quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

GLOBALIZAÇÃO EM QUESTÃO

A ideologia da globalização
11/Jul/98
Leda Maria Paulani

PAUL HIRST; GRAHAME THOMPSON
A palavra "globalização", apesar de já devidamente incorporada ao vocabulário acadêmico, à mídia e mesmo ao corriqueiro linguajar do dia-a-dia, é capaz ainda de provocar intensa polêmica. Seu objetivo? Dar nome a um processo de transformação, em curso desde meados dos 70, que estaria alterando os marcos do movimento da economia mundial.
Posta assim, singelamente, a relação do termo (signo) com a coisa que ele quer expressar (referente) não fugiria do padrão seguido pela imensa maioria dos signos de que se compõe a linguagem. Não é assim, porém. Salvo engano, o primeiro economista a questionar a suposta neutralidade da palavra foi François Chesnais. Traduzindo de modo mais claro um sentimento difuso, mas inequivocamente presente em várias interpretações, Chesnais denuncia o caráter apologético do termo, que expressaria, de um modo subliminarmente favorável, um processo, em realidade, perverso para a humanidade.
Assim, Chesnais não hesita em descartá-lo, substituindo-o por "mundialização". Não se trata, porém, de uma inócua operação de substituir seis por meia dúzia e que só se justificaria em função do modo ressabiado com que os franceses normalmente recebem as novidades americanas ou anglófilas. A mundialização, adverte, é "do capital", e ele faz questão absoluta do complemento (não por acaso, "A Mundialização do Capital" é o título de seu hoje já famoso livro). Assim, Chesnais troca o nome mas não questiona a existência do fenômeno concreto que ele designa.
Mas existe ainda uma terceira forma de encarar a "globalização". Em livro de 1996, agora traduzido, Paul Hirst e Grahame Thompson vão argumentar que, por trás do famoso vocábulo, existe efetivamente muito pouca coisa. Como já se adivinha, trata-se, igualmente, de questionar a neutralidade do termo, mas por razões substancialmente diferentes daquelas levantadas por Chesnais. Remando contra a corrente, os autores procuram mostrar que não há provas relevantes e fortes o suficiente para demonstrar a tese de que a economia mundial se tornou ou está se tornando "globalizada". Em outras palavras, a tão decantada globalização, não seria nada mais do que um novo "turn", dentre os muitos que marcam a história recente do capitalismo.
Sendo assim, a insistência na tese de uma nova etapa, radicalmente distinta, e mesmo revolucionária, em que as economias nacionais seriam inexoravelmente tragadas pela aldeia global, só se tornaria compreensível em função de sua força mistificadora. Assim, se para Chesnais o termo é apologético, para Hirst e Thompson ele é puramente ideológico. Mas quais as implicações dessa posição? Muitas e, em sua maioria, incidem sobre a forma de enxergar os movimentos mais recentes da economia mundial.
Todavia, a mais importante delas é menos de natureza "stricto sensu" econômica que de natureza política: sendo a "globalização" nada mais do que uma mistificação que circula o mundo em busca de consumidores incautos, ficam também colocadas em xeque as suposições a ela correlacionadas a respeito da crescente irrelevância das economias nacionais, bem como das estratégias domésticas de política econômica.
Para demonstrar sua tese, os autores constroem, à Weber, dois tipos ideais: uma economia "internacional" e uma economia "globalizada". Na primeira, mesmo se crescentemente interconectadas por comércio e investimentos, as entidades principais são ainda economias nacionais, organizadas segundo algum esquema de divisão internacional do trabalho sob a hegemonia e o aval de uma nação líder; na segunda, ao contrário, os atores principais são grupos transnacionais suficientemente ágeis para escapar a qualquer tipo de regulação ou controle e que provocam, por isso, o declínio de poder dos Estados nacionais, gerando um sistema ingovernável.
Partindo de uma reconstrução histórica, os autores mostram que: (a) a proporção do comércio (exportação + importação) em relação ao PIB ainda não atingiu, em muitos países avançados, os marcos alcançados no início do século; (b) os fluxos de capital, apesar de significativos em termos absolutos, representam ainda parcelas muito pequenas do produto bruto, do investimento total e dos estoques de capital das economias avançadas; e (c) as empresas multinacionais não são capitais sem raízes e nem podem ignorar os mercados e as determinações de política econômica de seus países de origem, não se justificando, portanto, a imagem de grupos transnacionais absolutamente fora de qualquer controle.
Sendo assim, no posfácio especialmente escrito para a edição brasileira, concluem os autores: "A globalização não tira de cena as economias nacionais. As elites empresariais e políticas das nações ocidentais avançadas tomaram a globalização como um pretexto conveniente para as políticas domésticas que elas escolheram seguir", ao que poderíamos nós acrescentar "determinando também, com isso, o comportamento das elites usualmente fracas e omissas dos países não-desenvolvidos".
Contudo, essas evidências empíricas, indicando que a realidade da economia mundial está mais para "internacional" do que para "globalizada", são apenas parte da estratégia escolhida pelos autores na defesa de sua tese. Eles derivam parcela igualmente significativa da força de sua argumentação da forma como desenham o segundo tipo ideal: uma vez que ele representa uma situação que leva inexoravelmente ao caos e à destruição e que é, no limite, inteiramente "irracional, fica fácil descartá-lo como algo que não corresponde à realidade.
Em função disso, não raro aparecem no discurso dos autores frases do tipo: "Isto seria o capitalismo 'desorganizado' de Lash e Urry elevado á enésima potência"; "(com uma competição comercial desenfreada) o comércio não se equilibrará e haverá uma escassez maciça de demanda efetiva. Isso é um pandemônio econômico em escala mundial e não pode ser levado a sério". Tudo isso, evidentemente, facilita o enquadramento da globalização como pura ideologia, um mito bastante distante da realidade efetiva do capitalismo contemporâneo, realidade essa que não estaria ainda inteiramente dominada pelas forças cegas e irracionais de um processo de objetivação que se tece à revelia do arbítrio dos agentes, elites empresariais e políticas inclusive.
Num único aspecto, porém, os autores cedem. No mesmo posfácio e respondendo à pergunta sobre a influência dos mercados financeiros na determinação das políticas monetárias e fiscais, os autores admitem que os interesses necessariamente de curto prazo das instituições financeiras acabam por se tornar "a sabedoria econômica suprema". Dada a escala atual das operações de curto prazo, lembram eles, as reservas dos bancos centrais nunca serão suficientes para a defesa de uma determinada taxa de câmbio, se os mercados tiverem decidido o contrário.
Assim, concluem, o mundo estaria trocando empregos e crescimento por inflação baixa. Insistem, porém, em que os mercados financeiros mundiais não são necessariamente ingovernáveis e, ainda que admitam que não há hoje grande probabilidade de as coisas mudarem, acreditam que o problema é a vontade de governá-los, não a carência dos meios para tal.
Não por acaso, é também a escala e o curto horizonte dos mercados financeiros que constituem, para Chesnais, um dos elementos fundamentais da "mundialização do capital". Tudo somado, a conclusão final parece ser que, no capitalismo contemporâneo, as forças cegas e irracionais do "mercado deixado a si mesmo" expressam seu potencial destrutivo por meio da dominância financeira da valorização. A diferença é que alguns analistas ainda acreditam no afloramento de uma espécie de instinto natural de sobrevivência da humanidade que, por meio das elites empresariais e políticas do mundo, impediria a continuidade do processo e reintroduziriam nele um componente "racional", antes que se chegue a uma situação calamitosa. Outros, porém, não são tão crédulos assim. A história dirá com quem está a razão.

Leda Maria Paulani é professora da Faculdade de Economia e Administração da USP.

Folha de São Paulo

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