terça-feira, 7 de maio de 2019

Raymundo Faoro: intérprete do Brasil em ação


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Raymundo Faoro: intérprete do Brasil em ação


Leonardo Octavio Belinelli de BritoI


IFaculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil.

Embora não tenha causado grande repercussão no meio acadêmico quando de sua publicação em 1958 (Ricupero, 2007; Iglesias, 2009), é fato que, em boa medida, Os donos do poder foi o ensaio responsável por colocar Raymundo Faoro (1958) no panteão de “intérpretes do Brasil”, posto que ocupa ao lado de autores do quilate de Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado, entre outros. Com a publicação da segunda edição em 1974 (Faoro, 2008a), consideravelmente aumentada, a posição de Faoro se consolidou, especialmente por três motivos: em primeiro lugar, porque sua tese acerca da prevalência do Estado sobre a Sociedade no Brasil se mostrava particularmente explicativa no contexto autoritário - reforçada pela sua argumentação segundo a qual as Forças Armadas comporiam um dos núcleos do que chamava de “estamento burocrático”; em segundo lugar, pelo fato de Os donos do poder ter sido adotado como referencial teórico para a então emergente ciência política brasileira;1 e, por fim, por ter tido uma atuação particularmente marcante como presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em favor da recomposição das liberdades violentadas pelo regime de exceção que vigia.

Por isso, é de estranhar o fato de que existem relativamente poucas publicações sobre Raymundo Faoro, se comparadas às volumosas bibliografias acumuladas sobre outros “intérpretes do Brasil”. Essa estranheza é reforçada pelo fato notável de que sua “interpretação do Brasil” é rotineiramente invocada para explicar os males que atingem a política e a sociedade brasileiras. Quem nunca ouviu a tese de que o Brasil é um país patrimonialista? Ou seja: embora tenha se tornado um senso comum - o que é prova de alguma aderência com a realidade -, o conhecimento acadêmico sobre a obra do formulador da tese, a qual não pode ser, de modo nenhum, reduzida a isso, não avançou na mesma proporção.

Oxalá a publicação de A república em transição, coletânea de escritos de Faoro organizada e apresentada por Joaquim Falcão e Paulo Augusto Franco, colabore para a mudança desse cenário. O livro cobre a atividade jornalística do autor de Os donos do poder no período compreendido entre 1982 e 1988, período no qual foi colunista semanal da revista IstoÉ Senhor.

Os 61 artigos de Faoro, aos quais se soma uma entrevista concedida a Maurício Dias, são organizados em quatro partes. Na primeira, intitulada “O ‘teatro do poder’ e as tramas do oculto (1982-1984)”, os textos de Faoro focam a relação entre crise econômica e crise política, combinação tempestuosa para um processo de transição democrática. Na segunda parte, nomeada “A transição com ‘T’ maiúsculo (1983-1985)”, os textos de Faoro são logicamente recortados a partir da discussão que o autor empreendia no processo de definição que a transição ocorreria. Já a terceira parte, denominada “A Constituinte e a ‘transição imaginada’ (1985-1987)”, tem como nexo articulador a denúncia do processo que culminou na realização da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988. Para Faoro, tratou-se de um processo conciliatório que visava fazer uma transição que suprimisse uma efetiva participação democrática dos cidadãos. Por fim, a última parte, cujo título é “Democracia, ficção e a ‘retórica do destino’ (1986-1988)”, reúne textos que fazem considerações desencantadas sobre os desdobramentos da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988.

Embora os organizadores tenham realizado o esforço louvável de tentar, por meio de notas de rodapé no início de alguns artigos, situar o leitor no contexto no qual Faoro escrevia, é natural que muitos fatos “envelheçam” - isto é, percam a relevância que tiveram em um momento anterior. Mas não há dúvida de que o núcleo da argumentação de Faoro - a análise crítica do processo histórico aberto com a transição do período militar inaugurado em 1964 para o período conhecido como Nova República - ainda nos interpela. Ao mesmo tempo, nos ajuda a repensar a própria figura do autor, tanto no plano das ideias como no plano da ação. É dessa combinação que emana muito do interesse do livro. Vejamos.

Em primeiro lugar, o livro permite ao leitor adotar outra perspectiva em relação ao pensamento de Faoro. Em lugar do intérprete detalhista de Os donos do poder, cuja narrativa começa antes mesmo da formação do Brasil colonial, surge um Faoro ligado aos temas diários, às polêmicas terra-a-terra, ao sabor das incertezas. O contraste serve para corrigir o equívoco daqueles que acusam a “interpretação do Brasil” faoriana de ser anistórica e previamente determinada pelo conceito de patrimonialismo, que seria como que uma enteléquia que resolvesse de antemão, no plano teórico, todos os conflitos políticos - portanto, práticos - nacionais. Uma leitura de A república em transição serve de perfeita correção para esse equívoco interpretativo, pois no livro se revela um Faoro profundamente ligado aos desdobramentos dos (aparentemente) mais banais acontecimentos cotidianos para deles extrair seus sentidos mais profundos. Em contraste com a acusação de “abstração”, as análises semanais de Faoro resultam, na verdade, numa percepção robusta e desencantada com a força do conservadorismo de nossas elites postas no e ao redor do Estado, causadoras do déficit democrático que assola o país desde sua fundação.

Em poucos termos: interpretação desencantada que Faoro faz do país ganha fôlego no momento em que as esperanças de transformação democrática surgiam em diversos setores mobilizados da sociedade civil. Um exemplo aparece em artigo datado de 8 de abril de 1986, no qual se lê: “A ‘transição’ tornou-se palavra imprestável, o ‘entulho’ [autoritário], depois das comissões que o revolveram, continua onde estava. A ‘transição’ não se fez [...]” (p.173). Quase dois anos depois, em 12 de janeiro de 1988, no mesmo tom, Faoro afirma a descontinuidade entre “democratização” e “democracia”, na medida em que a primeira não acarretaria, como se supõe corriqueiramente, a segunda. Na verdade, no caso brasileiro, ocorreria o inverso: a “democratização” prometida no período da transição seria uma estratégia hábil para anular um possível processo substantivo de reorganização democrática do país. Em outras palavras: o processo de transição democrática revelava as formas da conciliação com o passado do país contras as quais Faoro se colocava.

O tom grave da advertência assume a forma adequada quando lembramos a observação de Juarez Guimarães, para quem Faoro foi o primeiro pensador a interpretar o Brasil à luz do conceito de liberdade política, “entendida em sua chave republicana, como autogoverno dos cidadãos autônomos” (Guimarães, 2009, p.80). Nesse sentido, ganha-se muito em ler os artigos coligidos em A república em transição ao lado de Assembleia constituinte: a legitimidade recuperada, ensaio de maior amplitude e ambição escrito no mesmo período.2 Um livro ilumina o outro, formando um jogo de luzes e sombras cujo resultado final, embora desalentador - na medida em que destaca a reiterada frustração da sociabilidade republicana no país - é, também, revelador.

Entretanto, é preciso nuançar essa argumentação, na medida em que sua forma mais estilizada acaba por reforçar outra tese unilateral sobre a obra de Faoro: a de que sua interpretação do país é derrotista. A nuança aqui reside em diferenciar dois fenômenos aparentemente relacionados: derrotismo e pessimismo. Embora o segundo esteja presente nos escritos de Faoro, é preciso diferenciá-lo do primeiro. Com efeito, os artigos reunidos em A república em transição permitem observar um intérprete em ação, um intelectual público localizado em um setor estratégico da sociedade civil, a mídia de grande circulação, que lhe permite que sua amplitude reflexiva obtenha a justa ressonância que lhe cabe. Nesse sentido, sua ação, embora embutida de evidente pessimismo, desautoriza qualquer derrotismo prévio. Essa combinação, que Gramsci formulou classicamente da sentença acerca da necessária combinação entre “pessimismo da razão e otimismo da vontade”, permite que compreendamos Faoro como um pensador da política, terreno que se sabe, ao menos desde Maquiavel, incertamente pantanoso e no qual, portanto, é preciso de virtú e fortuna para se locomover. Algo dessa vinculação entre Faoro e Maquiavel - aliás, já presente em Os donos (Faoro, 2008; Brito, 2017) -aparece no parágrafo que fecha o livro, no qual se lê: “O mapa já está pronto. Resta saber se ele leva à mina prometida ou ao inesperado. Nas linhas e no meridiano, há uma incógnita, uma incógnita que se inquieta dentro da crise, terrível e incontrolável. Qual a misteriosa estratégia para domar o terremoto? É o que se verá, em 1988, com certeza” (p.199).

Se esse livro nos permite compreender melhor o contexto histórico e o pensamento de Faoro, ele também nos permite pensar o nosso próprio tempo. Em um momento em que se conjugam diversos ataques à democracia brasileira, cujos ápices são o impeachment de legalidade duvidosa da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), os ataques aos direitos trabalhistas e previdenciários dos cidadãos, o recrudescimento de um conservadorismo raivoso, uma intervenção militar no Rio de Janeiro e a execução da vereadora Marielle Franco (PSOL), os escritos céticos de Faoro voltam a nos interpelar com toda força, revelando a triste atualidade de um clássico do nosso pensamento.




REFERÊNCIAS



BRITO, L. O. B. Os dilemas do patrimonialismo brasileiro - as interpretações de Raymundo Faoro e Simon Schwartzman. São Paulo: Alameda, 2017. [ Links ]

CAMPELLO DE SOUZA, M. do C. Estado e Partidos Políticos no Brasil (1930 a 1964). São Paulo: Alpha Ômega, 1983. [ Links ]

CARVALHO, J. M. A construção da ordem e Teatro de sombras. Rio de Janeiro: Civiliza­ção Brasileira, 2011. [ Links ]

FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1958. [ Links ]

_______. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2008a. [ Links ]

_______. A democracia traída. Org. e notas Maurício Dias. São Paulo: Globo, 2008b. [ Links ]

_______. A República em transição. Poder e direito no cotidiano da democratização brasileira (1982 a 1988)”. Rio de Janeiro, Record, 2018. 224 p. Organização: Joaquim Falcão e Paulo Augusto Franco. [ Links ]

GUIMARÃES, J. Raymundo Faoro, pensador da liberdade. In: ___. (Org.) Raymundo Faoro e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. [ Links ]

IGLESIAS, F. Revisão de Raymundo Faoro. In: GUIMARÃES, J. (Org.) Raymundo Faoro e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. [ Links ]

RICUPERO, B. Sete lições sobre as interpretações do Brasil. São Paulo: Alameda, 2007. [ Links ]

SCHWARTZMAN, S. São Paulo e o Estado nacional. São Paulo: Di­fel, 1975. [ Links ]

_______. Bases do autoritarismo brasileiro. 3.ed. Rio de Janeiro: Cam­pus, 1988. [ Links ]


NOTAS


1Para ficarmos em poucos exemplos, de modos variados, Simon Schwartzan (1975; 1988), Maria do Carmo Campello de Souza (1983) e José Murilo de Carvalho (2011) debateram com e a partir da tese de Faoro sobre a formação patrimonial estatal brasileira,


2Lê-se também com muito proveito A democracia traída, coletânea de entrevistas de Faoro organizada por Maurício Dias e prefaciada por Mino Carta (Faoro, 2008b).


Recebido: 29 de Março de 2018; Aceito: 06 de Maio de 2018


@ - belinelli.leonardo@gmail.comLeonardo Octavio Belinelli de Brito

é doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP).

Bresser-Pereira e a teoria do novo-desenvolvimentismo

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Bresser-Pereira e a teoria do novo-desenvolvimentismo


André Roncaglia de CarvalhoI

IEscola Paulista de Política, Economia e Negócios, Universidade Federal de São Paulo, Osasco, São Paulo, Brasil.


O livro de Bresser-Pereira (2018) é uma das mais didáticas e bem acabadas exposições, até o momento, da teo- ria do novo-desenvolvimentismo, de cuja abordagem o autor é o expoente de maior destaque. O livro está organizado em três grandes partes, a saber: (1) um preâmbulo teórico acerca da relação entre Estado e mercado no capitalismo contemporâneo, seguido por uma demarcação da tradição desenvolvimentista que contextualiza o novo-desenvolvimentismo tanto no plano das políticas econômicas quanto no pensamento econômico (capítulos 1, 2 e 3); (2) uma leitura histórica do problema do desenvolvimento econômico no Brasil recente e os quatro principais desafios no caminho do pleno uso do potencial produtivo nacional (capítulos 4 e 5); e (3) o arranjo de política econômica centrado nos cinco preços macroeconômicos “corretos” e as reformas institucionais necessárias para o resgate de uma agenda de desenvolvimento econômico (capítulos 6 e 7).

Pelo seu formato, o livro é uma proposta de intervenção na realidade econômica do Brasil. Partindo da interpretação novo-desenvolvimentista da economia, o autor oferece as diretrizes gerais para um projeto de desenvolvimento nacional preocupado em mediar as interações entre Estado e mercado. O funcionamento eficiente do sistema produtivo disciplina o esforço dos indivíduos com vistas ao aumento da produtividade. Simultaneamente, a economia tem suas exigências moderadas pelo Estado e pelas instituições da sociedade civil, a qual direciona os impulsos da primeira para a distribuição mais equitativa da renda e da riqueza. Esse equilíbrio entre mercado e Estado está na raiz do que o autor entende por desenvolvimento econômico.

Nesse sentido, a primeira parte faz uma revisão da história moderna das sociedades ocidentais. O autor rejeita a polarização entre capitalismo e socialismo como quadro analítico para compreender o presente; prefere a dicotomia, aperfeiçoada por ele mesmo, entre os dois modelos de capitalismo, a saber: o liberalismo econômico e o desenvolvimentismo. O liberalismo relega o Estado à posição de mero garantidor da infraestrutura institucional de suporte ao setor privado. Já o desenvolvimentismo confere ao Estado um papel complementar ao mercado na coordenação da atividade econômica, tanto no plano macro quanto no microeconômico. Ao reescrever a história econômica como a alternância entre esses dois modelos de capitalismo (capítulos 3, 4 e 5), o autor insere uma abordagem dialética em sua narrativa, que lhe permite incorporar à sua análise as dimensões política e sociológica. Esse expediente reforça a convicção, há muito mantida pelo autor, de que a economia é uma ciência social que estuda os sistemas econômicos complexos em seus contextos social e histórico.

Com efeito, forças econômicas interagem dinamicamente com forças políticas (domésticas e estrangeiras) que disputam o comando do processo de mudança institucional. Os arranjos de políticas econômicas que emergem das coalizões entre grupos geram uma tensão entre a “eficiência” aos propósitos destes grupos e a “funcionalidade” para o desenvolvimento da coletividade. Nesse sentido, na narrativa de Bresser-Pereira, o liberalismo econômico é “eficiente” para os grupos no poder, mas se mostra disfuncional ao desenvolvimento de longo prazo da economia nacional. O desenvolvimentismo se apresenta como uma coalizão de industriais, trabalhadores e exportadores capazes de conter - e reverter - os excessos das frações da elite econômica que exaram aversão ao compartilhamento dos benefícios do crescimento com as classes trabalhadoras.

O Estado desempenha um papel importante nessa dinâmica, ao garantir não apenas os direitos propriedade e os contratos mas também as condições gerais do investimento privado (p.24). Além das cinco condições clássicas da acumulação de capital, relativas ao lado da oferta (educação, sistema monetário, suporte institucional aos mercados, infraestrutura e financiamento de longo prazo), adicionam-se duas outras. A sexta condição foi oferecida por Keynes e busca “neutralizar a tendência à insuficiência da demanda”, via políticas fiscais e monetárias, de sorte a garantir às empresas um fluxo de renda sustentado que permita a expansão contínua da produção. Por fim, a sétima condição constitui a inovação teórica trazida por Bresser-Pereira e é a razão de ser do novo desenvolvimentismo: “neutralizar a tendência à sobreapreciação cíclica e crônica da taxa de câmbio” com vistas a promover o acesso à demanda externa e interna por parte das empresas que usam tecnologia no “estado da arte” (p.26). Uma taxa de câmbio apreciada eleva o valor dos salários em moeda internacional, reduzindo a margem de lucro dos exportadores, inviabilizando a venda nos mercados internacionais. Note-se que isso implica um constrangimento determinante sobre a escala de produção dos empresários.

As coalizações de grupos levarão a diferentes aplicações das políticas de Estado sobre a economia. E aqui, ambos os programas estão expostos aos dois tipos de “irresponsabilidade no gastar” (p.29). Os liberais são mais propensos ao populismo cambial: altas taxas de juros apreciam a taxa de câmbio e transferem a demanda dos consumidores para o exterior, na forma de maiores importações. Os déficits em conta corrente atraem a poupança externa na forma de entrada de divisas estrangeiras que reforçam a apreciação cambial. Já os desenvolvimentistas sofrem mais da tentação do populismo fiscal, manifesto na inclinação ao gasto público indiscriminado e à geração de déficits fiscais elevados e crônicos. Esses desorganizam as contas públicas e geram pressão sobre a inflação, conduzindo a elevadas taxas de juros que deflagram o populismo cambial visto acima.

O capítulo 2 apresenta os principais elementos teóricos formativos do novo desenvolvimentismo. O autor lança mão de uma ferramenta retórica importante: a reinvenção da tradição (Arida 1996). Ainda que a intenção explícita do autor fosse a de mostrar as diferenças contextuais em que o desenvolvimentismo foi ampliando seu repertório temático, é difícil não notar uma busca implícita por uma reconstrução desnecessariamente linear (Whiggish) da história do pensamento desenvolvimentista como um acúmulo de progressos ao longo dos séculos.

É um recurso retórico comum na história do pensamento econômico “sentar-se sobre os ombros de gigantes”, como forma de atribuir credibilidade e relevância a um esforço de reconstrução do pensamento. No caso presente, o risco dessa estratégia narrativa é tornar o conceito de desenvolvimentismo excessivamente elástico e, por vezes, com aplicação casuística e seletiva. Por exemplo, é questionável classificar como desenvolvimentistas economistas como Paul Krugman, Joseph Stiglitz e Dani Rodrik apenas por que esses economistas defendem um protagonismo maior do Estado no coordenação da economia (p.34). Nem todas as vertentes keynesianas se acomodam confortavelmente sob o guarda-chuva desenvolvimentista. Alternativamente, adotar o desenvolvimentismo implica necessariamente seguir a teoria de J. M. Keynes e, como já vimos, estendê-la para a realidade das economias abertas e, com a contribuição cepalina, das relações centro-periferia ou norte-sul.

É essa visão sistêmica que o novo desenvolvimentismo herda da economia do desenvolvimento do pós-Segunda Guerra. Sua principal proposição teórica é contraintuitiva e, por isso, carrega uma ousadia: países pobres não precisam de poupança externa para se desenvolver. A poupança baixa é uma das principais barreiras ao investimento sustentado de longo prazo. Logo, é intuitivo deduzir que um reforço vindo de fora seria útil. Todavia, o novo desenvolvimentismo alega que os capitais especulativos acabam sendo utilizados para financiar consumo e apreciar o câmbio, o que termina por reduzir a densidade industrial do país. Por isso, o tipo de poupança externa é relevante: prefere-se o endividamento patrimonial, na forma de investimentos diretos no país (p.41). Por isso, não se opõe às empresas estrangeiras, contanto elas invistam no país. Esse investimento gerará, por sua vez, a poupança interna necessária para financiar a si próprio.

Nesse sentido, uma taxa de câmbio competitiva permite a obtenção de superávits na conta comercial, inibindo a tendência ao excesso de importações de bens de consumo e, por conseguinte, à entrada do capital financeiro especulativo. Todavia, para atingir esse resultado, a taxa de câmbio deve estar no nível “correto”. Países abundantes em recursos naturais e humanos sofrem pressão para vender ao exterior produtos com baixo conteúdo tecnológico (agropecuária e indústria extrativa). Por serem altamente mecanizados, tais setores têm um custo relativamente baixo e, impulsionados pelos preços internacionais, acabam dominando a pauta de exportações. Atraem, portanto, forte volume de divisas estrangeiras, apreciando a taxa de câmbio e gerando desafios para setores intensivos em mão de obra e expostos à concorrência externa, como é o caso da indústria de transformação. Como o preço em dólares é fixado pelo mercado internacional, a apreciação cambial eleva o custo do trabalho, reduzindo a margem de lucro e a competitividade do produto exportado. Eis a doença holandesa a ser neutralizada. A saída aventada é curiosamente simples (p.48-53): basta taxar as empresas exportadoras de commodities na medida exata do diferencial entre as taxas de câmbio corrente (determinada pelo setor primário) e de equilíbrio industrial (determinada pela razão entre o custo efetivo do trabalho doméstico e internacional).

A taxa de câmbio tem ainda outros efeitos distributivos. Uma apreciação atua em favor dos salários de toda a economia e da renda de juros e de aluguéis (estimulando o consumo), enquanto reduz a competitividade e comprime as margens de lucro, em particular, das empresas industriais (tradables não commodities), desestimulando os investimentos em setores intensivos em tecnologia. No caso brasileiro, Bresser-Pereira (2007) há mais de dez anos vem apontando a perversa combinação de juros elevados e câmbio apreciado que mina a base para o arranque do desenvolvimento nacional.

Essa economia política explica as coalizões antidesenvolvimentistas: depreciar a taxa de câmbio confronta diretamente interesses das elites rentistas-financeiras, as quais, mundo afora, não têm qualquer compromisso com o desenvolvimento de longo prazo (Wolf 2018; Mazzucato; Jacobs 2016). Esses grupos conseguem uma aliança inusitada com os setores assalariados, os quais rejeitam a queda imediata do poder de compra dos salários que acompanha qualquer depreciação cambial, bloqueando qualquer apoio popular de maior escala ao projeto desenvolvimentista. Essa barreira tem também causas internas ao novo desenvolvimentismo, o qual se vê dividido internamente quanto à possibilidade efetiva de essa queda do salário real ser compensada indiretamente, protegendo os trabalhadores enquanto o salário real não volta a crescer.

Essa resistência de grupos de interesse inflige danos de longo prazo à sociedades em desenvolvimento. Similarmente à questão ambiental, a desindustrialização carrega consigo irreversibilidades prementes. Uma vez perdida qualquer etapa da cadeia produtiva, é altamente improvável que a depreciação cambial a traga de volta. Nesse sentido, a neutralização da doença holandesa não é panaceia: trata-se de uma medida preventiva contra o desmantelamento da densidade industrial e, portanto, em prol da competitividade internacional da indústria.

Essa incapacidade das elites brasileiras em construir um projeto nacional-desenvolvimentista se origina após a crise da dívida externa em 1982 e se acentua após a estabilização de 1994. O boom das commodities (2003-2007) mascara o problema da desindustrialização com superávits comerciais históricos que encobrem a rápida ascensão das importações. A irrupção da crise do subprime deixa novamente flagrante a crescente perda dos motores do dinamismo da economia brasileira e revela um enorme déficit comercial. A liquidez trilionária injetada pelos países desenvolvidos para proteger suas economias deprime as taxas de juros internacionais. Os capitais estrangeiros correm compulsivamente para financiar os crescentes gastos públicos domésticos, em busca da rentabilidade diferencial dos juros brasileiros. A taxa de câmbio vai-se apreciando e esmagando os lucros industriais. Os investimentos claudicam. O governo tenta reduzir custos das empresas via queda forçada da taxa de juros, represamento de preços administrados, desonerações fiscais indiscriminadas e injeção de crédito via bancos públicos a taxas subsidiadas. O abismo fiscal abre a sua garganta e, quando o malabarismo contábil se vê exposto, o governo se vê obrigado a cortar investimentos públicos. Os investimentos privados melhoram sua rentabilidade virtual, mas os lucros industriais mergulham e a confiança na economia vai soçobrando. A crise fiscal se instala e turbina a crise política e institucional que nos trouxe até o momento presente.

A agenda de políticas e reformas proposta pelo autor ataca os quatro grandes problemas (capítulo 5), a saber: a ausência de uma ideia de nação que impede uma agenda de longo prazo, o sistema eleitoral que estimula a corrupção na relação entre Executivo e Legislativo, a imensa desigualdade que impede o firmamento do pacto democrático e, por fim, a captura do patrimônio público via despesa com juros da dívida pública. A correção dos mecanismos distributivos disfuncionais ao desenvolvimento econômico (capítulo 6) requer colocar os cinco preços macroeconômicos no lugar. Os equilíbrios combinados do orçamento público e das contas externas permitem um binômio juro-câmbio que neutraliza a doença holandesa por meio de uma taxa de lucro satisfatória ao setor industrial. O crescimento moderado da taxa de salários facilita, por sua vez, o controle da taxa de inflação. O rigor com as contas públicas abre espaço para o Estado exercer, em complemento ao mercado, sua função coordenadora do sistema econômico.

Finalmente, do ponto de vista institucional, as reformas preveem a criação de um conselho de política cambial, a proibição da indexação formal dos contratos, uma política industrial permanente, um teto para a despesa corrente que não bloqueie o investimento público, uma reforma da previdência com idade mínima mais elevada mas que garanta direitos básicos, dentre outras.

Publicado em meados do ano, o livro defende um projeto de desenvolvimento que veio a ser rejeitado pelas urnas poucos meses depois. A eleição de uma plataforma com retórica ostensivamente antiestatal e antidemocrática é certamente anticlimática para quem esposa as ideias desenvolvimentistas do autor. Segundo Celso Furtado (1998, p.47), o desenvolvimento ocorre “quando a capacidade criativa do homem se volta para a descoberta de suas potencialidades, e ele se empenha em enriquecer o universo que o gerou”. Se o diagnóstico que a obra de Bresser-Pereira nos oferece for confirmado, os próximos anos testemunharão mais uma vez o crepúsculo do desenvolvimento brasileiro. Continuaremos à sua espera no longo amanhecer da nossa consciência nacional.

REFERÊNCIAS

ARIDA, P. A história do pensamento econômico como teoria e retórica. In: REGO, J. M. Retórica na Economia. São Paulo: Editora 34, 1996. [ Links ]

BRESSER-PEREIRA, L. C. Macroeconomia da estagnação: critica da ortodoxia convencional no brasil pos-1994. São Paulo: Editora 34, 2007. [ Links ]

_______. Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil. São Paulo: Editora da FGV, 2018. [ Links ]

FURTADO, C. O capitalismo global. 7.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1998. [ Links ]

MAZZUCATO, M.; JACOBS, M. Rethinking Capitalism: Economics and Policy for Sustainable and Inclusive Growth. Wiley & Political Quarterly, 2016. [ Links ]

WOLF, M. Why so little has changed since the financial crash. Financial Times, 4 set. 2018. [ Links ]


@ -andre.carvalho@unifesp.brAndré Roncaglia de Carvalho

é doutor em economia do desenvolvimento pela Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária e professor adjunto de ciências econômicas da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo (EPPEN-Unifesp), Osasco.
Revista Estudos Avançdos

Histórias afro-atlânticas

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Histórias afro-atlânticas


Ricardo OhtakeI


I Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, São Paulo, Brasil.


Os 130 anos que separam a assinatura da Lei Áurea, que determinava a abolição da escravatura, dos dias de hoje não foram suficientes para extinguir as consequências de um dos mais violentos períodos da história do Brasil, iniciados quase três séculos atrás, ainda manifesto tanto por meio de preconceitos e maus-tratos, que ainda ocorrem de forma ilegal, como também a partir da violência oficial, encarceramento em massa e da falta de oportunidades iguais para a população negra, nas plantações e nos pesados encargos urbanos e domésticos.

Esse violento processo não se restringiu ao Brasil: praticamente todos os países da América receberam negros oriundos da diáspora africana para trabalharem como mão de obra escrava, quase sempre em condição degradante. Para além de produzir cicatrizes e questões que persistem até hoje, esse processo teve como palco o Oceano Atlântico, produziu também uma série de imagens, documentos, textos, fotografias e outras obras de arte que se debruçavam sobre o tema. O assunto, em função das consequências existentes, mostra até hoje inquietações em artistas contemporâneos, principalmente negros, que por vezes resgatam o tema e trabalham em cima da própria iconografia da época, criando leituras atuais sobre fatos formadores.

Duas instituições artísticas brasileiras, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e o Instituto Tomie Ohtake, tomaram a decisão de realizar uma extensa exposição com esse material. O período da mostra foi de 28 de junho a 21 de outubro de 2018, com um acervo cabendo 60% ao Masp e 40%, ao Instituto Tomie Ohtake, com 504 obras de 215 artistas, de 54 instituições de 13 países, e 62 galerias e coleções particulares do mundo, divididas em oito capítulos: 1 Mapas e margens; 2 Emancipações; 3 Cotidianos; 4 Ritos e ritmos; 5 Rotas e transes: Áfricas, Jamaica, Bahia; 6 Retratos; 7 Modernismos afro-atlânticos; 8 Resistências e ativismos. A curadoria coube a Adriano Pedrosa, Ayrson Heráclito, Hélio Menezes, Lilia Moritz Schwarcz e Tomás Toledo, e a organização editorial, a Adriano Pedrosa e Tomás Toledo.

Simultaneamente à exposição, foi editada uma publicação (27,5x20,5cm, 416 páginas) com a reprodução de todas as obras e com textos gerais e específicos de cada capítulo da mostra, escritos pelos vários curadores, com expressiva concepção visual e preciosa qualidade de impressão gráfica, necessárias à compreensão cromática, textural, e do uso do material - tinta a óleo sobre tela ou sobre papel, fotografia impressa em platina ou em prata, textura de esculturas de madeira, peças em metal.

A moderna concepção do livro de arte é muito diferente do livro de texto. Este tem em todas as páginas duplas a mesma diagramação, e mesmo quando haja ilustração essas ficam dentro da mancha de texto, ao contrário do livro contemporâneo de arte cuja liberdade de diagramação faz parte do entendimento da própria arte.

É essa característica que difere a velha gráfica da que domina a produção de pouco mais de meio século e que se desenvolve numa extraordinária velocidade exclamações na admiração de belos exemplares e com uma tecnologia muito aperfeiçoada do sistema industrial de impressão que significa a máquina impressora, o processo de pré-impressão, o papel e a tinta, sem contar a reprodução fotográfica incluindo sofisticada iluminação de cada obra, o acabamento do exemplar etc.



Coleção Alma Fine Art & Galeria, Salvador, Brasil.

Bauer Sá. Salvador, Brasil, 1950– vive em Salvador. Sapato branco, sem data. 



A localização do Oceano Atlântico em relação à África e às costas americanas mostra a grande extensão da distribuição dos negros vindos de um continente para outro, os tamanhos das embarcações que trouxeram a mão de obra, desde os primeiros escravizados, depois transportados, são centrais nessa exposição com obras de artistas fundamentais como Portinari, Mendive, Gilberto de la Nuez, e os atuais Emanoel Araujo, Paulo Nazareth, Jaime Lauriano, Sidney Amaral, Rosana Paulino e Faith Ringgold, entre muitos outros.

O dia a dia da escravidão sempre foi muito violento, apesar de haver imagens em que uma suposta suavidade e vida confortável aparece em desenhos e pinturas, mas também cenas em que os negros escravizados apareciam muito violentados e açoitados, chegando até a haver censura por parte do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, pois a elite brasileira pretendia divulgar um processo menos violento.

O cotidiano é bastante registrado, tanto nas zonas rurais como nas vilas, desde as conhecidas imagens dos artistas do grupo de Mauricio de Nassau, principalmente Frans Post, como de outros europeus, o francês Jean Chauffrey, o jamaicano Isaac Mendes Belisario, o inglês Charles Landseer, o espanhol Victor Patricio Landaluze, o francês que viveu no Brasil Félix Émile Taunay, o britânico Henry Chamberlain, que viveu entre o século XVII e o século XIX nas Américas; depois, temos norte-americanos, centro-americanos e brasileiros já do século XX e num estilo que se aproxima da moderna pintura.

A exposição buscou justamente mostrar como o Atlântico foi palco de todo esse processo, iniciado no século XV, e que, de alguma maneira, persiste até os dias de hoje. Essa dimensão náutica e geográfica da exposição fica muito clara em alguns núcleos: tanto “Mapas e Margens”, presente no Masp e que apresenta algumas dessas cartografias, como em “Emancipações”, presente no Instituto Tomie Ohtake e que traz alguns trabalhos que discutem a representação do navio negreiro, desde em artistas viajantes estrangeiros, como Rugendas, até artistas contemporâneos brasileiros, como Paulo Nazareth.

A maneira suavizada e romantizada de se representar a escravidão, dentro e fora do Brasil, também é discutida pela mostra, pois essas imagens trazem muitas vezes cenas de violência muito clara. Novamente, releituras feitas por artistas negros são parte importante. Nomes como Jaime Lauriano, Rosana Paulino e Sidney Amaral foram fundamentais nessa empreitada. Tais releituras aparecem lado a lado de aquarelas e telas de nomes como Debret, Rugendas, Briggs e Pedro Américo.

Finalmente, inúmeras imagens de resistências e ativismos negros, desde a época colonial até os dias de hoje, integram salas no Instituto Tomie Ohtake e do Masp. Objetos rituais, pinturas, fotografias e vídeos apresentam algumas dessas formas de se resistir e fazer política no mundo afro-atlântico, além de trazer vários pontos de diálogo e elementos iconográficos em comum entre os trabalhos.

Simultaneamente a essa publicação (“Catálogo”) foi editado um livro (“Antologia”) contendo textos nos quais a curadoria se baseou para a realização da exposição (24,5x17,7 cm, 624 páginas).


REFERÊNCIAS

PEDROSA, P.; HERÁCLITO, A.; MENEZES, H.; SCHWARCZ, L. M.; TOLEDO, T. (Curadoria e textos). Histoórias Afro-Atlânticas. Volume 1. Catálogo. São Paulo, Instituto Tomie Ohtake; Masp, 2018 416p. Organização editorial Adriano Pedrosa e Tomás Toledo. 

PEDROSA, A.; CARNEIRO, A.; MESQUITA, A. Histórias Afro-Atlânticas. Volume 2. Antologia. São Paulo, Instituto Tomie Ohtake; Masp, 2018. 624p. Com a colaboração de Artur Santoro, Hélio Menezes, Lilia Moritz Schwarcz, Tomás Toledo.

Recebido: 22 de Outubro de 2018; Aceito: 11 de Novembro de 2018



dirige o Instituto Tomie Ohtake desde sua criação, em 2001. Foi secretário de Estado da Cultura de São Paulo, dirigiu o Centro Cultural São Paulo, o Museu da Imagem e do Som e a Cinemateca Brasileira. Formou-se em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo. Foi membro do Conselho Deliberativo do Instituto de Estudos Avançados da USP entre 2015 e 2016 e titular da Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência do IEA-USP.
Revista Estudos Avançados

Poesia brasileira do século XVIII ao XXI

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Poesia brasileira do século XVIII ao XXI


Flávia AmparoI


IInstituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.

Os percursos de Antonio Carlos Secchin pela lírica brasileira, em especial como crítico e como autor de poesia, são conhecidos no meio literário e marcam uma carreira dedicada ao estudo de importantes escritores canônicos e não canônicos de nossa literatura e à retomada criativa que, em sua obra poética, propõe releituras desse importante legado.

Percursos da poesia brasileira constitui-se a partir de um acervo de artigos que congrega uma boa parte da produção crítica sobre poesia publicada por Secchin entre os anos 1996 e 2014, propondo, conforme o autor denomina, uma “leitura seletiva da trajetória de nossa lírica” (p.5). Curiosamente, no limiar do livro, no espaço que antecede o corpo de artigos que o compõem, o crítico e poeta seleciona textos lapidares que servirão de guia aos leitores nessa caminhada pelas veredas do poético: “Poesia e desordem” e “Memórias de um leitor de poesia”. Essa antessala secchiniana, intitulada “Questões de princípios”, apresenta-nos duas outras faces de sua trajetória, que constituem as bases de sua formação no universo das Letras - a do leitor e a do professor de poesia. O uso do plural para a expressão que nomeia essa primeira parte remete-nos aos princípios pelos quais a sua crítica se fundamenta e, da mesma forma, ao início do aprendizado poético, às suas “memórias prévias” do tempo de escola.

Esses textos de abertura, além de fazerem parte de obras homônimas do autor, representam os princípios norteadores que vão marcar a obra crítica secchiniana, apontando os parâmetros de análise da poesia e, ao mesmo tempo, conscientizando o leitor sobre a impossibilidade de fixar esses parâmetros. A aparente contradição na trajetória proposta pelo livro revela-nos que a poesia não será sumariamente domesticada pela clausura da crítica, muito menos vislumbrada no meio do caminho percorrido: teremos de buscá-la às margens do poema e expor-nos sempre ao iminente risco de perdê-la nas veredas sinuosas da linguagem:


Há muitos modos de aprisionar o transbordamento do mundo; não queiramos que a poesia seja mais um. Ela deve ser a palavra vigorosa diante de todo arbítrio classificatório, a voz que não se pode perceber senão nas margens. Por isso a poesia representa a fulguração da desordem, o “mau caminho” do bom senso, o sangramento inestancável do corpo da linguagem, não prometendo nada além de rituais para deus nenhum. (p.12)

O crítico sustenta o pressuposto de que o reino da poesia não se apresenta como um mundo ordenado e, por essa razão, é impossível guiar-se com precisão pelo fio de Ariadne da crítica. Ao crítico, cabe iluminar o poema, ainda que seja para constatar, na deriva dos sentidos, a pluralidade das vias pelas quais as palavras podem circular.

O trabalho exegético do escritor configura-se em cada artigo por um viés que costuma prestigiar as etapas de análise do literário e cumprir um ciclo hermenêutico pleno: contempla os conhecimentos informativos, analíticos e interpretativos necessários a uma melhor apreensão das obras estudadas. Significa dizer que há uma preocupação em esclarecer vertentes do poético relacionadas à compreensão dos sentidos e dos aspectos da erudição, ao estudo da estrutura e da técnica do poema e à análise crítica mais profunda, que estabelece os pontos de contato entre a obra e uma rede de conceitos intertextuais, associativos e simbólicos que a constituem.

A título de exemplo, o estudo que abre a segunda parte do livro, dedicado a Tomás Antônio Gonzaga, destaca a temática do eu lírico e da musa, em Marília de Dirceu, para revelar como essa proximidade entre ambos ecoa tanto nos sentidos do poema quanto na escolha da pessoa verbal usada na interlocução do eu lírico. De igual modo, observa que o número de estâncias dedicadas à amada corresponde numericamente às da Natureza, estabelecendo a simetria da construção do poema, em busca do equilíbrio clássico e da valorização dos principais atributos da musa a partir de seu espelhamento com o ambiente. Por fim, num arremate que quebra os clichês interpretativos do arcadismo brasileiro, o autor refuta uma visão unívoca da obra para admitir que há uma dupla via poética, em que simetria e assimetria se conjugam na construção dos sentidos:


O amor, portanto, não é apenas o bem-comportado sentimento a reboque de uma Natureza que, com regularidade, fecunda, produz e gera, mas também o vetor que desestabiliza o previsível ciclo da vida, introduz a assimetria, franqueia as portas da loucura. O estudo dos processos de recalque desse ímpeto entrópico, sublimado em tantos textos de Marília de Dirceu, talvez acrescente insuspeitadas doses de veneno ao anódino leite extraído do alegre e manso rebanho. (p.29)

O arremate do artigo sobre Gonzaga segue o percurso de análise que corresponde ao leitmotiv da crítica secchiniana, já previamente discutido na antessala do livro: o poético opera pelos princípios da ordem e da desordem, da tese e da antítese. O escritor consegue estabelecer, assim, a síntese da ideia primordial do poema ao concretizá-la na simbologia dos elementos leite/veneno, inserindo o pomo da discórdia nesse anódino Paraíso gonzaguiano.

A síntese constitui-se o ponto-chave dos desfechos de cada artigo do livro, momento de sublimação do poeta Antonio Carlos Secchin pelo viés do crítico - sua mania de beleza - no bom sentido da transfiguração da linguagem em busca do arremate perfeito. É admirável apreciar a fluência do autor e sua escolha pela palavra precisa que, unida ao seu caráter investigativo, traz ao leitor descobertas histórico-críticas enfeixadas pelas análises originais dos poemas.

Considerando essa questão, em “Gonçalves Dias: poesia e etnia”, vemos uma combinação entre o estudo da obra e do contexto histórico e memorialístico do bardo maranhense, que inclui a leitura de alguns poemas e de duas cartas, além da análise de uma caricatura do poe- ta, de autoria de Angelo Agostini. Ao recompor a trajetória gonçalvina, Secchin traz elementos pouco conhecidos da biografia do autor, como o necrológio publicado por engano no jornal (dois anos antes de sua morte) e o caráter premonitório de algumas cartas, em que preconiza o mar como o túmulo digno de um trovador. O vaticínio efetivamente se confirma com o naufrágio do Ville de Boulogne, navio no qual retornava à terra natal com os manuscritos de “O timbiras”, que foram perdidos no mar.

Na construção do artigo sobre Gonçalves Dias, o crítico desdobra os sentidos da palavra “naufrágio”, remetendo, na abertura do texto, ao juízo crítico de Agripino Grieco acerca do apagamento da obra ao longo dos anos e, também, ao contexto biográfico que marcou o desfecho da vida do poeta e que, igualmente, vai ilustrar o epílogo do artigo secchiniano. Assim sendo, o ato da escrita do texto simboliza a recomposição da memória do escritor, como tentativa de salvá-lo do duplo naufrágio, vaticinado pelo próprio poeta e pela crítica: “Espero que, contrariando o desencantado juízo de Agripino Grieco, aprendamos a mais querer o discurso poético de Gonçalves Dias, fazendo com que ele consiga soar e sobreviver a todos os naufrágios da memória brasileira” (p.70).

Os dois artigos escolhidos foram aqui detalhados para ilustrar alguns dos procedimentos críticos do livro, de modo a “dar a ver” as sutilezas que marcam a exegese secchiniana e que vão ecoar no contexto geral da obra sob variadas nuances. O leitor de poesia apropria-se do espaço da memória para redimensionar o olhar sobre cada obra - do arcadismo ao romantismo, do simbolismo ao parnasianismo, do modernismo à poesia contemporânea. Nos 42 artigos do livro dedicados ao estudo sistemático de poetas brasileiros, comparecem maciçamente os poetas românticos (oito artigos), seguidos pelos dois poetas preferidos do crítico, Drummond e João Cabral, aos quais vai dedicar duas suítes, compostas de oito e cinco artigos, respectivamente, revelando a intensidade com que a melodia dos dois poetas acompanham, ininterruptamente, esse fundo musical do seu percurso crítico.

Embora concentrando-se particularmente em Drummond, outros autores surgem na confraria dos poetas do livro - desde os conhecidos do cânone, como Álvares de Azevedo, Casimiro, Varela, Castro Alves, Cruz e Sousa, Cecília, Vinícius, Quintana, Jorge de Lima; até os mais esquecidos, como Mario Pederneiras e Vitoriano Palhares. Há ainda os menos óbvios, como Euclides da Cunha e Bernardo Guimarães, assim como os contemporâneos como Ferreira Gullar, Ivan Junqueira, Chico Buarque e Paulo Henriques Brito, além de outros escritores que marcam o panorama poético brasileiro dos séculos XX e XXI, que serão nomeados em dois artigos mais gerais do livro: “Poesia e gênero literário: alguns contemporâneos” e “Caminhos recentes da poesia brasileira”. Este último é uma excelente recomposição dos principais movimentos da lírica do Brasil a partir da década de 1950, desde o surgimento do concretismo até os autores mais recentes.

Torna-se tarefa difícil capturar o essencial desses Percursos da poesia brasileira, obra plural, de grande fôlego e erudição, de modo que poderíamos chamá-la de “canto geral” da crítica de poesia no Brasil, uma vez que tão poeticamente se debruça sobre um legado de grande relevância literária. Podemos afirmar que Secchin apropria-se da matéria analisada e, tal como a “Consideração do poema”, uma das primeiras composições de Drummond citadas no artigo “A rosa, o povo”, parece-nos dizer que “Estes poetas são meus. De todo o orgulho,/ de toda precisão se incorporaram/ ao fatal meu lado esquerdo [...] / São todos meus irmãos, não são jornais / [...] é toda minha vida que joguei. // Estes poemas são meus. É minha terra/ e é ainda mais do que ela [...] (Andrade, 2008, p.21).

O crítico define a literatura como “espaço mágico, que é o mais solitário e, ao mesmo tempo, o mais povoado de todos, espaço em que o indivíduo consegue transitar da solidão radical para a solidariedade mais irrestrita” (p.216). A definição ressignifica o leitmotiv da obra secchiniana, uma vez que o autor se coloca entre “a voz do texto e a escuta do leitor” (p.15), entre a singularidade de sua leitura e a pluralidade da poesia. Como nas palavras do poeta Estácio, na Divina comédia de Dante, direcionadas ao mestre Virgílio, cabe ao crítico ser o leitor primordial, a iluminar solidariamente os caminhos da poesia para os que acompanham, logo atrás, seus passos: “Facesti come quei che va di notte, / che porta il lume dietro e sé non giova, / ma dopo se fá le persone dotte [Fizeste como o caminhante noturno / que leva o seu lume às costas e a si mesmo não beneficia / mas faz sábio o que segue atrás de si]” (Alighieri, 1998, p.145, tradução nossa). O poeta há de sempre caminhar solitariamente no fértil deserto do poético, enquanto seus leitores seguem-lhe o percurso, saciando-se em suas fontes.

REFERÊNCIAS

ALIGHIERI, D. A divina comédia. Purgatório. Trad. Ítalo Eugênio Mauro. São Paulo: Ed. 34, 1998. [ Links ]

ANDRADE, C. D. de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2008. [ Links ]

SECCHIN, A. C. Percursos da poesia brasileira. Do século XVIII ao XXI. Belo Horizonte: Autêntica Editora; Editora UFMG, 2018. 367p. [ Links ]

@ - v.flavia@globo.comFlávia Amparo

é professora associada de literatura brasileira da Universidade Fede- ral Fluminense e do Colégio Pedro II.
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Cartas de Rubens Borba de Moraes ao livreiro português António Tavares de Carvalho


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Cartas de Rubens Borba de Moraes ao livreiro português António Tavares de Carvalho


Marcos Antonio de MoraesI


IInstituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil.

Entre 1961 e 1985, o bibliófilo, bibliógrafo e professor de biblioteconomia Rubens Borba de Moraes (1899-1986) correspondeu-se com o “livreiro-antiquário” português António Tavares de Carvalho, à frente da Old Books and Prints, em Lisboa. O vínculo, inicialmente comercial, transfigura-se ao longo do tempo, adquirindo a feição de uma calorosa amizade, abrindo espaço nas cartas para uma boa “prosa-fiada” (p.338). As 228 mensagens assinadas pelo paulista distribuem-se irregularmente no perío- do, adensando-se na década de 1960, mais espaçadas nos anos seguintes, sem perder o vigor afetivo da interação.

As Cartas de Rubens Borba de Moraes ao livreiro português António Tavares de Carvalho, organizadas pelo professor e editor Plínio Martins Filho (2018), a partir de cópia da documentação obtida pelo docente da ECA-USP Ivan Teixeira, falecido em 2013, recuperam a história dessa substanciosa interlocução, cuja importância reside não apenas em sua dimensão biográfica, ao lançar luz sobre o autor de O bibliófilo aprendiz (1965), como também em termos culturais abrangentes. A sumária, mas apurada “apresentação” do organizador do volume, desenha um sugestivo mapa do “potencial informativo da documentação” (p.1). Em geral, correspondências de intelectuais constituem ricos universos discursivos que espelham linhas de força do pensamento de uma época, posturas ideológicas e ideários coletivos. Circulando no âmbito privado, visões pessoais expressas no calor da hora surgem menos controladas, passíveis de reformulações em face da reação do interlocutor. O currente calamo deixa frestas por onde passam até mesmo leviandades e preconceitos.

Rubens Borba de Moraes deixou marca significativa no campo letrado. Nome presente no movimento modernista de São Paulo na década de 1920, ligou-se à revista Klaxon; publicou Domingo dos séculos (1924), ensaio em defesa da arte de vanguarda. Reconhecido pelo seu pioneirismo na moderna operacionalização de acervos bibliográficos, esteve ao lado de Mário de Andrade no Departamento de Cultura, capitaneando a Biblioteca paulistana (1936-1942); na direção da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (1945-1947); e ocupando postos prestigiosos na área de informação e de bibliotecas na Organização das Nações Unidas, em Nova York e Paris (1948-1958). Em 1958, publicou a incontornável Bibliographia brasiliana (Moraes, 2010), em inglês, em dois volumes, obra revista e ampliada em 1983 (e reeditada em 2010, em português, sob selo da Edusp/Fapesp); em 1969, tirou do prelo a Bibliografia brasileira do período colonial; em 1979, Livros e bibliotecas no Brasil colonial, entre outros títulos.

De António Tavares de Carvalho, contrariamente, restaram poucos traços biográficos em circulação. No prefácio da Bibliografia brasileira do período colonial, Rubens Borba de Moraes (1969) aquilata a contribuição do comerciante de livros raros e manuscritos que lhe atendia com dedicação: “Ficarei sempre grato ao meu amigo [...], pelo interesse que demonstrou por este trabalho e pela ajuda no enriquecimento de minha coleção particular, núcleo desta bibliografia” (p.XIX). Se a edição das Cartas não colige as mensagens do livreiro, na escrita epistolar do bibliófilo emerge a presença viva de seu interlocutor, desvelando uma personalidade que, diferentemente do que, talvez, se pudesse imaginar, não se move apenas pelo impulso pecuniário. Presentifica-se o homem culto que, em 1962, revela o propósito de “escrever [...] tese sobre a ordem de São Miguel” (p.81); e, em 1965, oferece seus préstimos intelectuais, logo aceito pelo biblió- filo:


Eu não sei o que lhe dizer sobre sua tão amável proposta de fazer-me as pesquisas das obras que ainda não vi para terminar a minha Bibliografia Luso-Brasileira. [...] eu não poderia encontrar outra pessoa mais capaz para esse trabalho que demanda conhecimento de livros antigos e uma cultura que nem toda gente tem. (p.210)

Rubens louva, nas cartas, a “capacidade ‘descobritiva’” do negociante (p.93) empenhado em rastrear obras pelas quais ansiava. “Não há o que lhe peça que não descubra!”, assegurou a seu destinatário em 1962, “devo-lhe muitas das melhores e mais raras peças de minha coleção de autores brasileiros antigos. É uma gentileza que não me esqueço que lhe devo” (p.93). Em suas “recordações”, enquanto Testemunha ocular (Moraes, 2011), publicadas postumamente, ainda fixará o reconhecimento ao livreiro que lhe facultara a aquisição do primeiro livro impresso no Brasil, em 1747, no Rio de Janeiro, a Relação da entrada do bispo, do qual, na época, asseverava existir só “uns seis ou sete exemplares no mundo”, o dele sendo o “único em mãos de particular” (p.234). Em 1974, ao fazer na carta um balanço de seu acervo, considerando a possibilidade de receber o amigo em sua residência em Bragança Paulista, constata “quantos exemplares” lhes vieram por intermédio dele: “Minha coleção deve-lhe muito! Espero que continue a enriquecê-la” (p.416).

As relações epistolares são indelevelmente movidas por interesses, sejam de ordem afetiva, intelectual, sejam econômicas. O diálogo travado entre um bibliófilo e um livreiro pressupõe um espectro de aspirações afins (expectativa de aquisição de uma obra versus expectativa de lucro), a abertura para margens de concessões no trato comercial, gestos de favorecimento (a lembrança de um determinado cliente e não de outro, por exemplo, ambos interessados pelo mesmo volume). Rubens Borba de Moraes, em face de Tavares de Carvalho, não regateia; julgava conservar as “boas virtudes burguesas”, guardando ainda “horror a dívidas” (p.464). Pedir abatimento, para ele, em 1973, convoca escusas altivas: “não é do meu feitio pechinchar, você bem sabe, mas se fosse possível fazer-me um descontozinho... Desculpe-me a franqueza. Mas só faça o desconto se isso não lhe aborrecer e não tiver um americano endinheirado que queira o exemplar [...]” (p.407).

A figura do livreiro associa-se intimamente à do bibliófilo, em uma frutífera simbiose social. Rubens Borba de Moraes cumprirá, em O bibliófilo aprendiz, o elogio ao negociante de livros, no capítulo “Livrarias e a arte de comprar”. O autor parte da premissa de que “o livreiro é um comerciante, a livraria é sua casa de negócio” (p.29). Reconhece nele a figura de um “conselheiro útil” (p.31), se bem informado. A cumplicidade os une:


[...] todo bibliófilo anda à procura de um ou outro livro a vida inteira. [...] o livreiro amigo, o seu livreiro, pode prestar-lhe um serviço inestimável. Todo bom livreiro conhece sua freguesia, sabe exatamente o que cada um coleciona e procura. Aparecendo um exemplar do livro desejado, ele terá prazer em lhe oferecer em primeiro lugar. (p.30)

Para Moraes, o “bom livreiro é aquele que sabe comprar e vender pelo justo preço. Ladrão é aquele que vende um livro mais caro do que realmente vale” (p.29). Em outro capítulo da obra, registra os inúteis embates com certos vendedores, quando estes, sabedores dos anseios de seus clientes, majoram o preço das obras. Não há saída, no caso, pois ele sabia que “acabava pagando mesmo, com medo de perder a ocasião” (p.60). Ao livreiro “desonesto”, restava o fim da “reputação” (p.33).

Nas cartas dirigidas a Tavares de Carvalho, Rubens Borba de Moraes reconhece que “os livreiros não são filantropos” e que “bons negócios são sempre recíprocos” (p.216). Para ele, “negócios são negócios e amigos à parte” (p.172). A crua formulação leva a reboque um pacto para que o fortalecimento dos laços de amizade não redunde em prejuízo à sua atividade de bibliófilo:


Sei que muitos dos livros que me cedeu teriam alcançado preço maior se os tivesse vendido a compradores ingleses e americanos. São atenções que não esqueço, creia. Mas se o amigo sente-se embaraçado em cobrar-me o lucro natural que qualquer amigo me cobraria então estou ameaçado de perder muito livro!! Santo Deus, não se sinta embaraçado porque quem sai perdendo sou eu!!” (p.218)

Em O bibliófilo aprendiz, Rubens Borba de Moraes caracteriza a atividade do colecionador de livros, ao assegurar que “a bibliofilia não é somente um passatempo de homens cultos”, sendo também “um negócio” e uma “obra de benemerência” (p.16). Enquanto “passatempo”, mobilizado pelo gosto da erudição, o amor aos livros deixa aflorar sentimentos lúdicos, na demanda firme de obras tão sonhadas. As listas de “desiderata” (p.50) nas missivas de Rubens estão sempre abertas, na multiplicação de desejos. “Para ser completamente feliz”, escreve Rubens a Tavares de Carvalho, gracejando, em 1970, “precisava de três coisas: uma casa de campo, um cão chow-chow e a edição de Marília da Imprensa Régia do Rio de Janeiro. A casa tenho, o chow-chow vem para cá em janeiro quando voltar das férias. [...] Realizada essa terceira parte do meu sonho morrerei realizado!” (p.367). Essa edição “raríssima”, de 1810, aliás, “mais difícil encontrá-la do que a própria primeira edição de 1792” (p.418), como se lê na Bibliographia brasiliana, e da qual se sabia da existência de apenas quatro exemplares remanescentes, ele, contudo, nunca pudera ter o gosto de ver em suas estantes prodigiosamente bem fornidas.

A correspondência trocada com um livreiro pode realçar traços psicológicos de um bibliófilo. Este ama o que tem, mas igualmente o que lhe falta. Regozija-se ao ver em seu acervo uma obra a que seus pares tanto aspiram: “estou contentíssimo com essas [...] aquisições [...]”, escreve Rubens Borba de Moraes, em 1964, ao amigo lusitano, “verifiquei que são rigorosamente inéditas e, esse fato, bastou-me para sentir o prazer egoísta dos bibliófilos quando possuem o que ninguém tem” (p.190). A posse dos livros “enche[-o] de alegria” (p.66). O escritor, alheio à religião, em suas cartas, com leveza brincalhona, traduz as ambições do colecionador emprestando termos condenáveis sob uma perspectiva cristã, associando-as aos pecados capitais da “gula” (p.77, 85, 200), da “vaidade” (p.117, 178, 305) e da “cobiça” (p.143). Lançando mão de imagem bíblica, mostra-se “aflito à espera desse maná que [...] cai do céu”, não “pelas mãos de Jeová”, mas das de seu providencial livreiro. Não resiste à “tentação” (p.207) em face de algumas ofertas, embora não fossem para ele prioritárias na ocasião. Imagina a proteção de um “anjo da guarda (que é bibliófilo)” (p.136) nas suas transações. Devota-se, como estudioso, ao estudo dos textos e da história deles; detém, ainda, o olhar lambareiro sobre a materialidade dos livros (o apuro estético das capas de época, a integridade dos papeis, os procedimentos tipográficos etc.). Em 1963, confessa: “tenho a paixão por encadernações [...] fiquei com água na boca com as de veludo que me promete. Tenho algumas” (p.123).

“Very excited” (p.216) em face de manuscritos e impressos antigos, Rubens Borba de Moraes vivencia a angústia da espera das encomendas, temendo por seus tesouros que atravessavam o Atlântico em tantas mãos indistintas. Recalcitra, diante de atrasos postais, acusando, recorrentemente, a precariedade dos correios brasileiros, agravante de seus sofrimentos. “Essas delongas”, explica em 1963, “põem-me louco de raiva e atrapalham-me a minha pacata vida de bibliófilo” (p.69). Perpassa, assim, pelas cartas, um sinistro leitmotiv, exibindo as vicissitudes na circulação epistolar do país. Desfia na conversa com o livreiro as mazelas desse órgão público: “o pior do mundo” (p.10), um pacote chegando a levar, em 1961, dois meses entre Lisboa e São Paulo, e sofrendo com a descuidada “brutalidade dos empregados” (p.12), correio “infame” (p.15), “pouco seguro” (p.23), irregular nas entregas domiciliares (p.49), “trapalhão” (p.135), “so expensive” na modalidade aérea (p.139), lento mesmo no uso de “registrados” (p.172), não confiável (p.152), enfim, um “inferno” (p.279). Promete ao destinatário, em alguma oportunidade, contar “as peripécias divertidas e dolorosas que [lhe] aconteceram com o correio no Brasil, livros considerados perdidos e achados milagrosamente” (p.215). Bem-humorado, Rubens pede ao livreiro, caso não encontrasse portador, que lhe enviasse livros pelo correio, não sem antes, em todo caso, rezar “três aves Marias” (p.264). Vê, em 1964, a imperícia dos correios como sendo “reflexo da situação política pavorosa” pela qual atravessava a sua terra (p.165).

As condições históricas, em particular, a desestabilização econômica do país, afiguram-se como sérios entraves na vida de um bibliófilo. O “passatempo” torna-se dificultoso ou mesmo inviável em tempos de crise financeira. Rubens e António testemunharam, na correspondência, extensa temporalidade da esfera política de suas pátrias. No Brasil, as cartas registram a renúncia de Jânio Quadros, as mudanças de governo, o golpe militar e a sua longa duração; em Portugal, referem-se à Revolução dos Cravos, em 1974, que colocava fim ao governo autoritário de Salazar. As posições tomadas pelos missivistas diante desses eventos desvelam ideologias de classe e os limites de compreensão da realidade social, espelhando acomodações conservadoras e reformulações críticas do pensamento (um tópico fecundo a ser extensamente explorado a partir desta correspondência). Em 1969, o paulista formula a sua queixa acerca da “interferência do governo entre dois amigos que vendem e compram livros” (p.337). As intromissões se cumprem em razão das instabilidades cambiais, ou por força do rígido controle de montantes enviados para o exterior, assim como pela “censura secreta” nos envelopes, sob o regime ditatorial, para fiscalizar “depósitos bancários no exterior” (p.268). Nos anos 1980, aquisições de livros são inviabilizadas. Explica-se Rubens em 1981, noticiando a “inflação de 100%” e a crise econômica geral: “eu, como sabe, nada compro. Os preços modernos não são reais para intelectuais aposentados” (p.476). Para ele, resta o bordão, com algumas variações, pontuando nas mensagens o desgosto de existir em um “país subdesenvolvido” (p.134, 169, 287, 315, 334, 397): “muito sofre o brasileiro!” (p.316) ou “muito sofre o bibliófilo brasileiro!” (p.243).

“Para que vale dinheiro senão para se gastar naquilo que dá prazer?” (p.330), indaga Rubens Borba de Moraes em carta de 1969. A bibliofilia, como ele mesmo estimava, é um “negócio”, mas, evidentemente, não apenas entre livreiro e colecionador, como também entre bibliófilos. Os livros raros trocam de endereço ao sabor dos (des)interesses dos colecionadores. O empenho e o prazer na aquisição de uma obra não significam o ponto final de sua deriva na rede do colecionismo. As “diretrizes” que orientam as aquisições de livros modificam-se. Rubens anuncia a Tavares de Carvalho, em 1966: “resolvi vender uma parte de minha biblioteca: os livros sobre o Brasil”. Ficaria apenas “com as obras de autores brasileiros, as primeiras impressões feitas no Brasil [...] e as encadernações brasonadas brasileiras” (p.247), devotando-a a aumentá-la. Esses livros seguiriam para as estantes privilegiadas de outro bibliófilo, José Mindlin, o que agradava muito a Rubens, ponderando que o amigo ficaria “com a melhor Brasiliana que existe no país e tem os capitais para completá-la” (p.250). Em 1974, vende ao mesmo bibliófilo outra porção de obras raras, primeiras edições de “autores brasileiros do século XIX”, 1.200 volumes, que dizia ter reunido “sem fervor” (p.416). Firma, na ocasião, seu desígnio de robustecer o conjunto de “livros de autores brasileiros do período colonial” e o das “primeiras impressões brasileiras, de 1808 a 1822” e “ ‘alguna cosita más’, quando valer a pena!!!” (p.416).

Após a morte de Rubens Borba de Moraes, também essa parcela de livros, 1.700, por disposição testamentária, seguiria para o acervo de Mindlin. Informa Briquet de Lemos: “Com esse legado e as duas coleções vendidas a José Mindlin [...] mais os livros reunidos por este, se formaria a ‘Biblioteca [Brasiliana Guita e] José Mindlin’” (Moraes, 2011, p.240), atualmente aberta à consulta pública no Espaço Brasiliana da Universidade de São Paulo. Nesse sentido, a matéria bibliográfica para o gozo individual de seus detentores (coleção pessoal), conquistada com tanto empenho, paixão e alto dispêndio, como evidenciam as Cartas de Rubens Borba de Moraes ao livreiro português António Tavares de Carvalho, transmuta-se em importante “obra de benemerência”, na realização da partilha democrática das raízes da cultura letrada brasileira (legado coletivo). Compreende-se bem, agora, o apelo de Rubens a Tavares de Carvalho, na carta de junho de 1962, a respeito de uma obra rara que muito desejava: “lembre-se por amor deste bibliógrafo e para o bem-estar das letras brasileiras” (p.61).

REFERÊNCIAS

MARTINS FILHO, P. (Org.) Cartas de Rubens Borba de Moraes ao livreiro português António Tavares de Carvalho. São Paulo: Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, 2018. 

MORAES, Rubens Borba de. Bibliografia brasileira do período colonial. São Paulo: IEB, 1969. 
_______. O bibliófilo aprendiz. 3.ed. Brasília: Briquet de Lemos/Casa da Palavra, 1998. 
___________. Bibliographia brasiliana: livros raros sobre o Brasil publicados desde 1504 até 1900 e obras de autores brasileiros do período colonial. Tradução Correia. [1ª edição brasileira, traduzida da 2.ed. ampl. e com base no exemplar do autor]. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2010.

___________. Testemunha ocular (recordações). Brasília: Briquet de Lemos, 2011.


@ - mamoraes@usp.brMarcos Antonio de Moraes

é professor do Instituto de Estudos Brasileiros Universidade de São Paulo. Bolsista de Produtividade em Pesquisa, CNPq.
Revista Estudos Avançados

Julião Machado e as revistas ilustradas no Brasil - 1895-1898


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Julião Machado: arte gráfica exalando a tinta da impressão


Ana Luiza MartinsI


IInstituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil.

Projeto gráfico inusitado. Edição primorosa. Conteúdo surpreendente.

Essas são as impressões iniciais de uma primeira visada do livro de Letícia Pedruzzi Fonseca (2016), Julião Machado e as revistas ilustradas no Brasil - 1895-1898, editado pela Blucher. Sensações que se confirmam após o atento folhear das páginas que - a exemplo da produção do biografado - conjuga imagem e texto em diálogo permanente, completando-se e enriquecendo a informação.

A proposta de projeto gráfico inovador expressa no livro não seria surpreendente vinda de uma professora e pesquisadora da área do designda Universidade Federal do Espírito Santo, que se doutorou sob orientação de Rafael Cardoso e cuja tese resultou na publicação aqui em análise. A estética da edição, que se vale das páginas criadas por Julião Machado (1863-1930) em várias de suas publicações, conduz o leitor de imediato à atmosfera de seu tempo. A ilustração, nesse caso, é utilizada como documento de um tempo específico, do fin de siècle no Rio de Janeiro, quando laivos de modernidade se impõem a serviço da jovem República, em várias dimensões. A começar pela modernidade técnica da impressão, do desenho gráfico, da introdução do art-nouveau configuradas e perceptíveis, justamente, no trabalho de Julião Machado, que além de caricaturista foi ilustrador e diretor artístico de diversos jornais, revistas e livros, assim como jornalista da imprensa escrita, autor de comédias dramáticas, e cenógrafo.

O encantamento proveniente do trato gráfico da obra se desdobra na leitura crítica de seu conteúdo, que revelou - para além do escrutínio da vasta produção do artista -, novas questões da história gráfica do país, preenchendo lacunas persistentes na historiografia da área. Com metodologia e análise técnica científicas da produção do caricaturista e ilustrador, a autora desvelou a obra daquele que sempre é apresentado como o “artista que mudou o padrão gráfico das revistas ilustradas brasileiras”. Contudo, desvencilhando-se desse quase clichê, que permanentemente rotula Julião Machado, a autora ultrapassa a visão dos estudiosos tradicionais da arte gráfica no país, que lhe conferem reiteradamente apenas a inserção entre a velha e a nova geração de ilustradores gráficos - o que já seria até relevante -, para situá-lo como protagonista e agente decisivo do trato da crônica de costumes e das novas técnicas empregadas, que inovavam, agilizavam e barateavam a produção. Ou, como lembra Rafael Cardoso no prefácio da obra: “O maior mérito do livro de Letícia Pedruzzi é justamente o de reconstituir essa trajetória e restaurar Julião Machado ao seu devido lugar na história. Não mais como elo apenas, mas como protagonista de uma narrativa ainda pouco lembrada e conhecida”.

Mas, vamos por partes.

Já no primeiro capítulo, a autora introduz o “Panorama da publicação periódica ilustrada brasileira no século XIX”, no qual apresenta balanço atualizado da produção dos ilustradores dos oitocentos. Analisa a rica bibliografia recente, que evoca a era de ouro da caricatura brasileira, uma das manifestações do impresso mais prolíficas do Império, seminais na crítica de costumes e especialmente na análise política. Caricatura que fez as vezes da palavra impressa no país de baixo letramento. De Henrique Fleuiss (1824-1882), passando por Angelo Agostini (1843-1910) e chegando a Raphael Bordalo Pinheiro (1846-1905) recupera suas respectivas produções e ingressa pelos meandros técnicos que pautaram a produção dos artistas do lápis. Após essa abordagem, que se traduz em trato didático sobre os suportes e técnicas do impresso - sobretudo para o leitor leigo no assunto - emerge o primeiro diferencial: a transformação da imagem esfumaçada de seus predecessores, para aquela do traço firme e limpo de Julião Machado, delimitando cenas e personagens. A distinção de técnicas é flagrada na apreensão plástica das páginas, perceptível a olho nu, mesmo por olhares não treinados na análise de imagens. Mas aos poucos vão surgindo as novas revelações, que decodificam as técnicas subjacentes ao desenho limpo de Machado, que conjugam texto e imagem e - mais surpreendente - impressos por uma só máquina, procedimento incomum para a época.

A compreensão da bagagem do artista e as condições de sua atuação inédita são dadas no capítulo seguinte, “Julião Machado e a mudança do padrão gráfico das revistas ilustradas brasileiras”. Nesse, dedica-se, inicialmente, ao trato plural de sua biografia, reveladora dos diferenciais de formação em relação aos contemporâneos. Natural de São Paulo de Luanda, capital de Angola, era filho de abastado comerciante, o que lhe propiciou estudos em Lisboa e Coimbra e o convívio com a boêmia lisboeta, do “Grupo do Leão de Ouro”, que reunia nomes como Columbano, Raphael Bordalo Pinheiro, Manuel Gustavo, Antônio Ramalho, João Vaz, entre outros. Dessa convivência privilegiada nascem os convites para ingresso na imprensa local. Ciente de sua vocação artística, vai a Paris e participa do ateliê de Fernand Cormon, frequentado na década de 1880 por Toulouse-Lautrec e Van Gogh. Não por acaso, Pedruzzi trata também das eventuais convergências plásticas entre Julião Machado e Lautrec.

Aos poucos a autora reconstitui o artista revolucionário, as práticas que introduziu na impressão do periodismo da época, balizando o grande ciclo das revistas litografadas na última década do século XIX, ao inaugurar aquele do desenho zincografado nas revistas A Cigarra (1895-1896) e A Bruxa (1896-1897), criadas pela dupla Julião Machado (1863-1930) e Olavo Bilac (1865-1818). Na primeira, contavam com os capitais do banqueiro Manoel Ribeiro Junior e, na segunda, com o aporte financeiro do português João de Souza Lage, futuro proprietário do jornal O Paiz, do Rio de Janeiro.

A análise gráfica e a trajetória de ambas as publicações são tratadas em capítulos próprios, que também vão além dos tradicionais estudos que fartamente têm merecido as duas revistas de sucesso a seu tempo. Para isso se utiliza da efervescência recente de pesquisas sobre a imprensa periódica, que produziram novas metodologias de abordagem, sistematizaram informações e conferiram as potencialidades desse suporte documental. A começar pela análise estrutural dos periódicos, fornecendo os dados colhidos na pesquisa física do objeto, como formato, tipo de papel, número de páginas, periodicidade, preços, endereços, proprietários, colaboradores, gráficas, diagramação, família tipográfica utilizada, estilos de títulos e das ilustrações. Detém-se em subcapítulos que tratam especificamente da Capa, do Miolo, das Ilustrações Especiais e das Vinhetas.

Sem descuidar de seu personagem principal - que se conjuga na figura de Julião Machado, mas também nas revistas A Cigarra e A Bruxa -, é analisada a participação de um jovem Bilac, então de apenas 29 anos, já afamado, mas distante da consagração posterior como poeta parnasiano e militante ligado à causa da defesa nacional e do serviço militar obrigatório. É um Bilac iniciante, que se vale da crônica sucinta para a crítica política elegante, enquanto Machado o espelha no mesmo diapasão por meio do desenho. A sátira e o humor confirmavam a ligação afinada, traduzida na palavra e no desenho das respectivas habilidades. Bilac e Machado, ao responderem respectivamente pela direção literária e artística das revistas mencionadas, acabaram por “cronicar” o Rio de Janeiro, pelo texto e pelo traço, reproduzindo as “coisas miúdas”, os fatos da hora, registrados no calor dos acontecimentos.

Contudo, é a análise pormenorizada que revela a descoberta de recursos técnicos para otimização do impresso. Recursos que ressaltam não só na análise especifica de Julião Machado e suas inovações, mas ao longo dos demais capítulos, ao decodificar as revistas A Cigarra, A Bruxa, e mesmo a publicação da revista O Mercúrio, em que o artista teve participação no ano 1898. Em relação às duas revistas iniciais, fica comprovado que em A Cigarra deu-se a experiência da transição, e em A Bruxa, o resultado dos experimentos. Já em O Mercúrio, de 1898, atesta-se a adesão das técnicas introduzidas por Machado e a emergência, a partir dessa publicação, da nova geração de caricaturistas que atuariam nos primórdios do século XX, sob inegável influência de Julião Machado: Raul (Raul Pederneiras), K. Lixto (Calixto Cordeiro) e Bambino.

O “pulo de gato” da pesquisa resulta justamente da análise laboratorial e científica da produção do artista, recurso só possível para quem domina as técnicas do impresso e dispõe de aparelhamento avançado para análises microscópicas que decodificam e desvendam a produção das “imagens híbridas”, por ele inauguradas. Logo, seu trabalho introduz nova metodologia para o trato da arte gráfica e do design, trazendo à luz suas várias camadas constitutivas.

Com a preocupação da análise vertical do objeto, a autora atesta que o desenho de Machado se firma no traço a bico de pena, definido pela linha de contorno sempre impressa em preto. Nas revistas a duas cores emprega o pincel, o Ben-Day e o espargido. Com o pincel, preenchia áreas de cor chapada e traços soltos; com o Ben-Day - processo gráfico similar ao pontilhismo dos impressionistas, assim denominado em alusão ao nome de seu criador, o ilustrador e impressor norte americano Benjamin Henry Day, Jr. (1838-1916) -, preenchia e dava acabamento às ilustrações nos limites das áreas definidas, valendo-se de texturas reticuladas e de listras; com a técnica do espargido utilizava os respingos, por vezes usado como textura de fundo das imagens ou como preenchimento das figuras definidas pelo bico de pena.



Acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa

A Bruxa, n.12, 1896, p.8. 



E mais: foi identificada a técnica de simulação da xilogravura, procedendo à raspagem da área entintada da superfície litográfica, onde se trabalha o branco.

Todos esses procedimentos técnicos, que superavam o monocromatismo vigente, eram por vezes utilizados num só desenho, resultando seu diferencial de hibridização por sobreposição das várias técnicas, trato visual único para a época, que o singularizava entre seus pares, além de inaugurar a zincografia e a fotogravura, em experiências isoladas.

Vale ressaltar que a autora dedica vários parágrafos a analisar e demonstrar a proximidade dos resultados obtidos pelo autor em face dos propalados cartazes fin-de-siècle de Mucha (1860-1939) e Toulouse-Lautrec (1864-1901), o que comprova iconograficamente ao reproduzir, em detalhes, os desenhos desses artistas coevos. O que não seria surpreendente em artista que vivenciara in locu a produção francesa e que estava inserido na atmosfera artística renovadora de sua época, por meio da efervescente circulação transnacional de ideias e imagens do período.

Mas o que ressalta e fica patenteada de forma didática, ao longo de todo o livro, é a nova visualidade introduzida por Julião Machado, com seu método particular de construção das imagens, adotando o traço firme do desenho, os vários tipos de preenchimento e a produção geral do impresso com apenas uma tecnologia. E essa comprovação só foi possível por meio do exame microscópico de superfícies impressas, conforme utilizado por Pedruzzi.

Muito já se disse sobre as inovações de Julião Machado. Mas nessa publicação se vai além, pois não só desvenda as técnicas e justifica a nova visualidade gráfica por ele introduzida - proposta fundante do trabalho -, mas percorre com olhar problematizado os caminhos da história gráfica, da imprensa brasileira, da influência francesa na perspectiva da circularidade transnacional de ideias e modelos, da revolução técnica a que se assistia em âmbitos vários, da emergência da modernidade nas artes plásticas, das mediações propiciadas pela revista no universo da leitura.

Se reparo houver à edição, inevitável em trabalhos de tantos experimentos, seria ao corpo de letra das legendas e às cores utilizadas, que dificultam sua leitura, contrastando com a limpeza do texto escorreito, claro e de narrativa elucidativa. Detalhe de somenos importância em obra que guarda harmonia plástica e textual.

Por fim, cabe sublinhar que a abrangência da análise deriva, em boa parte, do uso competente da revista como fonte, metodologia que se firmou internacionalmente e que na atualidade acadêmica nacional encontra grande receptividade. Embora os propósitos de Letícia Pedruzzi fossem a obra e o lugar de Julião Machado na histórica gráfica do país, ao utilizar-se do suporte revista como documento e explorá-la em suas tantas dimensões, ultrapassou seus propósitos explícitos e iluminou generosamente etapa decisiva da história cultural do país.

REFERÊNCIA

FONSECA, L. P. Uma revolução gráfica: Julião Machado e as revistas ilustradas no Brasil, 1895-1898. São Paulo, Blucher, 2016.

Recebido: 16 de Setembro de 2018; Aceito: 24 de Outubro de 2018


@ - analuizac@uol.com.brAna Luiza Martins

é doutora em história social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Revista  Estudos Avançados