quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

OS ÍNDIOS XOKLENG - MEMÓRIA VISUAL

Povo Ligeiro
13/Jun/98

Mariana Leal Ferreira
As fotos falam por si mesmas. Mulheres e crianças xoklengues apinham-se diante das pesadas câmeras dos bugreiros ou caçadores de índios do começo do século. Cobrem como podem os corpos nus e têm nas faces o terror do massacre: à bala ou no fio do falcão, porque "o corpo é que nem bananeira, corta macio". Posam, indigentes, ao lado de seus algozes, batedores da mata eufemismo oficial para referir-se à tropa de exterminadores. O olhar, aqui, é de orgulho pela missão cumprida: limpar as florestas entre o litoral e o planalto de Paranaguá a Porto Alegre, abrindo caminho para a colonização do sul do país.
Em seguida, visuais de estúdio: caciques e guerreiros xoklengues empunhando arcos, flechas e lanças. Devidamente paramentados com plumas, adornos labiais e estojos penianos, captam a imaginação de fotógrafos alemães dos anos 30. Modelam-se corpos bronzeados em meio a orquídeas e outras flores raras. Aposta-se, nesta fase, na integração do "bom selvagem" à comunhão nacional, mas explora-se, ainda, a imagem idílica do "outro". Do estado de natureza caminha-se para a rápida e desejada aculturação: cenas de rituais de iniciação de sobreviventes xoklengues, com os lábios furados, e de construção de abrigos e casas tradicionais indígenas, cedem lugar a imagens da "pacificação" da comunidade no posto indígena Duque de Caxias.
Interessa divulgar, aqui, o êxito da política indigenista do Estado: desfilam, em trajes cristãos, xoklengues domesticados, convertidos. Estão reduzidos, nesta altura, a um terço da população original. Médicos esquadrinham os "tipos físicos" dos remanescentes, aferindo a pureza da raça. Sob o olhar guardião dos funcionários do Serviço de Proteção aos Índios, antecessor da Funai, tecem cestos indígenas, ao mesmo tempo em que se iniciam no trato agrícola. Em primeiro plano, as fotos de instalações do posto indígena e os pseudoprotagonistas da história xokleng: pacificadores, missionários, sanitaristas. Querem, a todo custo, modelar a figura do índio, tornando-o dócil e servil.
Emolduram-se, a seguir, crianças em trajes escolares, como prova cabal da eficiente política assimilacionista. Alfabetizado, Mokanã Xokleng torna-se apto para desposar moça burguesa, filha de imigrantes italianos. Às imagens do casamento, de 1930, dignas de um filme de Fellini, sobrepõem-se cenas da destruição dos recursos florestais e da exploração de palmito, nos anos 50. Vistas aéreas da barragem Norte, ao lado de cenas terrestres de protestos indígenas, revelam a polêmica dos projetos desenvolvimentistas do governo militar. Acirram-se a miséria e a pobreza na reserva indígena, parcialmente inundada. Fotografias do próprio Sílvio Coelho dos Santos, nos anos 60, atestam a tragédia do convívio, na agora denominada Área Indígena de Ibirama, em Santa Catarina. São 1.200 indivíduos, entre a maioria xoklengues e algumas centenas de guaranis e kaingangues.
Muitos xoklengues investem hoje na revitalização cultural. A língua, falada pela maioria e agora escrita, é manifestação explícita de resistência étnica. Projetos de recuperação da memória, da cultura material e do ensino bilíngue roubam a cena dos anos 80 e 90. São fotos de especialistas xoklengues, transmitindo conhecimentos para a comunidade, que hoje aposta na reconstrução do modo de vida tradicional. Reinventada, a tradição xoklengue faz referências a situações anteriores, para dar conta das mudanças e inovações do mundo conteporâneo.
Não é comum encontrar documentação fotográfica tão minuciosa, extensa e proveniente de fontes variadas sobre povos indígenas no Brasil. Etnólogo incansável, autor de vários livros, Santos consegue construir, entre acervos de várias universidades, museus, jornais e coleções particulares, um raro exemplar da memória visual indígena no país. São quase 200 fotografias, dispostas em três grandes blocos extermínio, pacificação e luta, cada um deles acompanhado de textos do autor em linguagem acessível. A obra é enriquecida por poemas de autores variados e afrescos de lideranças xoklengues, feitos por pintores alemães do começo do século.
Por fim, "A Geração do Homem", mito de origem narrado por Kãnhãnhá Nãmbla em português e xokleng, abre o trabalho, em vez de fechá-lo, para perspectivas propriamente indígenas sobre a história. Empenhados na reconstrução cultural e na preservação da língua, os xoklengues divulgam, à semelhança de outros povos indígenas no Brasil, aspectos de sua cosmologia. Em vez de xokleng, botocudo ou bugre, procuram hoje uma autodesignação lacranon, que quer dizer povo ligeiro ou povo conhecedor dos caminhos.
Suas versões da história do contato mostram que foram os índios que amansaram os brancos, e não o contrário. Aqui, o saudosismo de Coelho dos Santos cede lugar ao processo de reelaboração da cultura lacranon e às estratégias desenvolvidas por este povo para rememorar o passado e afirmar-se como etnia diferenciada na virada do milênio.
Mariana K. Leal Ferreira é doutora em antropologia médica pela Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA).


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