segunda-feira, 21 de março de 2022

O homem que aprendeu o Brasil: a vida de Paulo Rónai



MARTINS, A. C. I. O homem que aprendeu o Brasil: a vida de Paulo Rónai. São Paulo: Todavia, 2020. 384p


A vida de Paulo Rónai, tradutor, crítico literário e educador húngaro, cujo fôlego destinou-se à construção de pontes culturais entre o Brasil e a Europa do século XX, é o assunto do livro O homem que aprendeu o Brasil da escritora e jornalista Ana Cecília Impellizieri Martins (2020). A reconstrução das aventuras (e agruras) que trouxeram o intelectual às terras brasileiras em 3 de março de 1941, bem como de sua trajetória aqui, é fruto de uma pesquisa marcada tanto pela acuidade na análise de um vasto material arquivístico e bibliográfico quanto pelo tensionamento das esferas coletiva e individual nas conjunturas do nazifascismo e do exílio no Brasil em pleno Estado Novo.



Nas palavras de Nora Tausz Rónai,1 arquiteta e escritora, “colaboradora para o resto da vida” de Paulo Rónai, a postura assumida por Ana Cecília Martins (2020, p.15) se traduz em imagem: apreciar a beleza de uma pérola, indagando acerca do tempo e do processo de sua formação.2 A beleza da vida e obra de Rónai surge de uma história de dor, transformada pelo amor às palavras, pela curiosidade genuína para com o outro (sua língua, cultura, sentimento do mundo) e pelas possibilidades de comunicação e compreensão mútua. Interessa à biógrafa demonstrar o “movimento de assimilação no país” (p.12) desse homem “intelectual humanista […], empenhado em sobreviver” (p.15).



Percebe-se a argúcia do olhar investigativo de Ana Cecília Martins em relação ao material do acervo pessoal de Paulo Rónai e de cinco arquivos públicos e nacionais: diários, cartas, manuscritos, publicações, dedicatórias, documentos oficiais e registros de uma rede de contatos tecida no Brasil. A autora buscou familiarizar-se com Rónai pelos vestígios de seus gestos e sua dicção. “As marcas pessoais que Paulo imprimiu em seu diário foram criando códigos que se tornaram aos poucos reconhecíveis. Um evento importante sublinhado; as abreviações decifradas pelo léxico que se repete, assim como os nomes, também abreviados, de personagens de sua órbita profissional e íntima” (p.42). Por isso, ao acompanhar a biografia desse importante tradutor e crítico literário, não veremos tantas menções a “Rónai” quanto ao “Paulo”, essa terceira identidade do intelectual que, em 1928, deixou de usar o nome húngaro Pál para assumir profissionalmente o nome francês Paul e, a partir de 1941, adotar o nome brasileiro Paulo e a nacionalidade correspondente.



Ana Cecília Martins oferece-nos um retrato poliédrico não só do próprio Rónai, mas também do Brasil - socialmente complexo, politicamente ambíguo e, no âmbito cultural, marcado pela colaboração florescente entre artistas e intelectuais brasileiros e estrangeiros, que aqui puderam encontrar abrigo das perseguições nazistas e da Segunda Guerra. Quem deseja conhecer a biografia de Paulo Rónai acaba adentrando outras biografias individuais e coletivas, relevantes no cânone literário brasileiro, e divisa uma troca autêntica entre a cultura brasileira e as tradições europeias representadas pelos intelectuais e artistas de expressão magiar, francesa, alemã e de tantos outros contextos linguísticos. Por isso, conhecer Rónai é aprender o Brasil ao qual ele teve acesso, é conhecer Ribeiro Couto, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Aurélio Buarque de Holanda e João Guimarães Rosa (citando só alguns de seus amigos). A dedicação de Paulo Rónai à literatura, ao trânsito de línguas e culturas, conduziu-o a uma trajetória brilhante neste país, que agora pode ser reconhecida como merece.



O livro não é só um mergulho na vida particular de Paulo Rónai no Brasil, é também uma enriquecedora exposição do contexto cultural, político e social do biografado na Hungria, seu país de origem: seus escritores e cientistas notáveis, o desmembramento do Império Austro-húngaro, as crises oriundas das duas Grandes Guerras e o impacto do nazismo sobre o país. Esse panorama evidencia a tensão entre a contingência política e as ações individuais, observando as consequências diretas daquela na vida de Rónai e sua família. Na Hungria, com as leis antissemitas restringindo o número de judeus no ensino superior (assim como em outros setores), a entrada de Rónai na Universidade não foi definida exclusivamente pela sua capacidade intelectual, mas dependeu também da solidariedade (ou da postura ética) de um colega que lhe cedeu seu próprio lugar devido ao reconhecimento da qualidade do percurso acadêmico de Rónai. Dr. Paul Rónai recebeu a titulação em Filologia e Letras neolatinas, sua formação contou com dois períodos de estudo na Sorbonne e na Aliança Francesa em Paris. Lendo Dom Casmurro em tradução francesa, descobriu Machado de Assis na voz de um tradutor brasileiro expatriado. Essa leitura provocara o impulso inicial do filólogo e professor húngaro em direção ao Brasil, mas foi através da poesia que se deu o encontro definitivo com o português brasileiro.



A relação de Rónai com as línguas e as literaturas que pesquisava parece atravessada ou motivada por uma percepção sinestésica, manifesta no caráter sensual de sua crítica: sentia as palavras, a atmosfera que criam com sua sonoridade, seu ritmo, seu sabor e suas imagens. A novidade e a materialidade do português representaram para Rónai (2014, p.38), “consolado pela interessante experiência linguística”, uma sobrevida em meio aos avanços do nazismo. Em seus escritos, nota-se que suas hipóteses de leitura extrapolam a matéria linguística, dirigindo-se também à pessoa “que se encontra atrás das frases, ambições, objetivos” de um texto (ibidem, p.137). Esse ímpeto levou Rónai a contatar os poetas brasileiros que traduzia, entre eles diplomatas e funcionários públicos ligados ao Ministério da Educação e a órgãos culturais. Rónai trabalhou para difundir suas obras na Hungria, estabeleceu relações cordiais, e isso justificaria sua vinda ao Brasil como mediador cultural. Ao narrar o árduo trâmite burocrático que envolveu o exílio de Rónai, enquanto esse traduzia e lecionava nos liceus de Budapeste e durante o período em que esteve detido num campo concentração, Ana Cecília Martins situa o leitor nos bastidores da política internacional brasileira no Estado Novo, simpático à ideologia nazifascista, com suas leis também antissemitas e adidos, salvo alguns, alinhados ao regime. Rónai, por fim, obteve - com muito custo e aflição - não só um visto, mas uma ocupação profissional na sua área de formação e um formidável círculo intelectual e artístico, onde encontrou amizades que o ampararam e acolheram no país de refúgio.



Interessante seria observar o comentário de Drummond sobre o abrasileiramento de Paulo Rónai em paralelo com o relato deste a respeito de Cecília Meireles. Drummond sugeriu que “os motivos pessoais de angústia que [Rónai] trazia da Europa não afetariam esse abrasileiramento progressivo” (p.137). Embora o poeta tivesse consolado muitas vezes o amigo húngaro, como indica a biógrafa, ele aqui parece elogiar a separação entre as emoções penosas vividas pelo exilado em função do seu desenvolvimento pleno em um novo contexto cultural. Rónai, por sua vez, relata ter encontrado em Cecília Meireles uma empatia rara: “poucos aquilatavam como ela a profundeza do drama individual de cada um de nós [refugiados]. A capacidade requintada de sentir, adivinhar e imaginar levara-a a compreender-nos” (p.133). Esses fragmentos refletem um pouco da delicada situação vivida pelo exilado húngaro com relação à sua dor, à possibilidade de encontrar acolhimento e sua necessidade de integrar-se em um novo local para sobreviver e voltar a viver.



Ana Cecília Martins menciona um comovente gesto de Rónai: ele haveria datilografado para si o conteúdo da carta de despedida do escritor austríaco Stefan Zweig. Nesse ponto do livro, a biógrafa tangencia aspectos sensíveis do exílio, como o medo do suicídio e a coragem de sobreviver, comparando Paulo Rónai a Zweig e Vilém Flusser, três exilados no Brasil. A morte voluntária de Zweig, autor mundialmente lido, teve um grande impacto no meio intelectual e talvez tenha sido ainda mais profundo na vida de outros exilados. Duas reflexões, entre tantas outras, essa obra pode suscitar, sobretudo no que diz respeito à literatura de exílio: a primeira incidiria sobre a experiência do deslocamento, em sentido amplo, que não terminaria ao se aportar ao país de refúgio. A segunda reflexão apontaria para a diversidade de experiências e reações individuais dos exilados, que, enquanto um coletivo, vivenciariam a perda identitária e a condição do refugiado, mas que se diferenciariam em muitos fatores, como idade, grau de instrução, recursos econômicos e contatos prévios, articulação para estabelecer novos contatos e obter recursos e vistos, sua condição psíquica… o “mal do exílio”, ainda que vivido por todos eles, nunca é o mesmo. Por isso, é tão importante um certo cuidado, de modo a se evitar generalizações e juízos de valor ao dar voz a essas vidas, umas já muito conhecidas, outras quase nada, quando não absolutamente esquecidas. Cuidado que a proposta de uma biografia como essa pressupõe.



Além do sofrimento pessoal e circunstancial pelo qual passou Stefan Zweig, ele se desiludira também com o país que escolheu como último destino de exílio. Foi duramente criticado por seu livro Brasil, um país do futuro (publicado em 1940) no Correio da Manhã, expressivo jornal carioca, e “em Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Joel Silveira e Rubem Braga, prevalecia a ideia de que o livro de Zweig tinha sido escrito para enaltecer o Brasil do Estado Novo” (p.176). Ana Cecília Martins menciona a dissensão em torno da obra, mas, se muitos fatores distanciam Stefan Zweig e Paulo Rónai, seria possível inferir que ambos se encontravam no Brasil sob a mesma cláusula de exceção: “pessoas [de origem semítica] de notória expressão cultural, política e social”,3 de quem era esperado que se engajassem em projetar uma certa imagem do Brasil. O húngaro, tendo acesso a um círculo intelectual sólido e prestigiado, trabalhou em prol do retrato de um Brasil literário específico e menos idealizado. Nas palavras de Drummond endereçadas a Rónai, abalado pela notícia do suicídio: “Zweig não conheceu as pessoas certas. Sua história é outra, meu caro amigo” (p.173).



A representação de certos exilados como “vencedores na vida”, expressão que o próprio Paulo Rónai pareceu estranhar,4 é discutível, porque reforça a construção da narrativa histórica que toma por objeto de empatia sempre os vencedores, segundo uma leitura benjaminiana (Benjamin, 2013). A história dos exilados, ao contrário, seria parte da história dos vencidos. Para sobreviver, eles fizeram apostas com a capacidade e os recursos de que dispunham, enfrentaram adversidades e arbitrariedades políticas. Rónai trabalhou muitíssimo para “merecer seu destino” no Brasil (p.15), mantendo a esperança de trazer sua família e sua noiva, Magda Péter, em segurança ao país. Num gesto de gratidão pela vida, dedicou-se inteiramente à expansão das relações culturais Brasil-Europa. Contudo, um exemplo amargo dessa arbitrariedade é o fato de que o visto de sua noiva foi negado pelo mesmo governo Vargas que permitira a Rónai vir. A família Rónai se reuniria mais uma vez no Rio de Janeiro, mas Magda acabaria por desaparecer nas mãos da Gestapo.



Na biografia, vê-se que Paulo Rónai (2012, p.199) se dispôs a abandonar a miragem do país de destino, para buscar e traçar seu próprio “fio condutor”. Sua desconfiança diante do próprio conhecimento traduziu-se numa postura de renovada curiosidade pelas dinâmicas linguísticas e culturais do Brasil, interpretando a literatura brasileira. Tornou-se ainda representante dessa no exterior, não por interesse político, por fascínio ingênuo, mas por ter sido alguém “profundamente interessado no outro” (p.171), pela sua compreensão do valor da alteridade e pelas possibilidades de identificação humana.

Referências

BENJAMIN, W. Sobre o conceito da História. In: O anjo da história. Org. e trad. João Barrento. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
MARTINS, A. C. I. O homem que aprendeu o Brasil: a vida de Paulo Rónai. São Paulo: Todavia, 2020. 384p.
RÓNAI, P. A tradução vivida. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012. 255p.
_______. Como aprendi o português e outras aventuras. 2.ed. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014. 264p.

Notas

1
Cf. Relato de Nora Tausz Rónai, em “Escritores, tradutores e críticos literários” (temporada 1, ep.2). Canto dos exilados [Série]. Direção de Leonardo Dourado. Roteiro de Kristina Michahelles. Rio de Janeiro: Arte 1; Telenews; Riofilme, 2016. (51 min.)
2
Em favor da legibilidade da resenha, as citações do livro de Ana Cecília Impellizieri Martins serão, a partir de agora, indicadas apenas pelo número de páginas.
3
Cláusula de exceção no decreto que restringia a concessão do visto brasileiro a judeus, de 7 de junho de 1937 (p.64, 114).
4
Cf. Discurso proferido na cerimônia de posse da cátedra de francês no Colégio Pedro II (p.252
Rev. Est. Avançados

A forma simbólica da modernidade



Cecilia Marks

MORETTI, F. O romance de formação. Trad. Natasha Belfort Palmeira. São Paulo: Todavia, 2020


Uma dialética de perdas e ganhos: assim Franco Moretti introduz sua tese de o romance de formação ser a forma simbólica da modernidade. “Perdi minha subjetividade, mas encontrei um mundo, disse Goethe a propósito da viagem à Itália [...]: a vida ofereceu menos do que o esperado - porém ofereceu algo a mais, e inesperado” (p.11). Teórico que cunhou o conceito de “distant reading” em contraposição à prática da “close reading” - interpretação rente ao texto que se consolidou ao longo do século XX -, Moretti propõe em O romance de formação manter um olhar distanciado das obras em si para as analisar como representantes de seus respectivos contextos e momentos históricos. Assim, ao abrir mão da leitura imanente para alçar voo e alcançar uma visão extensiva, é dada a possibilidade de estabelecer conexões de enredos e personagens com movimentos sociais que abalaram a dinâmica das relações entre indivíduo e sociedade, abarcando desde aspectos da vida pessoal e cotidiana até a esfera pública e política.



Para desenvolver sua argumentação, o ensaísta transita por um extenso arco de ideias, dialoga com diversas linhas de pensamento, contestando-as ou embasando seu raciocínio - de teóricos como Lukács, Bakhtin, Adorno e Barthes a filósofos e historiadores como Hegel, Tocqueville, Burckhardt e Habermas, além de Freud e Darwin, entre outros. Mesmo assim, chega a uma amarração coesa, embora algumas vezes constranja o leitor a uma dispersão de propósitos. Essa característica da obra, publicada originalmente em 1986, portanto antes de Moretti desenvolver sua metodologia pluridisciplinar para estudar a história da literatura, demonstra que ali já germinavam conceitos que o autor expandiu posteriormente.



De acordo com Mikhail Bakhtin (2010, p.121), graças à sua capacidade de renovação permanente, o gênero literário “sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado gênero”. No caso do romance de formação, essa passagem é bem marcada por um momento histórico definido e por uma obra específica.



Moretti considera o romance de formação a forma simbólica e hegemônica da modernidade em decorrência das grandes mudanças sociais e econômicas provocadas pela dupla revolução, a industrial e a burguesa. Organizado em quatro grandes blocos, que por sua vez separam-se em capítulos, esses divididos em vários subtítulos instigantes, numa estrutura que remete ao formato de árvore, o livro compreende um período de pouco mais de um século, entre o surgimento do paradigmático Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, publicado em 1795-1796, e o de algumas obras modernistas do início do século XX, até 1914 - essas abordadas em um ensaio adicional.



Uma vez que a definição de romance de formação tornou-se bastante elástica e abrangente, Moretti opta por utilizar o termo original Bildungsroman apenas para o romance de Goethe e Orgulho e preconceito, de Jane Austen, os quais considera tradicionais. Os demais títulos do corpus são designados genericamente romance de formação. A apreciação dos dois livros citados conduz a parte inicial do estudo, fincando as bases da argumentação. Nessa escolha também se fundamenta a diferença estabelecida pelo autor entre os movimentos revolucionários e as transformações sociais ocorridas na Alemanha e na Inglaterra, de um lado, e na França, de outro, com seus respectivos reflexos nas obras analisadas e emanações por estas provocadas.



No Bildungsroman tradicional, o protagonista é jovem e culto, em busca de um sentido para a vida. Suas aspirações chegam a ser experimentadas, mas não se efetivam de fato, pois ao final da trajetória ele as abandona em prol de outras vivências, que o encaminham para a conformidade ao mundo e à realidade, harmonizando-se o herói com a sociedade para a qual se formou durante sua jornada rumo à maturidade. Aqui, fica implícito o já mencionado aparato da troca, tão caro ao pensamento burguês.



Assim, para Moretti, a juventude é a imagem que reflete a configuração social, econômica e histórica da modernidade, adquirindo centralidade simbólica por “acentuar seu dinamismo e instabilidade” (p.30). Se no Bildungsroman é permitida à irrequieta interioridade juvenil explorar o espaço social, esse processo de aprendizagem se conclui de maneira harmoniosa sem gerar frustrações, pois a internalização de valores ocorre de maneira a cumprir o que Moretti aponta como o “paradigma ideal da socialização moderna: desejo fazer aquilo que, de todo modo, deveria ter feito” (p.50). A individualidade é a força centrípeta da narrativa, que deságua em uma vida cotidiana equilibrada e estática, diga-se que almejada e plena, embora exteriormente a modernidade siga em progressão contínua - “velocífera”,1 numa formulação de Goethe. Nesse sentido, a formação moderna não se dá abruptamente, como um rito iniciático, mas é uma construção significativa visando a uma finalidade.



Isso posto, é preciso frisar que a juventude não perdura para sempre, é passageira, e acaba por trair seus princípios. Sob esse aspecto, o autor salienta as diferenças entre a forma simbólica romance de formação na Alemanha e Inglaterra - onde atuava para evitar os “efeitos irreversíveis” da Revolução Francesa, segundo Moretti (p.123)2 - em comparação com a França e a Rússia. No Bildungsroman tradicional há uma condução teleológica, que encontra o equilíbrio, a conciliação de interesses das duas classes hegemônicas - a decadente aristocracia e a emergente burguesia. Já nos romances franceses e russos apresentados na segunda parte do livro, a característica é de ruptura, de uma juventude desencantada com os valores revolucionários, que, de resto, compõem um ideário professado mas dificilmente praticado. Mesmo assim, o protagonista de O vermelho e o negro, de Stendhal, não quer trair suas convicções nem renunciar à busca do “sentido da vida”, não pretende firmar um compromisso com o sistema. Ao contrário das primeiras, essas narrativas não se fecham nem correm para um final harmonioso, pois não há destino alternativo, senão a morte, a loucura, o desterro, para esses tipos condenados pela ordem social por não abdicarem dos ideais juvenis.



Moretti ilumina com perspicácia o paradoxal conflito entre liberdade e autodeterminação - uma das bandeiras da Revolução Francesa e que se encontra no cerne da modernidade - e os limites impostos pelo próprio capitalismo visando à conformidade e adequação ao modo de produção. Ou seja, o indivíduo moderno é livre, desde que adequadamente socializado/formado para atender às necessidades do sistema - “Em outras palavras, é preciso renunciar a ser ‘moderno’ ou renunciar a ser ‘indivíduo’” (p.272). Essa condição sine qua non, conforme Moretti, remete à teoria evolucionista de Darwin, tão cara ao autor, de que sobrevive o que melhor se adapta e não o mais forte. Por outro lado, nessa nova ordem a humanidade se viu “fadada” à liberdade, pois, ao romperem-se as estruturas de subserviência, a liberdade pode ter se tornado um fardo cansativo e doloroso, resultando em medo e solidão (p.113).



O romance de formação se estrutura sobre essas “drásticas antíteses” (p.31) e, justamente pelo seu caráter contraditório, tornou-se a forma simbólica da modernidade; por ser tão paradoxal quanto a cultura moderna, que exige a coexistência de valores opostos para se manter e se reproduzir. Por sua flexibilidade, ecletismo e capacidade de adaptação, o romance de formação superou outras formas narrativas - romance histórico, epistolar, alegórico, satírico, Künstlerroman -, que seguem modelos mais rígidos. “E vice-versa, naturalmente: quanto mais uma forma foi capaz de flexibilidade e compromisso, melhor pôde governar-se no turbilhão sem síntese da história moderna” (p.36).



Diferentes dos heróis integrados do Bildungsroman, a personificação de sujeitos cindidos, fragmentados e incoerentes, trilhando caminhos sinuosos e instáveis, sem uma finalidade determinada, faz surgir, nos romances franceses do século XIX, “novas constantes estruturais [que] colocam, por assim dizer, o romance de formação em sintonia com seu tempo” (p.141). Neles, os processos de individualização e de socialização são incompatíveis, e Moretti enumera algumas das principais antíteses recorrentes em romances pertencentes às duas correntes: casamento versus adultério; felicidade versus liberdade; individualidade versus perda da identidade.



Contudo, enquanto em Stendhal o sentimento de desilusão se impõe, em Balzac, Lucien de Rubempré é o “herói da mobilidade social” (p.208), imediatista e pragmático. Na Comédia Humana as contradições já se mostram assimiladas e o motor do progresso e do sucesso pessoal é incorporado à narrativa, que desvela a relatividade dos valores desse modelo social, em que a moda e o consumo pautam as relações de maneira superficial e efêmera. Aqui, a narrativa da juventude coloca “em relevo a força desumana e indiferente do novo mundo, que reconstrói - como se fosse uma autópsia - a partir das feridas infligidas ao indivíduo” (p.254).



No bloco final do livro, Moretti se detém em particularidades observadas na Inglaterra - “única nação europeia em que 1789 não se afigurou como o ano zero da modernidade” (p.277) -, caracterizada por estabilidade de valores, firme regulação jurídica, hierarquia e conformismo. No cânone literário inglês do período, o autor observa uma desvalorização da juventude e, antes, um desígnio pela manutenção de escolhas feitas pelo herói na infância, o que denomina de “romance de conservação” (p.279) mais do que de formação. Assim, essas narrativas se aproximam dos contos de fada, cuja estrutura é de polarização e qualquer ambiguidade é dissipada no final. Os personagens são pautados por uma espécie de taxonomia e dependem de coincidências narrativas para promoverem o andamento do enredo (p.295), prática que levará, de acordo com Moretti, à forte tradição inglesa de romances de terror e de suspense. O autor, entretanto, faz questão de indicar as exceções: “George Eliot... e tudo muda. Junto a Jane Austen ela é a única escritora que soube renunciar ao modelo do conto de fadas judiciário e se mediu com a problemática europeia do romance de formação” (p.324).



A análise das transformações ocorridas no romance de formação desde o seu surgimento é complementada por considerações sobre um pequeno rol de romances modernistas, de Conrad, Mann, Musel, Walser, Rilke e Kafka. Moretti constata que essas obras-primas não iniciaram uma nova etapa na história do romance de formação europeu, mas sim a encerraram de vez. Isso porque, nessas narrativas - inseridas em uma realidade moderna já consolidada - o protagonismo do indivíduo é soterrado pelas instituições, essas sim instrumentos deliberados de coerção. Esse é “o mundo do romance de formação tardio”, que repercute ainda hoje.



Tais reflexões constam de um ensaio publicado em 1990, incorporado ao livro, assim como o prefácio autocrítico do autor, redigido em 1999, em que esse aponta as limitações de ordem geográfica, social e histórica da obra e esclarece alguns caminhos teóricos percorridos posteriormente. Outros aspectos positivos são as referências contidas em notas de rodapé remeterem a edições acessíveis ao leitor brasileiro, o índice onomástico e a lista de edições nacionais do corpus estudado, embora alguns títulos, tanto dos romances analisados como da bibliografia teórica, disponham de edições e traduções mais recentes e atualizadas.



A publicação de O romance de formação reveste-se de relevância, pois a obra pode dialogar com uma tradição recente, porém consistente, que se estabeleceu no país a partir dos anos 1990, com estudos como O cânone mínimo, de Wilma Maas, e Labirintos da aprendizagem, de Marcus Mazzari, autor com quem divido a organização de Romance de formação - Caminhos e descaminhos do herói (no prelo), volume composto por 26 ensaios de diversos pesquisadores, abordando obras de diferentes origens e períodos.

Referências

BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
ECKERMANN, J. P. Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida: 1823-1832. São Paulo: Editora Unesp, 2016. p.521-2.
MAZZARI, M. V. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister: “um magnífico arco-íris’’. Revista Literatura e Sociedade, v.1, n.27, 2018.
_______. A dupla noite das tílias - História e natureza no Fausto de Goethe. São Paulo: Editora 34, 2019.
MORETTI, F. O romance de formação. Trad. Natasha Belfort Palmeira. São Paulo: Todavia, 2020.

Notas

1
Trata-se de uma “referência alegórica ao incipiente ritmo ‘velocífero’ (neologismo criado por Goethe) da modernidade e ao seu caráter autônomo” (Mazzari, 2019).
2
Nesse sentido, o autor parece desprezar o tom irônico insinuado por Goethe em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, conforme aponta Mazzari (2018): “Goethe designou Wilhelm Meister como ‘pobre cachorro’ numa conversa registrada pelo chanceler von Müller em janeiro de 1821: ‘mas apenas com personagens como essas que se podem mostrar claramente o jogo inconstante da vida e as incontáveis e diversas tarefas da existência, e não com caracteres sólidos e já formados’”. No que se refere ao posicionamento de Goethe com relação à Revolução Francesa, nas Conversações com Eckermann (4 de janeiro de 1824), há a seguinte manifestação do escritor: “É verdade que eu não poderia ser amigo da Revolução Francesa, pois seus horrores estavam muito próximos de mim e me indignavam diariamente, de hora em hora, ao passo que não era possível prever suas consequências benéficas. E eu também não podia assistir indiferente à tentativa de trazer para a Alemanha de maneira artificial semelhantes cenas que, na França, eram consequência de uma grande necessidade. Mas nem por isso era amigo de um despotismo arbitrário” (Eckermann, 2016, p.521-2).
Rev. Estudos Avançados

O programa científico do Antropoceno







Ricardo SoaresWilson Machado

ZALASIEWICZ, J.. The Anthropocene as a Geological Time Unit: A Guide to the Scientific Evidence and Current Debate. Cambridge: Cambridge University Press, 2019. 361p

No ano 2000, o Prêmio Nobel de Química Paul Crutzen e o liminologista Eugene Stoermer publicaram na Newsletter do International Geosphere-Biosphere Programme (IGBP) a hipótese na qual a atual Época geológica do planeta Terra, o Holoceno, havia se encerrado e em seu lugar se iniciara o que viria a ser reconhecido como o “Antropoceno” (Crutzen; Stoermer, 2000). Dessa forma, conceituaram a nova unidade cronoestatigráfica como resultado direto das mudanças ambientais globais proporcionadas pelas ações da humanidade a partir da Revolução Industrial, iniciada no século XVIII com o advento da máquina a vapor de James Watt. Logo, teve início a formalização que a humanidade teria se convertido em uma força geológica poderosa e capaz de alterar irreversivelmente o futuro do planeta.

Mesmo que o Antropoceno apresente certo caráter polêmico e não seja ainda um consenso absoluto nas geociências, nem tampouco nas ciências humanas, devido a grande repercussão na comunidade científica internacional e a um aumento exponencial do interesse na discussão sobre a validade ontológica e epistemológica (Crutzen, 2002), a Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário (órgão da União Internacional de Ciências Geológicas - IUGS) considerou que o conceito possuía “mérito estratigráfico” o suficiente para a sua formalização e criou, em 2009, o Grupo de Trabalho do Antropoceno (GTA), cuja finalidade é avaliar se o atual cenário de exploração científica poderia se constituir no reconhecimento de um novo paradigma, e se esta Época poderia formalmente fazer parte da Escala de Tempo Geológica internacional (Silva; Arbilla, 2018; Silva et al., 2020).



Como pode ser observada na Figura 1, após a obtenção de um consenso de, no mínimo, 60% dos membros do GTA a proposta do Antropoceno deverá ser posta à aprovação da Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário. Caso aceite os argumentos científicos apresentados, essa subcomissão fará a recomendação à Comissão de Estratigrafia para que, caso também aprove o conjunto de evidências e argumentos científicos apresentados nas etapas anteriores, consolide a proposta para a aprovação pelo Comitê Executivo da IUGS. Esse Comitê será o responsável por atualizar a Escala Geológica de Tempo, constando o Antropoceno como a Época mais recente na história da Terra. Era previsto, inicialmente, que a Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário apresentaria a sua decisão durante ao 36ª Congresso Geológico Mundial que seria realizado em março de 2020. Infelizmente, em razão da pandemia do Covid-19, esse congresso teve que ser adiado para novembro de 2020, fazendo que todo o processo de ratificação do reconhecimento formal do Antropoceno como Época geológica continue em andamento (Figura 1).






Figura 1
Processo de avaliação formal para o reconhecimento oficial da proposta do Antropoceno como Época geológica.






O conjunto de dados obtidos e hipóteses levantadas ao longo de uma década pelo GTA têm sido apresentado de maneira crítica e coerente em uma grande variedade de livros e artigos científicos internacionais, assim como foram expostos no 35o Congresso Geológico Internacional, em 2016 (Silva et al., 2018), sendo posteriormente compilados e sumarizados no livro The Anthropocene as a Geological Time Unit: A Guide to the Scientific Evidence and Current Debate, editdo pelos pesquisadores Jan Zalsiewicz, Colin Waters, Mark Williams e Colin Summerhayes (Alasiewicz et al., 2019).



O livro se divide em sete capítulos e conta com a contribuição de 38 dos mais renomados cientistas internacionais atuantes na teoria do Antropoceno. Contudo, embora se observe um grande esforço em proporcionar uma leitura acessível, pelo caráter multidisciplinar e bastante específico do tema, pode se constituir num grande desafio a leitores não familiarizados com a linguagem científica em geral, e com conceitos geológicos em particular.



O primeiro capítulo, “História e desenvolvimento do Antropoceno como um conceito estratigráfico”, expõe como a hipótese do Antropoceno despertou profundo interesse da comunidade científica internacional, principalmente quando foi mais bem elaborada e divulgada na renomada revista Nature (Crutzen, 2002).



Os autores destacam que as ciências naturais foram aquelas que, informalmente, mais utilizaram o Antropoceno para abordar diferentes assuntos inerentes ao Sistema Terra tais como, mudanças climáticas globais, extinção das espécies, acidificação dos oceanos, alteração dos ciclos biogeoquímicos, acumulação de tecnofósseis entre outros (Silva; Arbilla, 2018). Além disso, enfatiza-se constantemente que o objetivo do livro é descrever o Antropoceno somente de um ponto de vista geológico, mas sem adotar um caráter excludente ou polarizante entre diferentes ramos da Ciência, como pode ser observado em “[...] esta definição não exclui outras diferentes interpretações do Antropoceno que apareceram nos anos recentes entre outras comunidades acadêmicas, particularmente nas ciências humanas” (p.1), mas sem tergiversar em seu rígido caráter científico ”[Antropoceno] não tem significância particular ou caráter simbólico [...] é um fenômeno geológico de um planeta profundamente impactado pelos seres humanos” (p.15).



No segundo capítulo, “Assinaturas estratigráficas do Antropoceno”, são apresentadas as evidências científicas que baseiam o Antropoceno, com especial ênfase no uso dos distintos marcadores estratigráficos estocados em diferentes compartimentos ambientais, que são elegíveis a serem reconhecidos como o registro geológico definitivo (golden spike) do início da ação antropogênica sincrônica e global do Antropoceno. As Terras Pretas de Índio (TPI) da Região Amazônica são destacadas como possíveis golden spikes, mesmo apresentando características pedológicas que as definam apenas como interessante marcador da presença antrópica da Bacía Amazônica (Soares et al., 2018).



O terceiro capítulo, intitulado “A assinatura bioestratigráfica do Antropoceno”, apresenta como os fósseis podem fornecer informações fundamentais nas alterações das composições das espécies durante as mudanças sofridas no Sistema Terra ao longo das Eras geológicas. As evidências apontam que a humanidade poderá, e com razão, ser responsabilizada pela atual sexta extinção em massa de diferentes espécies ao redor do globo.



Ao longo do quarto capítulo, “A tecnosfera e seu registro estratigráfico”, os autores apresentam a relação desse novo nicho de construção humana com o Antropoceno, com especial ênfase nos artefatos que podem servir de registros geocronológicos das atividades antrópicas no Sistema Terra. Contudo, ao considerarem os diferentes candidatos à tecnofósseis, os autores se limitaram, injustificadamente, a descrever quase que exclusivamente os plásticos, pois “[Plásticos] providenciam um registro físico distintivo da evolução da tecnosfera durante o século XX e início do século XXI” (p.155). Embora o plástico possua uma indiscutível importância e seja emblemático como potencial tecnofóssil, não se deveria omitir ou diminuir a importância do concreto, do alumínio elementar ou dos materiais eletroeletrônicos que apresentam a mesma tendência de produção massiva a partir da década de 1950, em um período histórico, informalmente, reconhecido como “A Grande Aceleração” (Silva et al., 2020).



O quinto capítulo, “Quimioestratigrafia do Antropoceno”, elucida como a combinação da geoquímica com a estratigrafia pode ser usada para avaliar a variação das substâncias químicas através dos tempos, assim como “[...] definir padrões de alteração da composição química ao longo do tempo que podem fornecer marcadores para o Antropoceno como nova Época geológica” (p.158). Todavia, ao contrário do capítulo anterior, os autores se preocuparam em expor adequadamente os diferentes possíveis marcadores do início do Antropoceno e a tendência sugerida, timidamente, é que seja escolhido futuramente o fallout dos radionuclídeos gerados pelas detonações atmosféricas das armas nucleares, no período da guerra fria, como o marcador mais preciso dessa nova Época geológica.



Embora tenha sido propositalmente omitido pelos autores, caso realmente os radionuclídeos espalhados ao redor do planeta pelas explosões nucleares atmosféricas sejam futuramente escolhidos como definitivos Golden Spikes, isso poderá acarretar em severas e significativas implicações aos estudos das ciências humanas e sociais sobre o tema, que teriam que passar a considerar, também, a contribuição do Socialismo (socialismo real, socialismo com características chinesas etc.), além do sistema capitalista para o surgimento da Época do Antropoceno no Sistema Terra ao longo do século XX.



De forma correta, é constantemente enfatizado na obra que o Antropoceno não deve ser simplesmente confundido ou ter seu estatuto científico reduzido ao mero aumento das concentrações dos gases de efeito estufa (GEE), de origem antrópica, e que estão remodelando e afetando o atual estado de equilíbrio termodinâmico do planeta. Contudo, no sexto capítulo, “Mudanças climáticas e o Antropoceno”, os autores elucidam a questão das mudanças climáticas globais com um enfoque paleoclimático, descrevendo o estado da arte dos mecanismos e processos biogeoquímicos naturais, desde o início da formação da atmosfera primitiva do planeta até a projeção de cenários futuros com seus respectivos impactos ambientais negativos ao equilíbrio térmico do Sistema Terra (derretimento de geleiras, aumento do nível do mar, acidificação dos oceanos etc.). Surpreendentemente, os autores, ao abordarem esse capítulo, não levaram em consideração que as mudanças climáticas globais constituem um dos principais Limites Planetários (espaço operacional seguro) para o desenvolvimento da Humanidade com respeito ao funcionamento do Sistema Terra (Silva; Arbilla, 2018).



Finalmente, o capítulo “O limite estratigráfico do Antropoceno” serve de epílogo, sumariza e critica as diversas propostas de origem sugeridas pela comunidade científica internacional: “PaleoAntropoceno”, “Antropoceno precoce”, hipótese “Orbis Spike”, “Revolução Industrial”, “Grande Aceleração” entre outras. Além disso, os autores reforçam que, independentemente da hipótese a ser reconhecida, o GTA trabalha somente com o “[...] ‘Antropoceno geológico’ essencialmente como originalmente pretendido, e não a outras interpretações” (p.286).



Em 2019, foi divulgado que 88% dos membros do GTA ratificou a proposta que o Antropoceno fosse formalmente reconhecido como uma nova unidade cronoestatigráfica com início a partir da década de 1950, cabendo à Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário decidir se apresentaria essa proposta à União Internacional de Ciências Geológicas no 36o Congresso Geológico Internacional, a ser realizado em 2020, na cidade de Nova Délhi - Índia (Silva et al., 2020), como dito anteriormente. Contudo, devido à grave pandemia de Covid-19, até fevereiro de 2020 nem a Comissão de Estratigrafia, nem o Comitê Executivo da IUGS iniciaram as suas respectivas etapas de análise para a oficialização do Antropoceno como Época geológica. Logo, esse livro que representa o esforço de mais de dez anos de coleta de dados e evidências científicas deveria possuir um caráter mais conclusivo de como e quando se iniciou o Antropoceno, e não ser uma mera tentativa de resposta àqueles que criticam, acertadamente, que o GTA não dispunha de um corpus teórico robusto e baseado suficientemente no peso das evidências de forma que atenda ao rigor do método científico.



O livro The Anthropocene as a Geological Time Unit: A Guide to the Scientific Evidence and Current Debate representa uma contribuição imprescindível para a compreensão científica da evolução epistemológica sistemática da teoria relativa ao Antropoceno e, como dito antes, embora possa se constituir como desafiador ao público leigo torna-se primordial àqueles que queiram estar familiarizados com os debates mais recentes a respeito da “Época da Humanidade”.

Referências

CRUTZEN, P. J. Geology of mankind. Nature, v.415, n.3, p.23, 2002.
CRUTZEN, P. J.; STOERMER, E. F. The Anthropocene. IGBP Global Change Newsletter, n.41, p.17-18, 2000.
SILVA, C. M.; ARBILLA, G. Antropoceno: os desafios de um novo mundo. Revista Virtual de Química, v.10, n.6, p.1619-47, 2018.
SILVA, C. et al. A nova Idade Meghalayan: o que isso significa para a Época do Antropoceno? Revista Virtual de Química, v.10, n.6, p.1648-58, 2018.
SILVA, C. M. et al.. Radionuclídeos como marcadores de um novo tempo: o Antropoceno. Química Nova, v.43, n.4, p.506-14, 2020.
SOARES, R. et al. O Papel das Terras Pretas de Índio no Antropoceno. Revista Virtual de Química, v.10, n.6, p.1659-92, 2018.
ZALASIEWICZ, J. et al. (Ed.) The Anthropocene as a Geological Time Unit: A Guide to the Scientific Evidence and Current Debate. Cambridge: Cambridge University Press. 2019. 361p.
Revista Estudos Avançados