroix pinta, não é a religião que o interessa, mas o sofrimento, que o cristianismo lhe convém na medida em que é suscetível de uma recepção que contorna a transcendência. Mesmo quando Delacroix se aproxima de zonas miraculosas, ele não penetra nestas zonas.
O Cristo sobre o lago de Genezaré seis versões na exposição mostra sempre o momento que precede a pacificação milagrosa das águas. Ele não intervém, ele dorme, e nós temos diante dos olhos o espetáculo no limite, chocante de um homem que dorme enquanto a tripulação se esforça para enfrentar a ventania. Delacroix mostra no Cristo um homem sozinho, experimentando provações.
Com o tempo, ele não se queixa de não ter mais idéias, mas frequentemente de não ter mais forças. Apenas a energia o sustenta contra a idade e a doença. Pintar é um combate: talvez seja isto que mais fundamentalmente signifiquem as caças a animais ferozes e os raptos, onde os gestos são raros e como arrancados à força. O par de forças em redemoinho aí é sempre central: atração-repulsão. No coração destes tornados, o entrelaçamento das cores, a anastomose das linhas de força serão os mais difíceis de serem realizados, tornando a mudança inalterável.
Delacroix não procura o impossível: se a arte não é mais um ofício, não é mais o trabalho bem feito que a caracteriza, é a busca infinita da perfeição, tomando, de improviso, regras e receitas.
Quando Delacroix aceita pintar uma réplica de uma tela anterior, geralmente menor do que a original, esta réplica se afasta da primeira, deixando aparecer preocupações diferentes. Como não ser inferior a si mesmo, ser fiel e permanecer livre? O exemplo de "A Tomada de Constantinopla pelos Cruzados" (1852, réplica da tela de 1841) retém a atenção: se bem que a segunda tela seja 15 vezes menor do que a primeira, o grupo de atores da história está recuado, mais reduzido em relação às arquiteturas e à paisagem. O resplandescente grupo dos arrogantes destrutores de Constantinopla está bem próximo deste "miserável pequeno monte de segredos", diria Malraux.
Dando continuidade a uma pintura que foi demasiadamente transformada em discurso, desconfiando da eloquência, Delacroix parece agir como se colocar em cena o desnorteamento (dos vencedores e dos vencidos) exigisse de imediato embaralhar as linhas, manter a agitação dos tons, fazer sentir o perigo da sombra posta sobre a cor remexida. Para o pintor, mesmo o troco da fatalidade é incerto.
As obras posteriores a 1850 são frequentemente menos monumentais, mais opacas quanto ao colorido, por causa da trituração imprevisível das cores: a matéria permanece e a forma se perde. Credo antiplatônico. Delacroix nos faz medir o preço das figuras com o risco de seu apagamento. Enquanto artista que age, Delacroix não é pessimista nem otimista: está por demais ocupado para entregar-se a uma ou outra destas complacências. O contato com as obras do passado é ao mesmo tempo caloroso (excelência) e gelado (elas estão mortas). Para libertar-se à força destes absolutos, é preciso apostar, ou seja, pintar.
Se Delacroix renunciasse a pintar, "eles" ganhariam, os mortos gloriosos. O único meio de conjurar estes fantasmas é manter uma relação com eles, mas esta relação pode ser decepcionante. Continuar é acabar. Fazer recuar a monumentalidade e a forma explícita é tirar da arte a possibilidade de se perpetuar repetindo-se e, por assim dizer, obrigá-la à invenção.
Jean-Philippe Chimot é historiador da arte e professor na Universidade de Paris 1 (Sorbonne-Panthéon).
Tradução de Maria das Graças de Souza do Nascimento.
Copyright © 1994-1999 Empresa Folha da Manhã S/A
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