quarta-feira, 29 de junho de 2022

Análise política em saúde: a contribuição do pensamento estratégico



João Henrique Araujo Virgens
Federico, L.. Análise política em saúde: a contribuição do pensamento estratégico. Salvador: EDUFBA, 2015.

Análise política em saúde: a contribuição do pensamento estratégico é resultado da investigação desenvolvida por Leonardo Federico – argentino, mestre em Epidemiologia, Gestão e Políticas de Saúde pela Universidade Nacional de Lanús (UNLA) – durante o curso de doutorado, realizado no ISC-UFBA, sob orientação de Jairnilson Paim. Foi tomado como objeto desse estudo parte significativa da obra de Mario Testa, pensador latino-americano, conhecido, especialmente, por sua produção crítica na área de Política, Planejamento e Gestão em Saúde. Escrita originalmente em espanhol, a tese de Federico foi traduzida e transformada em livro por Carmen Teixeira, que prefacia a obra e acrescenta notas biográficas para auxiliar o leitor a conhecer um pouco da vida e da produção intelectual de Testa. O livro conta também com posfácio elaborado por Jairnilson Paim.



Para desenvolver sua tese, Federico parte do livro Planejamento estratégico e lógica da programação (PELP) e justifica essa escolha pelo fato de representar uma “unidade de sentido” de grande densidade teórica, com contribuições diretas para pensar a ação em saúde vinculada a uma práxis transformadora que supera questões específicas do setor analisado. Após uma apresentação geral de PELP, fica explícita a preocupação em não tratar essa pesquisa como se partisse de uma estrutura autocentrada e autossuficiente e, para isso, o autor vai buscar apoio na “perspectiva hermenêutica” e em outras obras, inclusive de Testa, para responder as questões de pesquisa, em especial entender como Mario Testa construiu seu pensamento estratégico e quais aspectos merecem ser aprofundados em sua obra. Discute também o resultado de uma revisão de literatura sobre Planejamento e Gestão em Saúde na América Latina, em especial, a partir de autores que refletiram sobre a obra de Testa, e como preocupações, inicialmente metodológicas nessa área, passam a incorporar categorias como política, poder e a ação dos sujeitos. Além disso, faz comentários sobre alguns dos principais estudos que evidenciam implicações práticas e teóricas da obra de Testa.



Em relação à escolha da “perspectiva hermenêutica”, o autor justifica com base em sua intenção de compreender em profundidade a teoria do texto, da ação e da história na obra analisada. Para isso, apoia-se, especialmente em Ricoeur que trata a linguagem como acontecimento, pensa a ação humana como um quase-texto e discute a conexão destas com a teoria da história. Seu referencial teórico-metodológico também conta com aportes de Gadamer e Heidegger, bem como de autores da área da saúde como Ayres e Onocko Campos. Para a abordagem proposta, compreender “implica a inevitabilidade de sua intervenção criativa”. Ou seja, as experiências do hermeneuta em um momento histórico específico conferem atualidade e inviabilizam a neutralidade na produção.



Contudo, Federico comenta sobre a insuficiência da hermenêutica para seu estudo e a necessidade de contar com um referencial teórico que contribua para a análise e a compreensão das categorias centrais do pensamento estratégico, tais como: ação, papel do Estado, constituição de atores sociais, poder, etc. Evidencia, com isso, a raiz marxiana na concepção de Testa, em especial, ao pensar em como os atores sociais estão historicamente situados e como isso interfere em sua ação. O autor recorre, principalmente, a Giddens, Bourdieu, Gramsci, Laclau e a Mouffe. Essas escolhas podem causar estranhamento para alguns leitores, pois são autores com perspectivas teóricas divergentes em certos aspectos e esses pontos de ruptura pouco são problematizados no livro. São evidenciadas, basicamente, as contribuições de cada autor para compor os elementos de análise da obra, enquanto os pontos de divergência, que poderiam trazer importantes contribuições para a proposta dialética, são secundarizados.



Em um mergulho específico na teoria do texto e em sua correlação com a teoria da ação em PELP, Federico descreve, inicialmente, como está estruturado o texto e problematiza como as questões do setor saúde precisam ser tratadas em interação com o social. Afinal, mudanças radicais na sociedade não poderiam ser alcançadas a partir de propostas setoriais e, sem transformações mais amplas, alguns problemas específicos do setor ficam sem solução. Por isso, categorias como poder, política e estratégia se tornam basilares no pensamento de Testa e são discutidas tanto a partir de sua relação com a história, quanto do potencial de ação dos atores sociais, diante de uma preocupação central: pensar se na América Latina as organizações têm conseguido influenciar a agenda do Estado e impactar na história. Assim, é aprofundado o debate do processo de constituição de sujeitos individuais e coletivos e como este sofre interferência das formas de organização – discute em especial as burocráticas e as criativas – por conta das diferentes condições para realização do trabalho. A esse respeito é importante citar a problematização de como a incorporação tecnológica em saúde impacta nos processos de trabalho e, portanto, na ideologização dos sujeitos e em como estes passam a agir no mundo. O autor evidencia assim a necessidade de analisar essas relações a partir de uma concepção aprofundada do político e não apenas das práticas sanitárias, bem como de pensar uma perspectiva de cultura que passa a ser tratada como um problema estratégico. Na discussão da lógica da programação são aprofundadas análises sobre os conceitos operacionais, mas com a constante preocupação em demonstrar a relação com as categorias analíticas e como essa compreensão dialética tem impactos na práxis sociossanitária.



Ao refletir sobre a passagem da teoria da ação para a da história, Federico revisita o postulado da coerência para discutir a “perspectiva sócio-histórica” de Testa com apoio de textos mais recentes do autor e de outros que se utilizaram desse aporte. Discute como se dá a interação entre os vértices político (papel do Estado e propósitos de governo), ciência (teoria e método) e história (história e organização) em países capitalistas, subdesenvolvidos e dependentes (CSD). Além disso, aborda como o processo de constituição de atores sociais e de desenvolvimento de atitude e aptidão críticas influenciam no potencial das organizações de modificar as relações de determinação e condicionamento entre esses vértices. Um outro aspecto relevante é a concepção de que as decisões são tomadas pelo Estado e como elas estão diretamente relacionadas com os papéis adotados por ele: articulação da classe dominante, desarticulação da classe dominada e/ou a garantia da reprodução da classe dominada.



O autor retoma Ricoeur para defender a tese do “caráter processual-relacional da obra de Testa” como fundamento para “sua proposta de ação política”. Identifica relações entre os tipos de poder analisados por Testa (administrativo, técnico e político) e a discussão de capitais feita por Bourdieu. Evidencia, também, relações entre esses autores no debate da racionalidade na ação dos sujeitos, já que para ele o caráter estratégico não está relacionado com ações com fins precisamente estabelecidos ou “prescrições acabadas” e reforça, em diversos momentos, que a proposta de Testa está fincada na ideia de desencadear processos transformadores.



Federico faz, por fim, uma discussão da atualidade do pensamento estratégico e evidencia divergências entre Testa e Giddens, em especial, no que se refere ao potencial das organizações em contribuir com elementos emancipadores frente aos modos de dominação. Giddens é criticado, principalmente, com apoio de Mouffe, por conta da postura consensualista que levaria a uma perspectiva pós-política. Porém, ao pensar na vinculação da obra de Testa com a abordagem marxiana, é importante refletir ainda sobre os distanciamentos e aproximações entre PELP e a postura pós-marxista adotada por Mouffe.



Para concluir, cito a contribuição complementar trazida no posfácio escrito por Paim. Nele são apresentados os principais enfoques teórico-metodológicos a partir dos quais têm sido analisadas políticas de saúde e as produções críticas de Testa e Matus são destacadas como contraponto às abordagens baseadas em referenciais norte-americanos e europeus. Assim, é discutida a necessidade de buscar elementos para uma análise política em saúde, pensando a situação latino-americana, e não a mera análise de políticas específicas com uso de teorias desenvolvidas a partir de realidades muito distintas da nossa e introduzidas nas pesquisas em saúde brasileiras, em alguns casos, sem a devida problematização.



Se a saúde coletiva pretende pensar (e contribuir para) a ação presente, em especial a transformadora, é importante ter clareza que análises históricas precisam se conectar com análises da situação atual. O mesmo ocorre com análises parciais, diante da necessidade de compreensão de aspectos da totalidade. Não é questão de discutir isoladamente a melhor abordagem, mas problematizar dialeticamente a produção teórica em saúde, em especial, em momentos que podem ser de recorrentes rupturas políticas reacionárias, processo que pode estar em curso no Brasil. Assim, a obra de Federico, contribui de maneira significativa para possibilitar ao leitor brasileiro uma (re)aproximação com essa dimensão mais ampla que se propõe a pensar o político na saúde e reafirma a importância da reflexão dialética para a análise de cada situação, alicerçada na indispensável conexão entre o setor saúde e a totalidade social.

Políticas, Planejamento e Gestão em Saúde abordagens e métodos de pesquisa



Marluce Maria Araújo Assis

Baptista, TWF; Azevedo, CS; Machado, CV. Políticas, Planejamento e Gestão em Saúde abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2015.


A relevância da área de Políticas, Planejamento e Gestão em Saúde (PPGS) no campo da Saúde Coletiva é indiscutível, revelando a diversidade de aportes teóricos e metodológicos, de caráter interdisciplinar, transdisciplinar e multiprofissional, influenciados por diferentes campos de conhecimento, como as ciências sociais, a filosofia, a ciência política, entre outros.



Esta obra é organizada por Baptista, Azevedo e Machado, com participação de 23 autores, destacando-se pelo seu ineditismo em relação a outras obras da área de PPGS, pois aborda de forma sistematizada as sínteses analíticas dos referenciais teóricos e metodológicos mais utilizados, cujas contribuições constituem um aporte substancial para aprofundamento das linhas de pesquisa e do modo como explicamos e compreendemos as realidades empíricas. Um esforço pioneiro e fundamental para o fortalecimento da área, em sua dinamicidade e conexões de múltiplos saberes e práticas.



Trata-se de uma coletânea com prefácio e apresentação, organizada em doze capítulos, agrupados em três partes. Os argumentos científicos consistentes tornam o livro estimulante. Uma obra de referência necessária e obrigatória, pois permite uma compreensão ampliada dos objetos e metodologias, e das formas diversas de interação entre as correntes de pensamento que os influenciam.



No Capítulo I, Schraiber faz uma reflexão importante sobre a produção científica na saúde coletiva em que reconhece a singularidade do contexto brasileiro e levanta questões relacionadas ao engajamento ético-político e adensamento conceitual das construções teóricas. Discute a implicação ética do sujeito pesquisador, considerando os aspectos sociais, políticos e históricos que ele atribui ao delimitar o objeto e a própria constituição da investigação. Analisa as contribuições teóricas dos estudos e em que medida aprofunda o conhecimento existente, ou apenas reproduzem de “modo confirmatório” os dados empíricos a luz da teoria.



Mattos, no capítulo II, explora algumas contribuições do filósofo Rorty segundo a perspectiva construcionista. O principal eixo discursivo é pautado na busca da “solidariedade e objetividade” para compor as diferenças entre si em relação à noção de verdade científica. Argumenta-se que a prática de saúde coletiva é um campo rico para práticas de ciência solidária, por reunir várias tradições de pesquisa e dialogar com múltiplos saberes. A autoanálise realizada pelo autor aponta para a necessidade de criação de novas narrativas, com a pretensão de estimular a criatividade com outras opções teóricas e metodológicas para além daquelas que incorporamos e realizamos.



No capítulo III, Teixeira apresenta um mapeamento da produção científica da área de PPGS (1975-2010), destacando quatro subáreas: política de saúde, planejamento em saúde, gestão de sistemas e serviços de saúde e modelo de atenção à saúde. A distribuição dos temas foi influenciada pelos processos de Reforma Sanitária e institucionalização do SUS, indicando que estes processos constituíram em experimentações e consolidação de saberes oriundos da criação de grupos e diversificação de linhas de pesquisa; e de práticas políticas e de gestão em diferentes cenários governamentais.



As perspectivas históricas na análise das políticas de saúde são tratadas no capítulo IV, por Machado e Lima. Exploram algumas contribuições teóricas e metodológicas do campo da história em dois eixos das ciências sociais, institucionalismo histórico e histórico-comparativa, com o propósito de instigar as análises das políticas de saúde.



As contribuições da arqueologia do saber de Michel Foucault são analisadas no capítulo V, por Baptista, Borges e Matta. Os autores partem da noção de genealogia e história, inspirados em Foucault que dialoga com Nietzsche, cujos argumentos críticos enfatizam a compreensão de que a investigação das causas não deve acontecer de forma linear e mecânica, fundamentando que nas razões formais também devem ser consideradas as motivações, relações afetivas e psicológicas entre as pessoas. O objeto de pesquisa não pode ser desarticulado destas relações. A genealogia nietzschiana produziu inquietações em Foucault1 que edificou um método de análise que identifica como arqueológico. Assim, parte-se de questionamentos específicos de práticas concretas e seus saberes produzidos, sem verdades determinadas a priori. A arqueologia recorre à constituição de saberes, sem descrição da temporalidade dos fatos, sempre em busca do novo, da potência, do inusitado.



Estudos de políticas de saúde fundamentados na teoria da estruturação de Giddens são abordados no capítulo VI por O’Dwyer. Uma das principais formulações da teoria sustenta-se na ideia de que o domínio do estudo básico das ciências sociais não está baseado na experiência do ator, individualmente, nem na existência de qualquer forma de totalidade social, pois situa o ordenamento das práticas sociais no tempo e no espaço, como raízes da constituição do sujeito e objeto social. Nesse sentido, é apresentado um estudo sobre a atenção às urgências, em que foi possível analisar a forma como estão estruturadas e os processos de edificação de novas práticas.



As metodologias qualitativas nas pesquisas de avaliação são discutidas por Deslandes no capítulo VII. Analisa que os programas e serviços de saúde são edificações técnicas e simbólicas constituídas na prática por meio de suas experiências e interações entre sujeitos. As suas manifestações estão presentes nos diferentes discursos e ações. Os argumentos são sistematizados em três vertentes, balizadas no pensamento compreensivista: a avaliação de quarta geração, filiada ao construtivismo e à hermenêutica-dialética; a avaliação por métodos mistos, com aderência ao paradigma autodesignado como pragmatista; e a avaliação por triangulação de métodos que se filia às tradições filosóficas da hermenêutica e da dialética.



Sá e Azevedo, no capítulo VIII, propõem uma abordagem clínica psicossociológica na pesquisa sobre o cuidado em saúde e o trabalho gerencial. Busca-se, portanto, estabelecer interfaces com as contribuições da psicossociologia francesa, a teoria psicanalítica sobre os processos intersubjetivos e grupais e a psicodinâmica do trabalho. O texto apresenta duas situações pesquisadas em que se articula com a abordagem clínica psicossociológica: uma pesquisa realizada na porta de entrada e no serviço de emergência de um hospital público e a prática gerencial de hospitais públicos de um determinado município. Os estudos revelam os seus múltiplos sentidos possíveis conectados com o olhar do pesquisador. O entrelaçamento dos sentidos é representado pelas narrativas dos diferentes sujeitos que compõem a cena institucional.



A última parte é demarcada por temas específicos. A discussão sobre saúde e relações internacionais é pauta do capítulo IX, de Almeida, Lima e Marcondes, cujo conteúdo remete à posição que a saúde tem ocupado nas relações internacionais, envolvendo diferentes dimensões de análise (política, econômica, operacional e ideacional), exigindo esforços em relação a ações articuladas entre países, instituições e pessoas com diferentes ideias para compor ações e projetos, nos diferentes espaços de poder: “uma nova geopolítica da saúde”.



As bases teóricas e metodológicas relacionadas à temática de gestão do trabalho e educação em saúde são enfocadas no capítulo X, por Machado, Vieira e Oliveira. A gestão do trabalho pauta a discussão em três eixos estruturantes: o trabalho, a educação e a regulação, com aportes qualitativos e quantitativos. Nos estudos do campo das profissões observam-se aproximações com a teoria sociológica com os objetos de estudo e os dados que emergem do trabalho de campo, buscando conectar as dimensões conceituais da sociologia das profissões com o mundo do trabalho em sua dinâmica social.



O tema da avaliação de iniciativas em promoção da saúde consiste no XI capítulo, de Tavares e outros. A metodologia sustenta-se na concepção de redes sociotécnicas e de ator-rede concebida por Latour. Significa que o contexto, tanto interno quanto externo, espaços de consolidação, ampliação ou expansão dos elos da rede são compreendidos como um conjunto de aspectos e processos que influenciam ou tem capacidade de influenciar o desenvolvimento do programa. O envolvimento dos diferentes atores possibilita a construção e a desconstrução dos fatos. Os elos entre os diferentes atores se dão nas ações e nas manifestações discursivas, em nível individual e coletivo.



Pereira e outros recortam a assistência farmacêutica e demandas judiciais de medicamentos como objeto de análise no XII capítulo. Tema pulsante, pois traz a baila as demandas judiciais de medicamentos impetradas contra o SUS, a partir da análise de estudos empíricos realizados no Brasil, desde 2000. Discutem os principais instrumentos e métodos utilizados na identificação de variáveis, com potencial para estudos comparativos e outras análises mais amplas do fenômeno em questão.



Tendo em vista a síntese de cada capítulo, a obra é disparadora para ampliar as abordagens e métodos de pesquisa envolvendo a área de PPGS, reconhecendo sua diversidade e multiplicidade. O livro nos instiga a pensar como Santos2: [...] Os cientistas comprometidos lutam pelo aumento da comunicação e da argumentação no seio da comunidade científica e lutam, por isso, contra as formas institucionais e os mecanismos de poder que nela produzem violência, silenciamento e estranhamento [...].



Enfim, a obra sinaliza que é tempo de avaliar o que já foi construído, sempre aberto a novas possibilidades.

Referências
1
Foucault M. Arqueologia do saber. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010.
2
Santos BS. Introdução a uma Ciência Pós Moderna. 4ª ed. São Paulo: Graal; 2003.

Métodos de pesquisa: manual de produção científica



Silvia Regina 
Viodres InoueThais 
Laudares Soares Maia
Koller, SH; Couto, MCPP; Hohendorff, JV. Métodos de pesquisa: manual de produção científica. Porto Alegre: Penso, 2014.


Organizado por Silvia Koller, Maria Clara Couto e Jean Hohendorff, com a colaboração de experientes pesquisadores, o livro Métodos de Pesquisa - Manual de Produção Científica é direcionado a estudantes de graduação, pós-graduação, docentes e pesquisadores que têm o objetivo de escrever e publicar resultados de pesquisas ou revisões de literatura, como, também, o manejo de tempo e gestão de equipes de pesquisa. A experiência profissional dos autores proporciona ao leitor, além dos aspectos técnicos da escrita científica, elementos do contexto atual acadêmico apresentados em doze capítulos, distribuídos em três partes: escrita científica, pôsteres e apresentações orais e administração da vida acadêmica.



Os desafios da escrita científica e sua diferença de outros estilos textuais são explorados no primeiro capítulo. No decorrer do capítulo, os autores discutem e estruturam as etapas que antecedem a preparação do artigo científico e os elementos que o texto deve oferecer para que seja relevante à comunidade científica. Ainda na elucidação de como deve ser escrito o texto, são discutidos a validade científica das referências, o fator de impacto e a escolha da revista onde se pretende publicar. O autor expande as contribuições do campo metodológico encontradas nos manuais de escrita ao incluir esses dois últimos aspectos que permitem ampliar ou limitar a disseminação do conhecimento, o diálogo entre os pares e conferir visibilidade aos pesquisadores e seus projetos.



Nos capítulos dois e três, os autores desmistificam um equívoco comum entre acadêmicos iniciantes: a construção textual da revisão de literatura (como elemento de dissertações e teses), o artigo de revisão de literatura e a revisão sistemática. A revisão de literatura consistiria em avaliações críticas do material já publicado, com finalidade de organizar, integrar e avaliar estudos relevantes sobre o tema escolhido. Na revisão sistemática, os ‘participantes’, como colocado pelos autores, são os estudos, e sua finalidade é sumarizar pesquisas prévias para responder questões, testar hipóteses ou reunir evidências. O emprego de elementos gráficos, como quadros comparativos e trechos de artigos com apontamentos didáticos, são recursos que permitem ao leitor acesso rápido às etapas da revisão de literatura, bases especializadas em revisões sistemáticas e bases de dados. Ao longo do segundo capítulo, com otimismo e sem comprometer o interesse do leitor, o autor aponta os desafios concretos que o leitor (futuro pesquisador) enfrentará na elaboração de um artigo de revisão de literatura, assim como as negativas das revistas para publicação.



A elaboração de artigos empíricos e de resumos é detalhada nos capítulos quatro e cinco. A escolha minuciosa dos periódicos onde se pretende publicar o artigo, seguida da ordem e especificações de cada sessão do texto são acompanhadas de: exemplos das sessões que compõem o manuscrito, exemplos de dados e encadeamento de informações na introdução, e a revisão de literatura. Os exemplos são organizados em caixas de texto com comentários que propiciam, ao leitor, reflexões sobre como introduzir o tema de forma clara e objetiva. Os autores ampliam suas contribuições apresentando ferramentas e técnicas para planejar, escrever, revisar e tornar o artigo com ‘grandes chances de publicação’.



A primeira parte do manual é finalizada com três capítulos: o primeiro dedicado à organização de livros e os demais ao plágio, e, por fim, erros comuns da escrita em língua portuguesa. No capítulo seis, é disponibilizado um guia de perguntas que auxiliam na definição dos capítulos e dos autores e da linguagem a ser utilizada. Para facilitar o contato inicial com potenciais ‘colaboradores’, o capítulo oferece diferentes modelos de carta convite para autores e um modelo de ficha de avaliação dos capítulos. Embora a leitura dos capítulos em ordem aleatória seja plenamente possível, para o leitor que opta pela leitura sequencial do manual, um melhor ordenamento lógico seria obtido com o encerramento da primeira parte do manual com o capítulo ‘Plágio acadêmico’.



Transcendendo as discussões e técnicas da escrita e da publicação, os autores abordam, na segunda e terceira parte do manual, respectivamente: outras modalidades de comunicação acadêmica, a administração do tempo e das atividades acadêmicas e a formação e gestão de grupos de pesquisa. Na segunda parte do manual, o capítulo nove ‘Como preparar um pôster científico’ é um guia de organização do texto, das sessões e aspectos gráficos do pôster científico. Na sequência, a preparação para a apresentação oral e a própria apresentação são conduzidas como habilidades essenciais e modalidade mais elementar de disseminação do conhecimento científico e comunicação entre os pares. Na seção, se encontram: a estrutura da apresentação, os tipos de apresentação e sua adequação a públicos específicos; o manejo das respostas emocionais, como a ansiedade frente à exposição, e a administração da resposta emocional do público para despertar e manter o interesse contínuo. Os dois capítulos oferecem elementos e discussões que permitem ao leitor instrumentalizar-se para apresentações de projetos, versões parciais ou finais de pesquisas, dentre outras modalidades de comunicação e outras modalidades de apresentações orais, como aulas e palestras.



Na terceira parte do manual, os autores dedicam os dois capítulos à administração de atividades de rotina de estudantes e docentes da pós-graduação e gestores de grupos de pesquisa acadêmica, como: reuniões de departamento e de grupos de pesquisa, supervisão de alunos, atividades de ensino, escrita de propostas para editais de pesquisa, execução de pesquisas, escrever artigos e capítulos de livros, revisar artigos para periódicos, preparar palestras, e a formação e gestão de equipes de pesquisa. O tema do último capítulo parte da premissa de que o trabalho científico tem como condição o trabalho em equipe. No capítulo breve, os autores apontam estratégias para delinear o perfil desejável da equipe, captar o aluno e programar as atividades de médio e longo prazo do grupo.



Clareza e objetividade, quadros e esquemas explicativos são adequadamente empregados em todo o manual. O conteúdo dos capítulos é detalhado, oferece um passo a passo para elaboração de diferentes tipos de textos cientificos, orientações essenciais para produção e manejo de apresentação oral e gestão de equipes. O Manual de Produção Científica cumpre o objetivo de fornecer subsídios metodológicos e críticos para pesquisadores iniciantes e mais experientes na produção de manuscritos e comunicações científicas.

Capital et idéologie



Capital, ideologia e uma história do mundo sob o prisma da desigualdade*

Rafael Palma Mungioli

Piketty, T.. Capital et idéologie . Paris: Seuil, 2019.




Após lançar Capital au XXIe siècle em 2013, o economista Thomas Piketty tornou-se o pesquisador sobre desigualdade mais conhecido no mundo. Pois ainda que muitas críticas tenham sido dirigidas a pontos teóricos da sua obra, houve, em geral, consideração positiva pelo volumoso trabalho empírico do autor, que incorreu em grande esforço para tratar dados sobre renda e propriedade oriundos de diversos países, e apresentou claros indícios de pioras distributivas em nações centrais ao sistema capitalista pelo menos desde a década de 1980.



Com a referida publicação, colocou-se um desafio de difícil evasão para os defensores da liberalização econômica, pois não se tratava de um trabalho oriundo da hermenêutica marxista ou de modelos heterodoxos pouco conhecidos fora da academia. Tratava-se da obra de um economista convencional, construída sobre uma base de dados relativamente consistente e aberta. Mais grave: os dados diziam respeito sobretudo a nações avançadas do sistema internacional. Não era possível deixar de responder em algum grau às abundantes evidências de deterioração dos seus indicadores distributivos durante o domínio da agenda liberal. Abriu-se então para o público o debate sobre a distribuição do produto social entre as classes. E daí vem a explicação para o sucesso - e relevância - de Piketty (2013).



Passados pouco mais de seis anos do lançamento daquele livro, Piketty reabriu para o público seus estudos sobre a desigualdade com um livro maior e mais ambicioso. Capital et idéologie, lançado em fins de 2019 na França, apresenta-se como uma continuação à Capital au XXIe siècle. Além de complementar seu trabalho anterior com novos dados, Piketty se coloca agora o desafio de estudar ideologias que justificaram a desigualdade ao longo da história humana. Seu objetivo último, com isso, é refletir sobre a sociedade contemporânea e sobre como transformá-la. Não se trata de meta simples e, a despeito das suas 1198 páginas, o livro terá dificuldade de cumprir o que propõe - o que não significa que não tenha méritos.



Na introdução de Capital et idéologie, Piketty define ideologia como um conjunto de ideias e discursos que visam descrever como deveria se estruturar a sociedade a partir das concepções reinantes sobre o regime político e a propriedade. O autor pontua que a história da humanidade pode ser lida como uma história de regimes desiguais, nos quais os respectivos sistemas legal, fiscal, educacional e político remetem às representações da sociedade sobre justiça social e econômica. Para Piketty, há uma autonomia da esfera das ideias, que determina a direção das instituições. Daí que ele considere que “a desigualdade não é econômica ou tecnológica: ela é ideológica e política” (p. 20).



Diante da recente piora dos índices distributivos, que redundam em perda de qualidade de vida e instabilidade social em muitos países, o autor questiona o papel da propriedade privada nesse movimento, e visa propor alternativas para sua distribuição. Para tanto, lhe parece essencial entender por que coalizões políticas em favor de regimes mais igualitários, que tiveram tanta força no século XX, perderam o fôlego - e que tipo de projeto poderia reavivá-las.



Esse grande número de desafios postos pelo autor ainda na introdução do livro indicam a dificuldade que ele terá de trabalhar todos de forma teoricamente embasada, e seria provavelmente suficiente para fazer recuar indivíduos menos ambiciosos. Mas Piketty seguirá a empreitada apresentando Capital et idéologie como um trabalho dividido em quatro partes e 17 capítulos.



A primeira parte do livro foca-se na experiência europeia de transição do ancien régime para as sociedades liberais em que a propriedade privada torna-se o eixo central de organização da atividade econômica. Inicialmente, Piketty apresenta dados sobre perda de poder e relevância econômica do clero e da nobreza conforme a estrutura do Estado evoluiu. Não há, contudo, uma explicação unívoca para tal evolução e para a centralidade que a propriedade privada adquirirá no sistema econômico. Alguns fatores parecem ser determinantes - o avanço tecnológico, a atuação da igreja católica, a disputa interestatal europeia - mas a grande complexidade do tema, que remete ao surgimento do modo de produção capitalista1, não permite tratamento apenas pela inferência estatística que o autor privilegia.



A despeito da ausência de debates teóricos estruturantes, essa parte do estudo apresenta informações de grande interesse sobre o período, com destaque para o capítulo 3, onde Piketty expõe sua leitura da Revolução Francesa, na qual o processo revolucionário teria girado majoritariamente em torno da definição de propriedade. Discussões sobre propriedade justa, as rendas com ela relacionadas, e o que seria controlado pelo Estado teriam dominado a política francesa entre 1789 e 1795. O autor mostra então que, do ponto de vista de redistribuição de renda e propriedade, a Revolução foi bem limitada, pois sua resposta à desigualdade, ainda que residisse na diminuição do poder do clero e da nobreza, tornou a propriedade privada o eixo estruturante da vida em sociedade. O arcabouço institucional aí originado levará a sociedade francesa, ao final do século XIX, a apresentar altos níveis de desigualdade, conforme se aponta no capítulo 4.



A segunda parte do livro se detém no exame de sociedades escravagistas e coloniais, sob a justificativa de que a desigualdade contemporânea deve muito à política colonial europeia e às respectivas estruturas econômicas baseadas no trabalho escravo. É especialmente interessante, nesse trecho, a discussão sobre a dificuldade de abolir a escravidão em função do caráter quase sagrado da propriedade privada nessas sociedades. Há também uma análise detalhada da história da Índia, no capítulo 8, que coloca em evidência o papel do imperialismo inglês no reforço do sistema de castas e da desigualdade no país - mas que ocupa mais espaço do que deveria no conjunto da obra. Esta seção do livro termina ligando as origens do colonialismo à formação dos Estados Nacionais e aos interesses guerreiros da nobreza europeia, que levarão à “grande divergência” em termos de riqueza dos países centrais do sistema capitalista. Afinal, como nos pergunta Piketty: a revolução industrial na Inglaterra teria ocorrido sem o algodão produzido pelos escravos na América?



A terceira parte do livro se propõe a analisar a maneira pela qual as sociedades avançadas do sistema capitalista se tornaram mais igualitárias durante o século XX. O autor retoma então muito da análise desenvolvida em Piketty (2013), apontando a importância da distribuição da propriedade para diminuir a concentração de renda nos EUA e na Europa. Seu argumento é que após a sequência de conflitos e crises da primeira metade do século XX, a desconfiança com o sistema capitalista centrado na propriedade privada teria se espalhado pelo mundo, de forma que países da periferia começaram a nacionalizar empresas e declarar moratórias em dívidas, enquanto os próprios países centrais passaram a promover uma crescente intervenção nas suas economias, impondo taxações fortemente progressivas sobre renda e propriedade, além de permitir, em alguns casos, a participação de trabalhadores nos conselhos das empresas - política da qual Piketty é particularmente entusiasta.



O medo da alternativa soviética também é apresentado como fator que teria levado à maior tolerância com a taxação da propriedade e, no capítulo 12, Piketty trata das experiências do socialismo real. Ele aponta que a história soviética, sobretudo no período stalinista, é fruto de uma posição ideológica de sacralização da não-propriedade privada. Após a opção pela centralização de praticamente toda propriedade no Estado, a União Soviética terá grande avanço produtivo, sobretudo no período 1930-1960; mas outros problemas, com destaque para a criminalização de pequenas atividades econômicas e as arbitrariedades dos burocratas, tornam a experiência um tanto problemática na opinião do autor, que fará então uma defesa da propriedade regulada face à experiência comunista. Segundo ele, haveria alguns domínios da vida em que a diversidade de preferências justificaria a posse privada de meios de produção e seu uso sob regimes concorrenciais regulados. O processo de desmantelamento da URSS, porém, é criticado por ter feito da Rússia um dos países mais desiguais do mundo. A transição chinesa para uma “economia mista”, com grande participação do Estado na atividade produtiva é tida como mais interessante. O sistema chinês, contudo, é visto como altamente desigual, dotado de um regime tributário pouco progressivo e excessivamente dependente do poder discricionário do partido comunista para conter as tensões advindas da desigualdade.



O capítulo termina com uma perspectiva sobre o Leste Europeu, onde hoje se reúnem, segundo Piketty, duas frustrações: a frustração com o período comunista e a frustração com a União Europeia. Dessas frustrações emergiria o nacionalismo de tendência fascista que atualmente viceja na região, onde o principal conflito político se dá entre conservadores-liberais e conservadores-nacionalistas - também decorrência, para o autor, do fechamento do horizonte de redução das desigualdades por parte da esquerda.



A terceira parte termina no capítulo 13, falando das diversas formas de desigualdade que tomam corpo sob o “hipercapitalismo” no início do século XXI, quando há claras evidências de uma piora geral na distribuição de renda em todos as regiões do globo. Aqui vamos além dos desenvolvimentos de Piketty (2013): agora a financeirização e internacionalização da riqueza aparecem como obstáculos à compreensão do verdadeiro nível das desigualdades globais, pois somas enormes de recursos seriam cotidianamente transferidas para paraísos fiscais, fugindo à tributação e desestruturando a redistribuição de renda e serviços dos Estados - algo especialmente perverso nos países mais pobres.



Na quarta e última parte do livro, passa-se para uma avaliação de como a clivagem política “classista” modificou-se entre os anos 1990 e 2020. O autor espera, a partir dessa análise, rascunhar o projeto de um novo socialismo participativo para o século XXI. Nos capítulos 14 e 15, a principal preocupação de Piketty é compreender por que os partidos socialdemocratas dos países centrais não são mais os partidos da classe trabalhadora e dos mais pobres em geral. Após a análise de dados de França, EUA e Grã-Bretanha, a evidência é de que as classes mais baixas desses países são menos mobilizadas politicamente hoje do que no passado, e boa parte da base eleitoral remanescente dos partidos de centro-esquerda seria, na verdade, oriunda da população que melhorou de vida entre os anos 1950 e 1990, quando as políticas sociais permitiram a entrada de um grande contingente nas faculdades e na classe média. A partir daí, a pauta da esquerda teria ficado mais próxima dessa elite ascendente do que dos menos favorecidos - em especial dos trabalhadores industriais. Desse ponto de vista, a clivagem entre esquerda e direita, hoje, acaba respondendo a uma divisão dentro da própria elite sobre o tipo de meritocracia preferida - dos estudos ou dos negócios, opondo uma esquerda “brahmane” a uma direita pró-mercado. Uma análise sobre o comportamento eleitoral na França recente mostra ainda que a clivagem classista estaria sendo substituída por 4 posicionamentos políticos que se combinam: internacionalismo x nativismo e igualdade x desigualdade.



O capítulo 16 analisa a ressurgência dos movimentos políticos nacionalistas na Europa, passando à discussão de como a UE poderia ser reformada de maneira que a superação da propriedade privada pudesse tornar-se um programa político factível. Para Piketty, o nacionalismo de extrema direita que ganha corpo na Europa é resultado da falta de perspectivas de superação da propriedade privada em uma conjuntura de avanço da globalização. Sucintamente, a esquerda teria se conformado com a direção geral da internacionalização desigual do capitalismo. Diante da falta de perspectivas de melhora de vida para os mais pobres nesse projeto político, eles estariam apoiando os nacionalistas porque ao menos estes propõem alguma reação à globalização, ainda que seja a desumana e ineficaz contenção da imigração. O autor sugere que uma possível mudança de rumo deveria se basear em um projeto de reforma da UE visando aumentar a socialização da propriedade em seu âmbito. Destacam-se, porém, as dificuldades de um tal projeto, sobretudo porque uma nova estrutura precisaria legislar sobre a política fiscal e a federalização das dívidas dos países integrantes, além de unificar as políticas social e climática. O autor deixa como sugestão para erguer tal estrutura uma (complexa) integração dos parlamentos nacionais europeus.



Ainda neste capítulo, Piketty trata da relação entre política e desigualdade em outros países, com destaque para o passado recente do Brasil. Ele aponta que o Partido dos Trabalhadores (PT), um partido inicialmente de intelectuais e trabalhadores sindicalizados, se tornou o partido dos mais pobres após a chegada de Lula ao poder. A queda do PT em 2016 parece inscrever-se em uma retomada do poder das velhas elites brasileiras, mas o autor também acha que o desgaste natural do partido no governo e sua incapacidade de evoluir nas políticas distributivas minaram seu apoio, bem como a corrupção - ainda que esta não seja exclusividade do PT. Ao analisar os dados de distribuição de renda para o País no período 2002-2014, destaca-se a melhora relativa dos 50% mais pobres, que ocorreu também para o 1% mais rico. Ou seja: Piketty aponta que o Brasil do período Lula e Dilma redistribuiu renda, mas não às custas da elite mais abastada - o que é atribuído sobretudo à regressividade dos impostos no País.



Esta parte do livro termina, no capítulo 17, com uma discussão sobre o que seria uma sociedade justa. Piketty a define como aquela que permite ao conjunto de seus membros acessar ao maior número possível de bens fundamentais. Segundo o autor, tal sociedade só pode ser alcançada a partir de uma concepção de propriedade justa - uma propriedade que circule na sociedade e sirva ao compartilhamento do poder, em um processo permanente de socialização do capital via tributação e modificação nas regras societárias. Esta seria a base para a superação do capitalismo, que dependeria ainda da socialização de serviços e de articulação internacional.



Em sua conclusão, Piketty afirma que a constatação de Engels e Marx de que a história de todas as sociedades até hoje é a história da luta de classes continua pertinente, mas que ele a reformularia, estabelecendo que a “história de todas as sociedades até hoje é a história da luta entre ideologias e da busca de justiça”. Ele reforça, assim, a concepção que permeia o livro e se repete inúmeras vezes: são as ideias que possuem papel determinante na história humana, pois a posição de um indivíduo na sociedade não bastaria para forjar, nele, uma teoria da sociedade justa. À diferença da luta de classes, a luta das ideologias se apoiaria “no compartilhamento dos conhecimentos e experiências, no respeito ao outro, na deliberação e na democracia” (p. 1192). Sendo a história das sociedades humanas uma história da busca de justiça, só a confrontação minuciosa de experiências históricas e o debate aberto permitiriam o progresso nessa direção.



Ao final da leitura, certas críticas parecem inevitáveis. No que tange ao estilo, destaca-se certa prolixidade e afeição a digressões do autor, que nem sempre se integram bem à lógica de exposição do livro. Do ponto de vista teórico, o mais notável é a ausência de embasamento em certas interpretações sobre comportamento político e social por parte de Piketty. Falta-lhe, na verdade, um arcabouço teórico capacitado a lidar com o principal problema colocado na obra, pois Capital et Idéologie ressente-se da ausência de uma teoria consistente sobre a acumulação de capital e do papel da ideologia nos conflitos sociais. Se, como aponta Harvey (2014), a falta de uma dinâmica claramente capitalista já era problemática na análise de Piketty (2013), a questão agora toma outra dimensão exatamente pelo papel que a ideologia deveria assumir no novo estudo - mas que não assume, pois ela não se integra a nenhuma interação social específica, parecendo apenas pairar sobre nossas cabeças, como se pudéssemos escolher modificá-la livremente2.



Outras críticas menores poderiam ser feitas ao livro. De toda forma, a leitura de Capital et idéologie é fortemente aconselhada a todos que se interessam pela questão da desigualdade e por sua redução. Isso porque Piketty produziu um compêndio da História sob o prisma da desigualdade. Seus lapsos teóricos e suas sugestões em termos de política podem ser problemáticos, mas o livro abre caminhos para uma grande discussão sobre alternativas mais igualitárias para a sociedade - algo que, no atual contexto, é salutar.

Referências bibliográficas
BRISSET, N. Capital et idéologie: une critique. GREDEG, 2020. (Working Papers Series, n. 2020-04). Disponível em: Disponível em: https://ideas.repec.org/p/gre/wpaper/2020-04.html Acesso em: 20 mar. 2021.
HARVEY, D. Taking on ‘Capital’ without Marx: what Thomas Piketty misses in his critique of capitalism. In These Times, 20 maio 2014. Disponível em: Disponível em: http://inthesetimes.com/article/16722/taking_on_capital_without_marx Acesso em: 20 mar. 2021.
PIKETTY, T. Le capital au XXIe siècle. Paris: Seuil, 2013.


1
Piketty, aliás, definirá capitalismo como “a forma particular do proprietarismo na época da grande indústria e dos investimentos financeiros internacionais” (p. 189). Em sua análise, portanto, a ideologia defensora da propriedade privada (o “proprietarismo”) tem precedência sobre os aspectos materiais do modo de produção.
2
Esse ponto é desenvolvido por Brisset (2020).
*
Resenha de: Piketty, T. Capital et idéologie. Paris: Seuil, 2019. As informações, opiniões e análises contidas neste documento são de única e exclusiva iniciativa do autor e não representam a opinião, estratégia e posicionamento do Sistema BNDES sobre os assuntos tratados.
Revista Economia e Sociedade

Dos barões ao extermínio: Uma história da violência na Baixada Fluminense





‘O espaço do coração é a compaixão’: Lições da Baixada Fluminense para a violência política no Brasil atual1

Leandro Dias de Oliveira

ALVES, José Cláudio Souza. Dos barões ao extermínio: Uma história da violência na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Consequência, 2019




É advinda da Baixada Fluminense, região historicamente marcada pela condição de periferia metropolitana e com índices assombrosos de diferentes crimes, uma análise original, profunda e inquietante sobre o espólio político da violência no Brasil contemporâneo. Ao relançar, por meio de uma bela edição atualizada e ampliada, Dos barões ao extermínio: Uma história da violência na Baixada Fluminense (Consequência, 2019), José Cláudio Souza Alves, professor titular do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), permite ao leitor interpretar as relações entre política e violência, civilização e barbárie, legalidade e ilegalidade do uso da força nas áreas pobres, negligenciadas economicamente e excluídas socialmente da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). Todavia, talvez de forma surpreendente até para o próprio autor, a obra se trata, em nossa humilde leitura, de uma belíssima interpretação do Brasil atual, que exalta autoritarismos, desvaloriza vidas humanas, estimula o comércio de armas e sucumbe a uma espécie de “totalitarismo socialmente construído” (ALVES, 2019, p. 67).



Para interpretar o Brasil atual, há que se atravessar o limite entre morro e asfalto, favela e cidade, casas de condomínio e barracos (ou mocambos, cortiços, malocas): cada vida sumariamente supliciada deixa um rastro de sangue que contamina o espaço vivido, cada corpo ensanguentado tem nome, sobrenome, pais, avós, filhos, amigos. José Cláudio Alves sabe perfeitamente disso. Por esse motivo, seu livro muda o eixo interpretativo: não é escrito por quem teme que o transbordamento da violência dos locais inóspitos abale a segurança de suas privatopias contemporâneas (HARVEY, 2006[2000]), mas justamente por quem reconhece o impacto da brutalidade em seus semelhantes - alunos, vizinhos, amigos. Da mesma forma, a Baixada Fluminense não lhe é estranha ou um vizinho indesejado, mas o lugar de sobrevivência, de lutas políticas, da família, dos afetos, do trabalho e da produção intelectual e docente. A militância do autor é, portanto, genuína, corajosa e afetuosa, pois, afinal, está falando de sua própria vida.



Em Dos barões ao extermínio, a violência é uma mescla de organização política, construção econômica e prática cultural que não admite nenhuma oposição, tornando qualquer voz dissonante uma verdadeira inimiga. É a mediadora nas redes ilegais cotidianas de múltiplas escalas e está presente tanto nos crimes prosaicos que afligem o cidadão comum como nos grandes esquemas de contravenção, que envolvem as estruturas oficiais dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A violência tem face, documentação civil e registro de pessoa jurídica, não importando se a vestimenta envolve o uso de máscaras, capuzes, toucas, fardas, ternos ou roupas de grife. A violência está presente nas nefastas e constantes imagens de corpos destroçados compartilhadas de forma veloz nas redes sociais como entretenimento, mas também no próprio julgamento subsequentemente realizado pelos justiceiros de plataformas de mensagens instantâneas, que justificam, com argumentos diversos e nauseantes, a bestialidade de tais atos. Decerto, uma sociedade que “banaliza, ridiculariza, espezinha, condena e justifica as mortes que assiste” (ALVES, 2019, p. 58) é autofágica, e o marketing totalitário do “bandido bom é bandido morto” acaba lastreado pelo sangue dos mais pobres, das populações negras e espacialmente periferizadas, como um pacto de ódio perene que jamais deve ser menosprezado.



É impossível dissociar a privatização da violência, por meio da territorialização faccionalizada de maltas de narcotraficantes e de organizações de extermínio, dos dividendos colhidos pelos tempos de insegurança, que estimulam, justificam e permitem que comerciantes se associem a formas de proteção compulsória miliciada. Da mesma maneira, se a história da Baixada Fluminense revela que um regime de terror se constitui no impedimento de qualquer oposição, torna-se impossível não relacionar tal observação aos disparos recentes contra janelas em meio ao “panelaço” contestatório à política do executivo nacional2. Quando José Cláudio Alves clama por visibilidade e reconhecimento da expressão numérica da violência3 na Baixada Fluminense, logo articulamos com a atual relativização dos impactos da Covid-19 nas periferias, junto às deliberadas subnotificações e ocultações dos números de contaminados e óbitos. Em tempos tão difíceis, é necessário atestar que a propagação da Covid-19 na Baixada está baseada em um receituário nefasto que inclui a própria incapacidade das camadas mais pobres da população de compreenderem o tamanho do perigo a que estão se expondo ao saírem de suas casas e, de forma ainda mais pungente, mesmo entendendo o real perigo a que estão submetidos, já não se importarem mediante a dureza de suas próprias vidas. Os municípios da Baixada, com uma população adensada, precárias condições de vida e instalações médico-hospitalares, tanto da rede pública quanto da privada, já sobrecarregadas em dias comuns, se tornam espaços privilegiados de contaminação e se revelam o arquétipo sinistro da falta de isolamento e da suscetibilidade à Covid-19, se constituindo como um triste laboratório pandêmico sobre a resistência de cidades da periferia global a uma pandemia4 (FORTES, OLIVEIRA e SOUSA, 2020; ROCHA, 2020).



Assim, o livro percorre o tempo dos fazendeiros-barões da cana-de-açúcar e do café, que instituíram a gênese de um coronelismo poderoso cuja brutalidade subjugava e dizimava escravos e permitia a composição de uma nobiliarquia, que escolhia administradores, organizava câmaras, concedia títulos de nobreza e postos políticos da região. Junto à malária e a outras doenças que dizimava seus habitantes5, o emprego da violência tão recorrente era somado à tênue composição de poder com base no controle da “terra-território”, em uma região transformada em passagem ferroviária de produtos. Neste cenário de exclusão, cuja fluidez territorial de riquezas implicava na contenção da viscosidade (ver SANTOS e SILVEIRA, 2001) da população local, os barões-fazendeiros-senhores passam a temer o banditismo dos escravos recém-libertos, pois, enfim, poderiam almejar vingança. O processo civilizatório traz consigo o germe do barbarismo (KEANE, 1996apudALVES, 2019) e o monopólio da violência pelo Estado (WEBER, 1963[1919] apud ALVES, 2019); ou, em outras palavras mais objetivas, “os bandidos são os outros”.



O advento do século XX reforça os enlaces econômicos entre a metrópole e a periferia e transforma, com todos os problemas do termo, os municípios da Baixada Fluminense em cidades-dormitórios6, tornando a linha férrea responsável pelo transporte de outro tipo de mercadoria: os trabalhadores pobres, que pendulavam entre Nova Iguaçu e seus distritos e a cidade do Rio de Janeiro. O crescimento demográfico concernente ao processo, sem qualquer associação a grandes mudanças na qualidade das instalações urbanas nessa “periferia da periferia” (ALVES, 2019, p. 111), institui novas disputas territoriais de poder na Baixada. Entre lutas camponesas e disputas partidárias, entre o coronelismo oligárquico e o clientelismo político, a região se transformou paulatinamente em uma zona conflagrada e compôs uma área submersa em uma verdadeira, histórica e estigmatizada “atmosfera de violência”.



As manobras políticas, o desapreço à democracia, o uso político das forças policiais para perseguição dos inimigos, a prática do nepotismo com ampla desfaçatez, o surgimento de “mitos” ancorados nas práticas bárbaras - como Getúlio de Moura e especialmente Tenório Cavalcanti, com sua indefectível metralhadora a tiracolo -, a criminalização burlesca do comunismo fantasmagórico - inefável e atemporal desculpa usada no enfrentamento político que estimula historicamente todo tipo de atrocidade vocabular e física - revelam como o combo “personalismo”, “ignorância política das massas” e “apreço pela violência” são estratégias historicamente vitoriosas na conquista de votos.



Francisco de Oliveira, que assina o prefácio-apresentação e esteve presente na banca da tese de doutoramento que originou Dos barões ao extermínio, destaca como especificidade da Baixada um grande saque descrito no livro ocorrido na década de 1960 na cidade de Duque de Caxias (Idem, ibid., pp. 144-151), que resulta na criminalização da pobreza e na constatação de que a violência aparece nitidamente como uma forma de domesticação dos desvalidos perenemente tratados como ameaças. Nesse cenário, a emersão dos grupos de extermínio incrustados nas estruturas do Estado durante a ditadura civil-militar no Brasil reverberou não no combate da contravenção, mas no seu controle e exploração político-econômica.



O advento do neoliberalismo na Baixada Fluminense não somente não rompeu com o signo do usufruto da violência na política local, como a aperfeiçoou e modernizou. A consolidação da Baixada como nova fronteira econômica e política da RMRJ, progressivamente tratada como nova centralidade no desenvolvimento fabril e terreno estratégico para o crescimento produtivo do estado, estimulou a aproximação de importantes figuras políticas de verniz elitista, como Fernando Henrique Cardoso, Marcello Alencar e Moreira Franco, e de lideranças locais e acusadas de uso de violência política, como os casos dos prefeitos Joca, em Belford Roxo, e Zito, em Duque de Caxias. Sob a falácia da mão invisível do mercado e da suposta desregulamentação espraiada, com o advento do neoliberalismo na Baixada Fluminense inúmeras redes passaram a ser operadas oligopolicamente por grupos controladores do território. Da internet com cabeamento ilegal às vendas de gás de cozinha e galões d’água, do comércio de terrenos assombrosamente portadores de documentação em áreas pertencentes à União à segurança privativa de comerciantes agora capilarizada pelos rincões das cidades, a cartelização empreendida por tais grupos só revelam, com extrema clareza, que as engrenagens do neoliberalismo combinam perfeitamente com autoritarismo e violência (HARVEY, 2008[2005]).



É possível tensionar algumas reflexões a partir de Dos Barões ao Extermínio:





1) Trata-se de uma fecunda, inconteste e dolorosa lição sobre as relações entre poder, violência e o espaço geográfico da Baixada Fluminense, atualmente transformada em nova fronteira do tráfico de drogas após a instalação das Unidade de Polícia Pacificadora (UPPs), que cada vez mais deixa patente que se tratou de uma política de segurança em áreas privilegiadas para investimentos políticos-midiáticos-financeiros na cidade do Rio de Janeiro. É necessário interpretar essa nova geopolítica dos espaços do crime e da violência - o exemplo das ramificações existentes entre as comunidades do Chapadão, do K11 e da Serra de Madureira é contundente7 -, e mesmo perceber que os objetos e as ações na Baixada Fluminense têm múltiplos significados: como exemplo, se a Rodovia Presidente Dutra (BR-116) é um fundamental linkage produtivo Rio-São Paulo, é também o corredor de transporte megarregional de cocaína;


2) A adoção de um léxico vocabular-conceitual que obriga os leitores a mergulharem na crueldade existente nos ritmos, ações e projetos da Baixada Fluminense. Tortura, seviciamento, execução, extermínio, chacina, dilaceramento, milícia são expressões que não devem ser depuradas, sob pena de se fazer com que parte importante daqueles que terão acesso a Dos barões ao extermínio não abandonem o conforto de seus lares encastelados protegidos pelas casamatas do aparato de Estado tão presente nos grandes centros; do mesmo modo, o uso impiedoso do idioma da violência inibe que a polidez do glossário acadêmico possa abrandar o duro cotidiano de quem vive a constância de execuções sumárias de toda espécie;


3) Há que se considerar a face violenta da reestruturação produtiva e dos investimentos em logística territorial, entendidas como um álibi para uma espécie de “acumulação por despossessão”8 fluminense (OLIVEIRA, 2018). A chegada de novas indústrias e modernas instalações de armazenamento fabril e translado de produtos, a construção de shopping centers, a emersão de condomínios quartelizados tornados esconderijos das classes médias e a inauguração e reforma de rodovias, ferrovias e grandes portos, como bem sabemos, não ocasionam melhor distribuição dos recursos e divisão mais igualitária dos lucros nem rompem com o desenvolvimento urbano-econômico concentrador e excludente (OLIVEIRA, 2015); todavia, além disso, são empreendimentos capazes de reforçar o terror institucional que, sob o epíteto da modernidade, sedimentam práticas violentas de controle do espaço. Assim como certas frações de classe e de capital, as facções criminosas passaram a entender a Baixada como uma genuína zona de reestruturação produtiva para seus negócios;


4) Dos barões ao extermínio é uma interpretação dura, necessária e pungente do Brasil atual, que celebra projetos de morte sob o signo de concepções nefastas de desenvolvimento, modernização e política econômica. Entre a manutenção da vida e a conservação dos circuitos de produção e acumulação de riquezas, a obra em tela revela o porquê de tantos brasileiros optarem pela segunda. José Cláudio Alves nos ensina - didaticamente, mas como um potente soco no estômago - porque o vilipêndio da vida ocorre nas camadas populares tão sujeitas à violência e, por conseguinte, nos faz compreender por que tantas pessoas das periferias menosprezam o perigo de contágio pela Covid-19;


5) Por fim, há uma necessidade premente de um debate sério, franco e democrático sobre segurança pública entre as forças progressistas brasileiras. Para quem todo o tempo é atingido drasticamente em suas vidas pela impunidade, corrupção policial, crime organizado, descrença política, ineficiência do Estado, arregimentação de crianças pobres pelo tráfico, penetração no e do mundo das drogas, mortes diversas, ação de agremiações de facínoras, não é possível esperar por soluções a longo prazo. É urgente a realização de uma reflexão profícua pelas forças progressistas sobre contenção de crimes, democratização de direitos para grupos vulnerabilizados, como negros, mulheres e LGBTQ+, recuperação prisional e políticas públicas de inclusão nas periferias.





Recorremos novamente ao prefácio assinado por Francisco de Oliveira, que fez indagações que permanecem atuais após 22 anos: “por que em outras situações não se produziu um quadro tão dramático como o da Baixada? Ou será que a própria mitificação da Baixada esconde o resto do Brasil?”(OLIVEIRA, 2019, p. 66). Cientes dos escritos de José Cláudio Alves acerca da força política de Tenório Cavalcanti e sua “Lurdinha”9, dos números falseados de mortos por diversas formas de assassinatos ou dos projetos de morte presentes nos discursos dos políticos locais, resta-nos inquirir: como um número tão expressivo de eleitores puderam eleger um sujeito tão violento e de atuação farsesca como seu representante político? Como é possível que um número tão grande de pessoas possa aceitar tacitamente tão evidente ocultação do número de cadáveres? Como a população, feita de gente simples e trabalhadora em maior parte, aceita tão passivamente um projeto político de morte? São questões atuais e, certamente, de difícil resposta.



Como tão bem ilustrou Carlos Drummond de Andrade, é necessário “pôr o pé no chão, do seu coração” na “perene, insuspeitada alegria de con-viver”. A aspereza presente em Dos barões ao extermínio é incapaz de ocultar a belíssima mensagem de solidariedade do autor a cada jovem assassinado, em grande parte negro, pobre, favelado. Muitos desses jovens não tiveram sequer a oportunidade de serem velados pelos seus familiares e, em grande parte, nem ao menos foram transformados em número e viraram “estatística” por não serem merecedores de investigações policiais. Vivemos em um país que garotos pobres e negros de 14 ou 15 anos são sumariamente executados como almas perdidas, mas homens de 20, 30 ou 40 anos, desde que brancos, ricos e de “famílias de bem”, são tratados como meninos mesmo quando cometem crimes bárbaros. A explosão de preconceitos que intitulam as cidades da Baixada Fluminense de “feias”, de “terras sem lei”, de “câncer vizinho”, não intentam disfarçar que tais qualificações são dirigidas não a prédios, ruas e praças, mas à grande massa de trabalhadores pauperizados, cuja beleza não é comportada nos padrões das emissoras de televisão e cujas marcas de suor não são retocadas em meio às agitadas agendas de trabalho diuturno.



Resta a sincera esperança de que obras formidáveis como esta possam significar, em meio à dor daqueles que perderam e perdem entes e amigos queridos todos os dias, a tão necessária reflexão sobre a humanidade que existe em nós mesmos. De nossa parte, que se reforce que é impossível não se emocionar com os relatos de cada vida ceifada presentes na obra10, porque, afinal, se o espaço do coração é a compaixão, ele sangra em meio à violência institucionalizada em discursos, ações e estruturas dos indivíduos e grupos em constante disputa por poder, território e riquezas.

Referências
ALVES, José Cláudio Souza. Dos barões ao extermínio: Uma história da violência na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.
ALVES, José Cláudio Souza. Dos barões ao extermínio: Uma história da violência na Baixada Fluminense. Duque de Caxias: APPH-CLIO, 2003.
ANDRADE, Carlos Drummond de. “O homem: As viagens”. In: Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992, pp. 382-383.
ARAGÃO, Luciano Ximenes; SILVA, Marcio Rufino. “Lugares da Covid e territórios do poder: Os casos de Duque de Caxias e Rio das Pedras”. OpenLab PPGIHD-UFRRJ, 2 de maio de 2020. Disponível em: https://www.ppgihd-open-lab.com/post/lugares-da-covid-e-territ%C3%B3rios-do-poder-os-casos-de-duque-de-caxias-e-rio-das-pedras
CHAUI, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.
DAVIS, Mike. O monstro bate a nossa porta: A ameaça global da gripe aviária. Rio de Janeiro: Record, 2006[2005].
FORTES, Alexandre; OLIVEIRA, Leandro Dias de; SOUSA, Gustavo Mota de. “A Covid-19 na Baixada Fluminense: Colapso e apreensão a partir da periferia metropolitana do Rio de Janeiro”. Espaço e Economia, ano V, n. 9, 2020. Disponível em: https://journals.openedition.org/espacoeconomia/13591
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HARVEY, David. O neoliberalismo: História e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008[2005].
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KEANE, John. Reflections on Violence. Verso: Londres/Nova York, 1996.
OJIMA, Ricardo; MARANDOLA JR., Eduardo; PEREIRA, Rafael Henrique Moraes; SILVA, Robson Bonifácio da. “O estigma de morar longe da cidade: Repensando o consenso sobre as cidades-dormitório’ no Brasil”. Cadernos Metrópole, São Paulo, vol. 12, n. 24, pp. 395-415, 2010.
OLIVEIRA, Francisco de. “Apresentação”. In: ALVES, José Cláudio Souza. Dos barões ao extermínio: Uma história da violência na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Consequência, 2019, pp. 65-68.
OLIVEIRA, Leandro Dias de. “A emersão da região logístico-industrial do Extremo Oeste Metropolitano fluminense: Reflexões sobre o processo contemporâneo de reestruturação territorial-produtiva”. Espaço e Economia, ano IV, n. 7, 2015. Disponível em: http://journals.openedition.org/espacoeconomia/1814
OLIVEIRA, Leandro Dias de. “Geografia do colapso: Crise e desestruturação produtiva na realidade metropolitana do Rio de Janeiro”. Revista Terra Livre, vol. 1, pp. 131-158, 2018.
ROCHA, André Santos da. “Globalização, gestão e acesso aos sistemas público e privado de saúde: A Baixada Fluminense no contexto da pandemia”. Espaço e Economia, ano V, n. 9, 2020. Disponível em: https://journals.openedition.org/espacoeconomia/12672
SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: Território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001.
SATIE, Anna. “Polícia investiga tiros disparados durante panelaço contra Bolsonaro em SP”. CNN Brasil, Nacional, 8 de abril de 2020. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/04/08/policia-investiga-tiros-disparados-durante-panelaco-contra-bolsonaro-em-sp
WEBER, Max. Le savant e le politique. Paris: Plon, 1963[1919].

Notas
1
Esta frase é tão somente a dedicatória do autor destinada a este resenhista no exemplar pessoal da primeira edição do livro (ALVES, 2003). Nunca uma dedicatória tão objetiva direcionada a um geógrafo se mostrou tão contundente!
2
Consultar, entre outros, Satie (08/04/2020).
3
Apesar dos índices significativos de óbitos por assassinato na Baixada Fluminense, os números divulgados são muito aquém do real, pois há uma gigantesca ausência de registro e investigação policial de muitas mortes. Concomitantemente, há o alastramento de cemitérios clandestinos e mesmo a observação de caminhões com carregamento de dezenas de corpos sem qualquer cobertura jornalística saindo de áreas carentes (ALVES, 2020, p. 54).
4
Mike Davis (2006[2005], p. 198), em sua obra O monstro bate a nossa porta: A ameaça global da gripe aviária faz uma importante indagação: como reagiriam as cidades quase indefesas do terceiro mundo a uma pandemia? Há o sincero temor, cada vez passível de se concretizar, de que a Baixada Fluminense se consolide com um triste laboratório capaz de responder as preocupações de Mike Davis.
5
Na transição para o século XX, a malária dizimou uma quantidade colossal de pessoas na área que hoje corresponde a Duque de Caxias (ALVES, 2019, p. 98). O desastroso enfrentamento da pandemia do coronavírus na cidade, portanto, não é sequer uma novidade histórica. Sobre a pandemia de Covid-19 nessa cidade, consultar Aragão e Silva (02/05/2020).
6
Por óbvio, bairros e cidades mais ricas, mesmo que não oferecessem postos suficientes de trabalho para seus habitantes, não recebiam tal epíteto, que traz consigo uma dura aproximação com a ideia de “depósito de trabalhadores pobres”. Consultar Ojima et al. (2010).
7
Trata-se de migração das ações faccionalizadas do Rio de Janeiro para comunidades localizadas na Baixada Fluminense, criando redes de comércio de drogas, aquisição de armamentos e composição de mão de obra do tráfico (ALVES, 2019, p. 28).
8
Utilizamos livremente, com a devida e respeitosa licença, a expressão contida em O novo imperialismo, de Harvey (2004[2003]).
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Nome da metralhadora que Tenório Cavalcanti sempre portava, mesmo nas sessões parlamentares. Eis no nome gentil do armamento pesado a expressão da cordialidade e do carinho em meio aos veios autoritários e violentos da nação. Sugere-se, para amplo debate do tema, consultar Chaui (2001) e revisitar Freyre (1998[1933]) e Holanda (1984[1936]).
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Além de trabalhos de campo e diversas incursões nas realidades vividas na periferia, o autor rastreou, por ocasião das pesquisas para redação de sua tese de doutoramento, 3.200 páginas de noticiários, em um tempo que a internet apenas engatinhava. Imaginamos o quão dolorosa foi essa jornada no submundo da violência arraigada e da dor onipresente
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terça-feira, 28 de junho de 2022

Cidades sitiadas: O novo urbanismo militar




Mobilidades militares nas cidades contemporâneas

Frank Andrew Davies

GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas: O novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo, 2016




Lançado no Brasil em 2016 pela Boitempo, o livro Cidades sitiadas: O novo urbanismo militar, do inglês Stephen Graham, dialoga diretamente com a escalada de atenção e investimentos em segurança nas grandes cidades do mundo. Em nosso país, mudanças no perfil socioeconômico da população e compromissos com uma agenda de grandes eventos internacionais alçaram o tema a problema social de primeira ordem nas últimas décadas, mobilizando práticas, recursos e imaginações que, por sua vez, culminaram em diferentes experiências de gestão urbana. A “pacificação” promovida por programas estaduais que preconizavam a presença ostensiva de policiais militares em favelas e territórios de pobreza talvez seja a face mais visível dessas estratégias. Contudo, outras ações governamentais e não governamentais foram mobilizadas a fim de lidar com o fenômeno da criminalidade e da “desordem urbana”: parcerias público-privadas para incremento do controle urbano de bairros centrais e valorizados, consolidação de milícias e grupos paramilitares e a própria reorganização e expansão do Primeiro Comando Capital (PCC) pelas periferias do país estão entre as dinâmicas que têm movimentado nossas rotinas sob toque de guerra.



Cidades sitiadas, entretanto, se dedica a outro contexto, ainda que sob o mesmo pano de fundo: a “Guerra ao Terror”, promovida a partir dos anos 2000 pelos EUA com apoio de países parceiros, oferece ao autor a possibilidade de analisar em perspectiva o avanço de discursos, políticas e tecnologias de monitoramento e vigilância de populações nas grandes cidades do mundo. Evitando nacionalismos metodológicos, a pesquisa de Graham inova ao dar ênfase a fluxos que operam na produção dessa forma de governo, que alcança escala global a partir de circuito variados, com origens, destinos, condições locais e agentes de mediação sui generis. Mais do que explicar o fenômeno do “urbanismo militar” por homogeneizações e simplificações analíticas, essa obra convida pesquisadores a explorarem os aspectos particulares ajustados às variadas situações urbanas.



O livro conta com dez capítulos, e na edição brasileira conta ainda com uma apresentação feita pelo geógrafo Marcelo Lopes de Souza, que contextualiza a obra no contexto nacional. Na perspectiva de Souza, nos últimos anos a “militarização da questão urbana” tem atravessado distintos cenários contemporâneos, e por isso tem ocupado espaço importante em debates e produções científicas. Contudo, para além de uma tendência internacional, o livro de Graham contribui ao identificar como tal processo tem se dado no chamado Norte Global, em especial por intercâmbios e circuitos que envolvem EUA, Israel e Reino Unido. Aos leitores brasileiros, Souza adverte para uma diferença essencial que constitui a maior parte do Sul Global: diferentemente do Norte, onde o objeto dessas práticas são as minorias étnicas, por aqui o alvo é o próprio povo, logo, a maioria.



Ainda que essa diferença fundamental não seja explorada no texto de Graham, sua obra permite compreender que o uso de conceitos como “Norte” e “Sul” eventualmente provoca borrões sobre os trânsitos que comunicam essas realidades. Recorrendo à analogia do “efeito bumerangue” utilizada por Michel Foucault ao descrever técnicas de gestão aplicadas em colônias e depois replicadas nas metrópoles, o autor inglês ressalta que “o novo urbanismo militar se alimenta de experiências com estilos de objetivos e tecnologia em zonas de guerra coloniais, como Gaza ou Bagdá, ou operações de segurança em eventos esportivos ou cúpulas políticas internacionais” (GRAHAM, 2016, p. 30). Nesse sentido, para Graham o “bumerangue” que movimenta o “novo urbanismo militar” sob diferentes cenários é mais complexo, ainda que organizado por “prósperos mercados de segurança nacional ao redor do mundo” (Idem). Além de serviços e técnicas de identificação, rastreamento e policiamento, o autor constata que valores morais e até uma visão própria de mundo tem acompanhado e pautado esses investimentos. A militarização das cidades, portanto, seria fenômeno espacial, político e também cultural, na medida em que reforça lógicas colonizadoras e beligerantes de ordenamento e suspeição sobre a diversidade dos modos de viver e ocupar os espaços urbanos.



Os três primeiros capítulos apresentam e fazem síntese do que o autor entende por “novo urbanismo militar”, definindo suas características. No texto que abre o livro, Graham explica como, no advento da Guerra Fria, a ameaça iminente de destruição urbana conduziu a distintas medidas de mitigação: investidas nos subúrbios como local de moradia para a classe média (possibilitada pelo rodoviarismo e baixo custo dos combustíveis) e a verticalização de edifícios foram algumas das ações que reconfiguraram as cidades sob eventual mira de bombas e disparos. Na era pós-Guerra Fria, entretanto, conflitos dos mais variados tipos têm eclodido e se revelado marcadamente urbanos, de modo que “a guerra volta à cidade” sob novo contexto e roupagem, desafiando e reposicionando limites antes estabelecidos entre segurança pública e nacional. A dissolução do “binarismo westfaliano”, este mesmo binarismo que sedimenta a própria ideia moderna de Estado nacional, tem se dado sob efeitos de uma nova modalidade de guerra. Como conjunto de práticas e representações, o urbanismo militar dissolve distinções entre civis e militares, presumindo um mundo em que os primeiros não existem (Idem, ibid., p. 67).



O segundo capítulo analisa produções discursivas e estéticas que em linhas gerais têm orquestrado esse novo urbanismo. Graham chama atenção para a dinâmica criação e difusão de imaginações urbanas sob essa lógica, que não provém de uma única origem. Em vez disso haveria uma relação entre “espelhos maniqueístas” que, por um lado, sentimentalizam espaços e grupos sociais, e, por outro, desumanizam e desconsideram formas de existência. Um exemplo são os grupos terroristas responsáveis por atentados, facilmente entendidos enquanto antiurbanos; entretanto, sob o espelho desses grupos está parte considerável da direita americana que apoia a Guerra ao Terror, mas que não por isso toma os contextos urbanos com mais apreço. Ao preferir o conforto dos subúrbios e tomar a “nação” sob termos próprios, conservadores têm de igual modo vertido as grandes cidades em território inimigo.



O avanço da militarização das cidades, portanto, tem levado ao acirramento de conflitos externos e internos, impulsionando sentimentos de ódio e intolerância racial. Sob a égide desse processo, a construção imaginativa do “outro” nos espaços urbanos tem se “orientalizado” sob o risco do terrorismo, comprometendo representações alternativas sobre as cidades e seus moradores.



O terceiro capítulo do livro é dedicado a conceituar o fenômeno do novo urbanismo militar, marcando continuidades e rupturas frente a militarização, tomada pelo autor como processo mais longo que se sustenta em divisões sociais e na demonização de inimigos e locais inimigos. Além disso, comenta Graham, “a militarização também envolve a normalização dos paradigmas militares de pensamento, ação e política” (Idem, ibid., p. 122), o que nas formas do “novo urbanismo” tem se dado sob modos próprios. Tendências têm constituído essas dinâmicas, e algumas delas já foram trabalhadas nos capítulos anteriores, entretanto o autor é enfático ao apontar a principal característica do novo urbanismo militar: “a reorganização radical da geografia e da experiência de fronteiras e limites” (Idem, ibid., p. 155).



Nesse sentido, o que é definido na obra por urbanismo se aproxima à ideia de regimes de circulação de populações e de figuração de espaços urbanos, ao passo que destaca no contexto contemporâneo a condição militar que rege pressupostos e regras de controle dos sistemas urbanos. Graham tematiza a cidade, portanto, tomando a mobilidade como objeto de investigação e analisando as chaves de acesso que operam na vida cotidiana. Entende, em afinidade com outros autores, que a circulação de pessoas, objetos e informações marca essencialmente os dias de hoje, e por isso as investidas científicas devem se atentar às “interdependências fluidas”, em vez de estabelecer esferas separadas a esses fenômenos (SHELLER e URRY, 2006).



Nesse livro, as mobilidades que ganham relevo são as que afetam as cidades pela produção e reprodução de fronteiras, que no limite conduzem às situações de guerra. Por essa perspectiva, é possível aproximar os esforços investigativos de Cidades sitiadas à discussão das mobilidades, de modo mais atido às “mobilidades militares” que circunscrevem não apenas o contingente de profissionais e materiais das Forças Armadas e demais forças de segurança, mas o conjunto de prestadores de serviço, operadores indiretos, volumes de dados e equipamentos que acompanham os agentes e suas formas de atuação nos espaços urbanos (WOODWARD e JENKINGS, 2014).



O quarto capítulo da obra se debruça sobre as “fronteiras onipresentes” do novo urbanismo militar, reforçando o argumento de que se trata de outra forma de fazer guerra, em um contexto em que antigas fronteiras se dissipam para dar lugar a novos modos de diferenciação e acesso. A “securitização” do conflito urbano, expressa na adesão maciça de técnicas de monitoramento e vigilância, reconfiguram a vida citadina pelo incremento dos enclaves fortificados de luxo e o controle mais ostensivo sobre zonas de pobreza por meio de novas tecnologias de segurança e estratégias de policiamento. O consequente aumento da fragmentação da cidade resulta das dinâmicas tomadas sob pretexto da segurança que, em linhas gerais, desdobram efeitos sobre os direitos e a própria representação do espaço urbano. Considera o autor: “dessa forma, tanto as cidades quanto a cidadania se tornam progressivamente reorganizadas com base nas ideias de mobilidades, direitos e acesso provisórios - em vez de absolutos” (GRAHAM, 2016, p. 211).



Se no contexto pós-Guerra Fria as divisas nacionais têm se tornado mais fluidas, Graham destaca o estabelecimento de novas fronteiras dentro da própria nação, em particular nas cidades. Tais fronteiras não apenas determinam formas de acesso e circulação nos espaços, mas quem são os que merecem ser tomados por “inimigos” nessa guerra. Nesse sentido, a securitização como modalidade de conflito urbano aprofunda visões calcadas na diferenciação social, emulando as ferramentas do poder soberano.



Entre o quinto e o nono capítulo o argumento do livro desvia das explicações gerais acerca do tema e passa a explorar as dimensões empíricas do novo urbanismo propalado pela Guerra ao Terror. Promovida por uma aliança internacional entre mercados e governos de Israel, EUA e países europeus, os conflitos em curso no Oriente Médio têm se aproveitado de técnicas de gestão da população palestina na Faixa de Gaza, a partir daí se espraiando às grandes cidades contemporâneas onde participam da construção das “fronteiras onipresentes”. Nessa parte da obra Graham trata de apresentar e analisar alguns dos “bumerangues” que mobilizam essa nova forma de ordenamentos urbano, o que envolve novas tecnologias mas também antigos modo de pensar as cidades e a ideia de pátria que nesses contextos são atualizados.



O capítulo “Sonho de um robô da guerra” explora imagens e projetos de uma vigilância informatizada que seria imparcial, produtora de mortes por desvios de um padrão técnico pretensamente definido; “Arquipélago de parque temático” aborda os simulacros que constituem esse novo urbanismo: cidades do Sul Global são emuladas em treinamentos militares, seja em videogames - que dispersam da caserna à vida civil, facilitando o trabalho de recrutamento entre a população jovem - ou em instalações físicas feitas nas bases, onde tropas aprendem a operar sobre um espaço genérico “onde Bagdá está em toda parte” (Idem, ibid., p. 261). Ao mesmo tempo o sentido de pátria (“homeland”) também é simulado nas áreas militares em território estrangeiro, onde vilas residenciais se aproximam da estética suburbana americana. Mobilidades militares, portanto, dinamizam formas de representar o espaço por meio de processos de desterritorialização e reterritorialização, o que envolve o lugar do inimigo mas também o espaço da casa pelo qual se deve combater.



O sétimo capítulo, “Lições de urbicídio”, se detém às relações imiscuídas entre EUA e Israel para o desenvolvimento de uma expertise de guerra, que retroalimenta serviços e lógicas de segurança das cidades. Na perspectiva do autor, estaria nessa aproximação o vetor de maior dispersão do novo urbanismo militar para o mundo, e “Desligando as cidades”, o oitavo capítulo, apresenta a versão mais radical da guerra securocrática, calcada na destruição de sistemas de infraestrutura das cidades inimigas. Chamada de desmodernização urbana ou modernização reversa, essa orientação militar tem sido a tônica dos últimos conflitos empreendidos no Oriente Médio e revela a crueldade dessa lógica de guerra, que imagina ao mesmo tempo que produz a diferença em relação ao “outro”. Segundo Graham, a representação de países como “subdesenvolvidos” e de certas populações como bárbaras sustenta a prática que produz ela mesma o “subdesenvolvimento” e a condição de barbárie por meio da destruição das cidades. O penúltimo capítulo trata em especial de um rebatimento do urbanismo militar para a metrópole, em especial os EUA e a disseminação da cultura do “carro de ataque urbano”, os SUVs. A coincidência entre o aumento de vendas desse modelo de automóvel e o advento da Guerra ao Terror é entendida pelo autor como um dos indícios da disseminação de valores particulares sobre a cidade e a relação que os indivíduos têm estabelecido com o espaço: ao reduzir o contato com o mundo externo, os SUVs compõem uma fantasia de controle e de encapsulamento da realidade. Assim o automóvel pode ser pensado sob essa perspectiva como uma dessas “fronteiras onipresentes” do novo urbanismo militar.



O último capítulo do livro se dedica às contrageografias. Apresentando diferentes iniciativas que têm desafiado e interrompido as lógicas e os circuitos desse novo modo de urbanismo, Graham conclui que “essas experiências oferecem lições importantes para contestar a militarização urbana” (Idem, ibid., p. 444). Obras de arte, produções cartográficas e reapropriações de tecnologias de controle estão entre os exemplos explorados no encerramento da obra que, em comum, produzem novas narrativas e formas de representação da realidade denunciando os efeitos do urbanismo militar. Mais importante para o autor, contudo, é que essas contrageografias não se sustentam em novos cosmopolitismos e ideais universais de democracia, preferindo em vez disso “atuar contra o silenciamento habitual dos ‘outros’ não ocidentais” (Idem, ibid., p. 470) e construindo com essas populações os sonhos de novos mundos e cidades.



Lançado há uma década, Cidades sitiadas se mantém referência nos debates sobre as cidades contemporâneas. No bojo da profusão de mobilizações interurbanas contra as políticas de segregação espacial e genocídio racial e étnico, o livro de Graham evoca a necessidade por compreender as conexões internacionais que produzem e sedimentam populações e territórios como periféricos, atrasados e indignos da cidade e cidadania. A obra, nesse sentido, estimula novas imaginações e fornece instrumentais analíticos ao pesquisador arguto por desvendar as formas e os aspectos que têm territorializado as mobilidades militares.

Referências
GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas: O novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo, 2016.
SHELLER, Mimi; URRY, John. “The New Mobilities Paradigm”. Environment and Planning, vol. 2, n. 38, pp. 207-226, 2006.
WOODWARD, Rachel; JENKINGS, K. Neil. “Soldier”. In: ADEY, Peter et al. (orgs). The Routledge Handbook of Mobilities. Londres: Routledge, 2014.