Mosaico lacaniano
11/Jul/98
Richard Simanke
JACQUES LACAN
Vinte anos após uma edição parcial, os "Escritos" são publicados na íntegra no Brasil. Para um autor de estilo deliberadamente críptico -que pode despertar no tradutor a tentação de ser mais realista que o rei, como testemunham certas passagens da primeira publicação dos "Escritos" e de alguns volumes do "Seminário"-, a presente tradução resultou sóbria e tão esclarecedora quanto possível.
Nada das tentativas algo cômicas de verter para o português os duvidosos trocadilhos lacanianos ("avestroutrem" para "autruiche", "o ponto, o onto, o outro" para "la lettre, l'être et l'autre") e das resvaladas ou preciosismos na tradução de termos correntes da língua francesa ("fantasma" para "fantasme", "só-depois" para "après-coup") observados anteriormente. Tratando-se de Lacan, o cuidado com a edição e a própria decisão de bancar a publicação integral da volumosa coletânea tornam o empreendimento digno de louvor.
Mas a própria ocasião dessa publicação tardia, na cena psicanalítica brasileira, da "obra magna" de Lacan talvez justifique reabrir, ainda que rapidamente, o debate em torno do seu alcance e significado. Saudados desde o seu aparecimento, em 1966, como obra de referência obrigatória e convertidos rapidamente num dos maiores best sellers da história do movimento psicanalítico, os "Escritos" consistem numa heterogênea coleção de textos de procedência diversa (conferências, artigos, prefácios etc.).
A eles somam-se uma abertura e quatro textos compostos especialmente para a ocasião, intercalados entre os demais e destinados, em princípio, a situar-lhes o lugar na teoria. Pouca coisa há nos "Escritos", portanto, que se pareça com uma exposição sistemática de uma doutrina acabada quanto às suas posições fundamentais. A questão é por que a obra é assim apresentada e por que tende a ser recebida dessa maneira.
As circunstâncias de sua publicação já apontam para essa característica. Motivada em parte pelos acontecimentos do movimento psicanalítico francês -cujo último cisma alçara Lacan definitivamente à condição de chefe de escola, mais interessado do que nunca, portanto, em firmar e divulgar seus pontos de vista-, em parte pela determinação e perseverança de François Wahl, que se empenhava na promoção das correntes estruturalistas nas Éditions du Seuil, a organização do material até então disperso revela um forte propósito de apagar os rastros de sua história.
Desde a censura do editor -que se recusou, segundo Elisabeth Roudinesco, a incluir o artigo de 1938 sobre "A Família", considerando-o pouco "lacaniano"- até a leitura que o autor faz de seus "antecedentes", recomendando que sejam lidos à luz dos desenvolvimentos posteriores, passando pelo hábito lacaniano de tomar empréstimos a outros autores sem necessariamente citar as fontes, tudo contribui para dar uma aura atemporal à doutrina que se esboça no mosaico de textos, a qual procura se justificar a partir do anti-historicismo estruturalista.
A recente adesão ao lacanismo do futuro genro e herdeiro Jacques-Alain Miller -encarregado da confecção dos índices do volume- acaba por fortalecer essa tendência, ao acentuar as inclinações logicistas da teoria, marcando pontos para uma leitura inspirada por um certo "espírito de sistema". São dele, aliás, as formulações mais explícitas nesse sentido, ao falar do discurso lacaniano como "o progresso de uma sistematização cuja coerência (...) foi definitivamente estabelecida"; "por isso", diz, referindo-se aos "Escritos", "ganha-se ao estudá-los como se formassem um sistema".
É uma certa fantasia, que podemos denominar -modificando um pouco uma expressão de David Macey (1)- de "estado final do sistema", que se constrói, então, em torno dos "Escritos", e que vai orientar, em grande medida, a sua recepção posterior: a obliteração da história da teoria -tanto dos materiais, quanto de seu processo de constituição- faz surgir uma espécie de bloco teórico monolítico, ao qual se aplica pura e simplesmente o nome de "Lacan", versão definitiva de um sistema, que esmaga e consome suas origens.
A publicação dos "Escritos" teria acentuado, assim, a vocação da psicanálise lacaniana em escamotear seu passado, em "pensar-se sincronicamente" -expressão que denota uma certa opção conceitual interna à teoria, mas que, apenas por isso, não justifica um viés necessário para a apreensão de seu sentido.
Essas considerações não pretendem, evidentemente, diminuir o mérito da contribuição lacaniana no panorama das idéias psicanalíticas e, muito menos, o papel que ela teve, talvez mais do que qualquer outra depois de Freud, de estender a área de atuação da psicanálise para além da sua aplicação estritamente técnica. Seu objetivo é somente observar, no momento em que a mais célebre publicação de Lacan finalmente se torna disponível na íntegra para o leitor brasileiro, que não se trata aí de um tratado de psicanálise lacaniana, mas da documentação revisada de uma história que, aliás, não se encerra na última página dos "Escritos". O que deveria ser óbvio é, nesse caso, frequentemente encoberto pelo estilo e natureza da obra, de cuja elucidação crítica depende, evidentemente, qualquer avaliação.
Nota
1. David Macey, "Lacan in Contexts", Londres, Verso, 1988, pág. 10.
Richard Theisen Simanke é professor da Universidade Federal de São Carlos e autor de "A Formação da Teoria Freudiana das Psicoses" (Ed. 34).
Folha de São Paulo
11/Jul/98
Richard Simanke
JACQUES LACAN
Vinte anos após uma edição parcial, os "Escritos" são publicados na íntegra no Brasil. Para um autor de estilo deliberadamente críptico -que pode despertar no tradutor a tentação de ser mais realista que o rei, como testemunham certas passagens da primeira publicação dos "Escritos" e de alguns volumes do "Seminário"-, a presente tradução resultou sóbria e tão esclarecedora quanto possível.
Nada das tentativas algo cômicas de verter para o português os duvidosos trocadilhos lacanianos ("avestroutrem" para "autruiche", "o ponto, o onto, o outro" para "la lettre, l'être et l'autre") e das resvaladas ou preciosismos na tradução de termos correntes da língua francesa ("fantasma" para "fantasme", "só-depois" para "après-coup") observados anteriormente. Tratando-se de Lacan, o cuidado com a edição e a própria decisão de bancar a publicação integral da volumosa coletânea tornam o empreendimento digno de louvor.
Mas a própria ocasião dessa publicação tardia, na cena psicanalítica brasileira, da "obra magna" de Lacan talvez justifique reabrir, ainda que rapidamente, o debate em torno do seu alcance e significado. Saudados desde o seu aparecimento, em 1966, como obra de referência obrigatória e convertidos rapidamente num dos maiores best sellers da história do movimento psicanalítico, os "Escritos" consistem numa heterogênea coleção de textos de procedência diversa (conferências, artigos, prefácios etc.).
A eles somam-se uma abertura e quatro textos compostos especialmente para a ocasião, intercalados entre os demais e destinados, em princípio, a situar-lhes o lugar na teoria. Pouca coisa há nos "Escritos", portanto, que se pareça com uma exposição sistemática de uma doutrina acabada quanto às suas posições fundamentais. A questão é por que a obra é assim apresentada e por que tende a ser recebida dessa maneira.
As circunstâncias de sua publicação já apontam para essa característica. Motivada em parte pelos acontecimentos do movimento psicanalítico francês -cujo último cisma alçara Lacan definitivamente à condição de chefe de escola, mais interessado do que nunca, portanto, em firmar e divulgar seus pontos de vista-, em parte pela determinação e perseverança de François Wahl, que se empenhava na promoção das correntes estruturalistas nas Éditions du Seuil, a organização do material até então disperso revela um forte propósito de apagar os rastros de sua história.
Desde a censura do editor -que se recusou, segundo Elisabeth Roudinesco, a incluir o artigo de 1938 sobre "A Família", considerando-o pouco "lacaniano"- até a leitura que o autor faz de seus "antecedentes", recomendando que sejam lidos à luz dos desenvolvimentos posteriores, passando pelo hábito lacaniano de tomar empréstimos a outros autores sem necessariamente citar as fontes, tudo contribui para dar uma aura atemporal à doutrina que se esboça no mosaico de textos, a qual procura se justificar a partir do anti-historicismo estruturalista.
A recente adesão ao lacanismo do futuro genro e herdeiro Jacques-Alain Miller -encarregado da confecção dos índices do volume- acaba por fortalecer essa tendência, ao acentuar as inclinações logicistas da teoria, marcando pontos para uma leitura inspirada por um certo "espírito de sistema". São dele, aliás, as formulações mais explícitas nesse sentido, ao falar do discurso lacaniano como "o progresso de uma sistematização cuja coerência (...) foi definitivamente estabelecida"; "por isso", diz, referindo-se aos "Escritos", "ganha-se ao estudá-los como se formassem um sistema".
É uma certa fantasia, que podemos denominar -modificando um pouco uma expressão de David Macey (1)- de "estado final do sistema", que se constrói, então, em torno dos "Escritos", e que vai orientar, em grande medida, a sua recepção posterior: a obliteração da história da teoria -tanto dos materiais, quanto de seu processo de constituição- faz surgir uma espécie de bloco teórico monolítico, ao qual se aplica pura e simplesmente o nome de "Lacan", versão definitiva de um sistema, que esmaga e consome suas origens.
A publicação dos "Escritos" teria acentuado, assim, a vocação da psicanálise lacaniana em escamotear seu passado, em "pensar-se sincronicamente" -expressão que denota uma certa opção conceitual interna à teoria, mas que, apenas por isso, não justifica um viés necessário para a apreensão de seu sentido.
Essas considerações não pretendem, evidentemente, diminuir o mérito da contribuição lacaniana no panorama das idéias psicanalíticas e, muito menos, o papel que ela teve, talvez mais do que qualquer outra depois de Freud, de estender a área de atuação da psicanálise para além da sua aplicação estritamente técnica. Seu objetivo é somente observar, no momento em que a mais célebre publicação de Lacan finalmente se torna disponível na íntegra para o leitor brasileiro, que não se trata aí de um tratado de psicanálise lacaniana, mas da documentação revisada de uma história que, aliás, não se encerra na última página dos "Escritos". O que deveria ser óbvio é, nesse caso, frequentemente encoberto pelo estilo e natureza da obra, de cuja elucidação crítica depende, evidentemente, qualquer avaliação.
Nota
1. David Macey, "Lacan in Contexts", Londres, Verso, 1988, pág. 10.
Richard Theisen Simanke é professor da Universidade Federal de São Carlos e autor de "A Formação da Teoria Freudiana das Psicoses" (Ed. 34).
Folha de São Paulo
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