sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

CAPITALISMO, GLOBALIZAÇÃO E PSICANÁLISE


Uma ética para a psicanálise
09/Mai/98
Maria Rita Kehl
PAULO SILVEIRA /ORGANIZADOR/; IRENE CARDOSO /ORGANIZADORA/; UTOPIA E MAL-ESTAR NA CULTURA: PERSPECTIVAS PSICANALÍTICAS /LIVRO/; RICARDO GOLDENBERG /ORGANIZADOR/; GOZA!-CAPITALISMO, GLOBALIZAÇÃO E PSICANÁLISE

em 1929/30, assombrado diante da fúria anti-semita que se alastrava pela Europa, Freud escreveu "O Mal-Estar na Civilização". Nesse texto, hoje canônico, analisa os efeitos tanáticos do recalque instituído pelo pacto civilizatório sobre a vida social. É sua reflexão mais pessimista sobre as chances de uma solução de compromisso feliz entre o sujeito e a comunidade, mais pessimista ainda porque Freud, ao contrário de Rousseau, não concebe a condição humana fora do laço social. Não existe "eu" sem o outro -e ainda assim, "eu" o odeio. O termo "mal-estar" instituiu-se, na psicanálise, como expressão desta tensão permanente entre "eu" e o outro.
O pessimismo freudiano e o malfadado acerto de suas intuições -no ano de sua morte, 1939, o Ocidente veria o início da Segunda Guerra e a emergência da intolerância erigida em razão de Estado- deixaram às gerações de psicanalistas que se seguiram como que um legado, uma tarefa por cumprir: a produção, a partir do discurso psicanalítico, de alguma perspectiva mais feliz para a precária convivência entre os homens.
No Brasil, nesta última década, os psicanalistas vêm sendo convocados -pela imprensa, pela televisão, pela universidade- a formular, mais do que um prognóstico: uma perspectiva ética. A velha repressão revela-se inadequada para domesticar o sujeito do inconsciente; os imperativos morais costumam produzir exatamente o seu contrário. É possível formular um novo código para reger a vida em sociedade que dê conta deste sujeito que emergiu desde o relaxamento das condições repressivas nas últimas décadas deste século? O sujeito organizado a partir de uma ordem social que privilegia o gozo e abomina as interdições é ainda o mesmo sujeito do discurso psicanalítico?
Duas coletâneas de ensaios lançadas no final do ano passado buscam discutir estas questões. "Utopia e Mal-Estar na Cultura" e "Goza!".
Digamos que no primeiro caso, como a inclusão do termo "utopia" no título já anuncia, estamos do lado dos que buscam responder ao paradoxo freudiano com um certo otimismo. No segundo, pelo lado do imperativo do gozo, não se deve esperar boas notícias. Os dois livros, entretanto, revelam que a neurose deixou de ser o sintoma social que preocupa o pensamento psicanalítico contemporâneo. A delinquência generalizada, a perversão, a falência da ordem simbólica e o surgimento de um novo modo de organização do laço social -que alguns analistas qualificam como "discurso do capitalista", em lugar do antigo "discurso do mestre" da teoria lacaniana- são as questões que vêm convocando a psicanálise a pensar para além das quatro paredes da clínica.
No ensaio de abertura de "Utopia e Mal-Estar", Paulo Silveira analisa o individualismo contemporâneo segundo as perspectivas do antropólogo Louis Dumont (in "O Individualismo - Uma Perspectiva Antropológica da Ideologia Moderna", Rocco), apontando para o que ele chama de inconsciente social, a dimensão recalcada da origem dos poderes do Estado moderno. O inconsciente social corresponde, no indivíduo, à ideologia: "Faceta social do inconsciente do eu", que funciona obturando a falta no Outro e impedindo assim o advento do sujeito do desejo. O êxito desta operação explica, segundo Silveira, o advento do narcisismo como sintoma social do individualismo contemporâneo. Ainda assim, in extremis, ele nos lembra que "o significante não é tudo" (Lacan) ou "a ideologia não é tudo" (Dumont) e sugere que ainda há espaço para a formulação de uma utopia, uma ética do desejo, para o nosso tempo. Uma ética da amizade em lugar do pathos do amor romântico, sugere em outro ensaio o psicanalista Jurandir Freire Costa. A abertura de novas possibilidades narrativas, propõe Irene Cardoso. Uma ética nietzscheana do "amor fati" que desloque as perspectivas metafísicas em decadência no Ocidente, escreve Alfredo Naffah Neto.
Os autores de "Goza!", analisando os efeitos da globalização do capital sobre os sujeitos, não falam em utopias. Nem poderiam, uma vez que partem da perspectiva sombria de que nas sociedades organizadas segundo o discurso do capitalista "os valores da eficiência econômica se estendem a todos os âmbitos da vida social" (Thomás Abraham, pág. 55). Na primeira parte do livro, psicanalistas das duas principais escolas do pensamento pós-lacaniano dedicam-se a pensar o que é possível propor, em sociedades privadas de valores extra-econômicos, as quais, ainda segundo Abraham, "tendem a uma deriva perigosa". Ricardo Estacolchic lembra a dimensão simbólica da verdade, que sustenta o valor dos atos e das palavras humanas, sem a qual a vida social descamba para a barbárie.
Na mesma linha, Charles Melman pergunta: de que se autoriza o mestre (para regular o laço social)? De nada, além de um símbolo. No discurso capitalista, em que a autoridade se funda diretamente da posse do objeto "a", o símbolo fracassa. Melman lembra que deve existir um valor de referência para além da fórmula capitalista dos valores de troca ou, como escreve Ricardo Goldenberg na apresentação do livro, para além do discurso cínico segundo o qual "tem valor aquilo que se vende". Este valor de referência, no entanto, não existe em lugar nenhum. Devemos inventá-lo e sustentá-lo, não por qualquer razão econômica, mas porque precisamos dele para superar a lei da selva.
Significativamente, o ensaio de encerramento de "Goza!", de autoria de Ricardo Goldenberg, analisa a razão cínica moderna em contraposição ao cinismo clássico, fundado pelo filósofo Diógenes. Justamente porque tem conhecimento de que nada sustenta o simbólico a não ser a ação dos homens, o cínico atual não faz cerimônias em erigir sua satisfação pulsional em lei, aproximando-se, com isto, do canalha. Goldenberg, apesar da diferença de perspectivas, vai ao encontro de Paulo Silveira ao concluir seu ensaio apelando para a necessidade de se formular uma ética da pulsão.
A leitura das duas coletâneas convoca o leitor a pensar neste sentido. De minha parte, só me sinto capaz de contribuir com uma dúvida: será que o desejo, pedra fundamental do pensamento psicanalítico, marca da singularidade do sujeito, pode ser a origem de uma ética para o nosso tempo? Ou será que uma ética só pode se fundar, não contra o desejo como quis a igreja católica durante 2.000 anos, mas apesar dele? Neste caso, os psicanalistas não teriam muito a dizer a respeito -a não ser como homens de bem.
Maria Rita Kehl é psicanalista.


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