A arte da persuasão
11/Jul/98
Angélica Chiappetta
OLIVIER REBOUL
Olivier Reboul dá à retórica uma atualidade que resulta da aplicação do sistema aristotélico aos problemas, critérios, gosto e solicitações contemporâneos. O livro mostra cinco enfoques complementares: uma breve história da retórica e também uma descrição do "sistema retórico"; uma apresentação metódica dos "procedimentos retóricos"; a aplicação dessa discussão na "leitura retórica" de alguns textos e, como apêndice, um glossário com definições dos "termos técnicos retóricos". O livro trata, ainda, de algo que poderia ser chamado de "filosofia da retórica" e em quase todos os casos usa "retórica" como adjetivo.
Definindo-a como "a arte de persuadir pelo discurso", adota o conceito de "auditório universal" como ideal argumentativo que garante a moralidade do discurso e mostra a retórica como insidioso e inevitável substituto da demonstração no mundo sublunar das incertezas.
Além da função persuasiva, a retórica tem também função hermenêutica, heurística e pedagógica. Sua função hermenêutica considera que o discurso não é um acontecimento isolado; o orador (ou seja, qualquer um que produza um discurso) nunca está sozinho, exprime-se sempre em concordância com outros oradores ou em oposição a eles, sempre em função de outros discursos. Para ser bom orador é preciso saber para quem se está falando, compreender o discurso do outro, seja ele manifesto ou latente, detectar suas "ciladas" (sic), pesar a força de seus argumentos e sobretudo captar o não-dito.
A função heurística é aquela em que a retórica promove a descoberta e o conhecimento quando não é possível atingir a exatidão do conhecimento científico. A função pedagógica, aparentemente banida dos programas escolares no fim do século 19, continua presente hoje, ainda que mesmo os professores não se dêem conta disso.
O autor narra a história da retórica como tendo um nascimento, um desenvolvimento, deslizamentos vários e várias pseudomortes. Entre os gregos, a retórica caminha dos sofistas a Platão, Isócrates e Aristóteles, sendo o principal elemento de discordância ou concordância entre eles a crença, ou não, na possibilidade de um objetivismo científico. O ataque à retórica que Platão opera no "Górgias", por exemplo, se sustenta apenas por seu pressuposto: o de que no domínio da justiça e da felicidade existe uma "ciência", um conhecimento seguro (como a medicina em relação à culinária), que autorizaria a desqualificação da retórica.
A retórica de Aristóteles, por sua vez, é uma arte situada abaixo da filosofia e das ciências exatas, que são "demonstrativas" e atingem verdades necessárias que, como os teoremas, só podem ser o que são, possibilitando compreender e prever. A retórica, por outro lado, só atinge o verossímil, aquilo que acontece na maioria das vezes, mas que poderia acontecer de outra forma.
Quando a história chega a Aristóteles, o autor pára a narrativa e descreve o sistema retórico aristotélico, sempre perguntando "qual sua relação com o homem do século 20". O sistema está dividido em quatro partes: invenção (em que o orador busca os argumentos e os outros meios de persuasão), disposição (ordenação desses meios), elocução (escolha e arranjo das palavras) e ação (proferição efetiva do discurso). Esse sistema, segundo o autor, foi retomado, de modo pragmático, pelos latinos (que acrescentaram a memória como quinta parte) e, depois disso, pode-se falar num declínio, com poucas modificações do século 1º ao 20.
Mas apenas no século 19 a retórica realmente declinou a ponto de quase desaparecer. Esse declínio já estaria sendo preparado desde o século 16, quando Petrus Ramus separa a dialética, arte da argumentação racional, da retórica, "estudo dos meios de expressão ornados e agradáveis".
Assim, a retórica foi sendo atropelada pela progressiva identificação com sua componente dita estilística. No século 17, ocorre nova fratura grave, quando Descartes "destrói" a dialética, ou seja, a possibilidade de argumentação contraditória e probabilista. Com a dúvida como método, irá considerar falso tudo o que é só verossímil, e sua filosofia se apresentará como um encadeamento de evidências, análogo a uma demonstração matemática. No século 19, o positivismo rejeita a retórica em nome da verdade científica; até a elocução é substituída pela filologia e pela história científica das literaturas. O romantismo, por fim, rejeita a retórica em nome da sinceridade.
Mesmo essa, segundo Reboul, foi uma falsa saída de cena da retórica, pois ela não só sobrevive no ensino literário, nos discursos políticos e jurídicos, como também renova-se com a comunicação de massa, a propaganda e a publicidade típicas do século 20. A partir dos anos 60, pode-se falar de uma nova retórica que retoma as questões da argumentação (Perelman) e o estudo das figuras de linguagem (Grupo Mi).
Reboul diz que os antigos tinham razão em unificar os elementos racionais e afetivos do discurso num mesmo todo, que era a retórica. Acostumado, como todos nós, a pensar em função das dicotomias objetivo/subjetivo, demonstração/argumentação, razão/emoção, o autor deixa de explicitar e considerar que uma das mais interessantes possibilidades da retórica, hoje, é justamente apresentar-se como um saber que não unifica o que não separou. Uma outra é lançar o discurso e, portanto, o saber e o poder, nas malhas das relações múltiplas entre os seres humanos. E gerar o debate.
Angélica Chiappetta é professora de língua e literatura latina na USP.
Folha de São Paulo
11/Jul/98
Angélica Chiappetta
OLIVIER REBOUL
Olivier Reboul dá à retórica uma atualidade que resulta da aplicação do sistema aristotélico aos problemas, critérios, gosto e solicitações contemporâneos. O livro mostra cinco enfoques complementares: uma breve história da retórica e também uma descrição do "sistema retórico"; uma apresentação metódica dos "procedimentos retóricos"; a aplicação dessa discussão na "leitura retórica" de alguns textos e, como apêndice, um glossário com definições dos "termos técnicos retóricos". O livro trata, ainda, de algo que poderia ser chamado de "filosofia da retórica" e em quase todos os casos usa "retórica" como adjetivo.
Definindo-a como "a arte de persuadir pelo discurso", adota o conceito de "auditório universal" como ideal argumentativo que garante a moralidade do discurso e mostra a retórica como insidioso e inevitável substituto da demonstração no mundo sublunar das incertezas.
Além da função persuasiva, a retórica tem também função hermenêutica, heurística e pedagógica. Sua função hermenêutica considera que o discurso não é um acontecimento isolado; o orador (ou seja, qualquer um que produza um discurso) nunca está sozinho, exprime-se sempre em concordância com outros oradores ou em oposição a eles, sempre em função de outros discursos. Para ser bom orador é preciso saber para quem se está falando, compreender o discurso do outro, seja ele manifesto ou latente, detectar suas "ciladas" (sic), pesar a força de seus argumentos e sobretudo captar o não-dito.
A função heurística é aquela em que a retórica promove a descoberta e o conhecimento quando não é possível atingir a exatidão do conhecimento científico. A função pedagógica, aparentemente banida dos programas escolares no fim do século 19, continua presente hoje, ainda que mesmo os professores não se dêem conta disso.
O autor narra a história da retórica como tendo um nascimento, um desenvolvimento, deslizamentos vários e várias pseudomortes. Entre os gregos, a retórica caminha dos sofistas a Platão, Isócrates e Aristóteles, sendo o principal elemento de discordância ou concordância entre eles a crença, ou não, na possibilidade de um objetivismo científico. O ataque à retórica que Platão opera no "Górgias", por exemplo, se sustenta apenas por seu pressuposto: o de que no domínio da justiça e da felicidade existe uma "ciência", um conhecimento seguro (como a medicina em relação à culinária), que autorizaria a desqualificação da retórica.
A retórica de Aristóteles, por sua vez, é uma arte situada abaixo da filosofia e das ciências exatas, que são "demonstrativas" e atingem verdades necessárias que, como os teoremas, só podem ser o que são, possibilitando compreender e prever. A retórica, por outro lado, só atinge o verossímil, aquilo que acontece na maioria das vezes, mas que poderia acontecer de outra forma.
Quando a história chega a Aristóteles, o autor pára a narrativa e descreve o sistema retórico aristotélico, sempre perguntando "qual sua relação com o homem do século 20". O sistema está dividido em quatro partes: invenção (em que o orador busca os argumentos e os outros meios de persuasão), disposição (ordenação desses meios), elocução (escolha e arranjo das palavras) e ação (proferição efetiva do discurso). Esse sistema, segundo o autor, foi retomado, de modo pragmático, pelos latinos (que acrescentaram a memória como quinta parte) e, depois disso, pode-se falar num declínio, com poucas modificações do século 1º ao 20.
Mas apenas no século 19 a retórica realmente declinou a ponto de quase desaparecer. Esse declínio já estaria sendo preparado desde o século 16, quando Petrus Ramus separa a dialética, arte da argumentação racional, da retórica, "estudo dos meios de expressão ornados e agradáveis".
Assim, a retórica foi sendo atropelada pela progressiva identificação com sua componente dita estilística. No século 17, ocorre nova fratura grave, quando Descartes "destrói" a dialética, ou seja, a possibilidade de argumentação contraditória e probabilista. Com a dúvida como método, irá considerar falso tudo o que é só verossímil, e sua filosofia se apresentará como um encadeamento de evidências, análogo a uma demonstração matemática. No século 19, o positivismo rejeita a retórica em nome da verdade científica; até a elocução é substituída pela filologia e pela história científica das literaturas. O romantismo, por fim, rejeita a retórica em nome da sinceridade.
Mesmo essa, segundo Reboul, foi uma falsa saída de cena da retórica, pois ela não só sobrevive no ensino literário, nos discursos políticos e jurídicos, como também renova-se com a comunicação de massa, a propaganda e a publicidade típicas do século 20. A partir dos anos 60, pode-se falar de uma nova retórica que retoma as questões da argumentação (Perelman) e o estudo das figuras de linguagem (Grupo Mi).
Reboul diz que os antigos tinham razão em unificar os elementos racionais e afetivos do discurso num mesmo todo, que era a retórica. Acostumado, como todos nós, a pensar em função das dicotomias objetivo/subjetivo, demonstração/argumentação, razão/emoção, o autor deixa de explicitar e considerar que uma das mais interessantes possibilidades da retórica, hoje, é justamente apresentar-se como um saber que não unifica o que não separou. Uma outra é lançar o discurso e, portanto, o saber e o poder, nas malhas das relações múltiplas entre os seres humanos. E gerar o debate.
Angélica Chiappetta é professora de língua e literatura latina na USP.
Folha de São Paulo
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