quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

SOBRE O TEATRO DE MARIONETES

A mecânica lírica das marionetes
11/Jul/98
Eliane Robert Moraes

HEINRICH VON KLEIST
A palavra marionete -derivada de Marion, diminutivo de Maria- designava originalmente pequenas figuras da Virgem apresentadas em espetáculos inspirados nas Escrituras. Ainda que, a partir do século 7º, a igreja tenha proibido o emprego de figuras antropomórficas nas encenações bíblicas, a estrutura do teatro de marionetes europeu manteve, durante muito tempo, a combinação de um elemento iniciático e religioso com um outro, popular e profano. Se este último elemento foi o único a permanecer até nossos dias, devemos a um autor moderno uma obra notável que faz a marionete retornar às suas origens sagradas -ou seja, às suas relações com a história da criação do homem.
Esse autor foi Heinrich von Kleist, que, no início do século 19, escreveu um pequeno texto estruturado na forma de conto e que apresenta uma conversa travada entre o narrador e um bailarino, cujo tema central é a perfeição dos movimentos das marionetes em contraposição às inevitáveis falhas dos gestos humanos. Ao longo desse diálogo, relatado de forma indireta, o narrador vai descobrindo o fundo paradoxal que sustenta os argumentos do bailarino; paradoxo que, em última instância, diz respeito não só aos mistérios da criação divina, mas também aos de seu principal correlato humano, a criação artística.
Ao observar o espetáculo de quatro bonecos que dançavam em plena harmonia, o bailarino atenta para o fato de que o mecanismo daquela pantomima se concentrava num só fio, capaz de produzir os mais belos movimentos justamente por comandar o centro de gravidade de cada figura. Tratava-se, portanto, de uma tarefa bastante simples do ponto de vista mecânico, mas dotada de uma sensibilidade superior: para alcançar tal perfeição rítmica, era necessário que o operador se transferisse para o interior da marionete. E essa operação representava "algo muito misterioso", pois a linha descrita pelo fio de comando nada mais era que "o caminho da alma do bailarino".
Porém a misteriosa sintonia entre operador e boneco, em vez de sujeitar este último, o abandonava por completo ao reino das forças mecânicas. Disso decorria todo o encanto da mímica da marionete, que, sustentada apenas por seu centro, atingia um grau de leveza e mobilidade inacessível aos homens. Se o corpo humano jamais alcançava essa graça, era porque a alma dos bailarinos se deslocava com frequência do centro de gravidade de seus movimentos, o que resultava na "afetação dos gestos". Com efeito, observa o bailarino, essa era a grande vantagem da dança dos bonecos sobre a dos homens, levando o narrador a concluir que "o espírito não pode errar onde não existe nenhum espírito".
Já nessa tópica podemos perceber a singularidade do argumento de Kleist: sustentado pelo que poderíamos chamar de "um mistério original", ele parece inaugurar um novo ponto de vista sobre os simulacros mecânicos, anulando a diferença capital que, para o pensamento clássico, separaria o homem da máquina. Segundo a teoria dos animais-máquinas de Descartes, uma réplica poderia ser capaz de tudo, menos de falar e expressar sentimentos, ou seja, de manifestar as qualidades exclusivas do espírito humano. Um tal pressuposto não permite ao cartesianismo compartilhar a hipótese de que um boneco possa se expressar independente da consciência de seu construtor -ou que ele possa, com isso, interrogar os atributos próprios da humanidade.
Ora, as personagens de Kleist caminham exatamente na contramão do fundador do racionalismo moderno: em vez de assegurarem a primazia do sujeito pensante sobre qualquer objeto, eles transformam a marionete no objeto a partir do qual o próprio pensamento humano é colocado à prova. Os bonecos são considerados mais perfeitos que os bailarinos vivos justamente por estarem privados de toda consciência e por obedecerem apenas às leis da matéria.
Essa superioridade, porém, não guarda qualquer afinidade com os discursos apologéticos sobre a máquina e a técnica, já bastante comuns na época em que Kleist escreve. Pelo contrário, ela vai encontrar seus fundamentos nos mistérios da criação do homem, uma vez que, segundo o bailarino, as falhas humanas "são inevitáveis desde que comemos da árvore do conhecimento". A afetação própria dos homens seria o resultado inelutável de sua capacidade de pensar -e, precisamente por isso, os gestos automáticos e irrefletidos das marionetes dariam uma imagem daquilo que seria a graça natural dos nossos movimentos, não tivessem eles um dia se tornado conscientes.
Trata-se portanto, como observa Pedro Süssekind no posfácio ao livro, de uma concepção que opõe um estado de inocência original -no qual os seres existiriam centrados em si- a um estado de conhecimento, no qual o homem teria se deslocado de seu centro próprio para contemplar o auto-reflexo no "espelho da consciência". Por certo, podemos perceber aí ecos de um Rousseau, de um Schiller, e de outros autores filiados à sensibilidade romântica; mas o texto de Kleist se impõe pelo incomparável lirismo de sua concepção.
Já que "o paraíso está trancado e o Querubim está atrás de nós", propõe o bailarino, "precisamos dar a volta ao mundo, e ver se não há talvez, do outro lado, uma abertura em algum lugar". A tarefa humana seria tentar descobrir um outro caminho para o paraíso ou, como adverte o personagem, buscar o ponto em que "os dois extremos do mundo em forma de anel se juntam". Sendo impossível voltar atrás para recuperar a inocência perdida, resta ao homem seguir em frente, no esforço de completar o círculo de sua viagem.
Essa busca constitui, por excelência, o caminho humano. Distinto da redenção cristã, que ocorre quando a alma se separa da matéria, o percurso iniciático proposto por Kleist tem como fundamento nossa irremediável oscilação "entre a matéria e a consciência infinita". Ou, se quisermos, entre os dois extremos que compõem o paradoxo de nossa existência: a mecânica do corpo e a espiritualidade da alma.
Se esse paradoxo define a condição humana, é inevitável que a inocência permaneça como nostalgia, só restando ao sujeito reencontrá-la como alteridade -isto é, quando ele se transfere para um objeto fora de si, quando ele realiza um ato de criação. Tal é a conclusão a que se aproximam os personagens de Kleist, ao observarem a mecânica lírica do teatro de marionetes. Na sua ousada tentativa de desvendar os mistérios da criação, eles vislumbram o caminho que une a alma do bailarino ao corpo do boneco; e, com isso, lembram ao homem o único meio que lhe faz escapar de sua condição -por um fio.

Eliane Robert Moraes é professora de estética e literatura na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).
Folha de São Paulo

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