Alpargatas si, libros no
13/Jun/98
Ana Maria Stuart
Em tempos de polêmica sobre o governo Menem, provocada pela distância que separa seus atos das políticas e dos discursos próprios da experiência predominante na cena argentina desde 1945, é importante recolocar a discussão do peronismo "clássico" para ajudar a desvendar as tramas dessa relação.
A escolha do título revela com precisão o objeto e a opção metodológica do autor: estudar o peronismo no plano da construção das idéias e dos discursos, partindo das polarizações preexistentes no relato histórico da formação do estado nacional.
Considerando-se que a ação política é ininteligível fora da ordem simbólica que a funda e do universo imaginário que gera nas relações sociais, a escolha dos relatos dessa análise antropológica do peronismo é polêmica. Mas Neiburg esclarece seus objetivos: "Esboçar alguns aspectos da história social e cultural dessas construções, reconstituindo os itinerários de algumas figuras sociais e instituições, estudando a gênese de alguns temas, argumentos e estilos". A opção particular do autor, portanto, não significa perda de rigor intelectual; estamos diante de uma obra que é produto de intensa e original pesquisa, enquadrada no campo dos "estudos de antropologia social e cultural", como esclarece o seu subtítulo.
Entretanto, é possível observar nas escolhas dessas "figuras sociais e instituições" a preferência por relatos referenciados numa experiência externa ao peronismo. A própria escolha de Arturo Jauretche (fundador de um movimento dissidente do Partido Radical em 1935) e de Hernández Arreghi (professor universitário marxista-peronista, também originário do radicalismo), como expoentes do "intelectualismo populista", reflete essa tendência porque, como bem coloca Neiburg, ambos tiveram posição periférica na institucionalidade peronista e uma relação distante de Perón, quer no governo, quer na resistência após 1955.
No campo da teoria social dos anos 90, há uma retomada do discurso teórico "construtivista", que outorga um papel central às idéias como "construtoras" do real. Neiburg adere a essa visão ao reconhecer a importância do legado de Wittgenstein e Bourdieu na derrubada das oposições entre sujeito e objeto e entre "representação da realidade" e "realidade".
Com erudição, o autor penetra no universo conceitual a partir do qual costura sua exposição. Nos dois primeiros capítulos, "Repertórios" e "Argumentos de Autoridade", apresenta os relatos sobre o peronismo após o golpe que derrubou o governo de Perón em 1955. "A generalização do debate transformou cada formulação sobre o peronismo num repertório mais ou menos explícito de diversas formulações possíveis, enquanto conferia uma enorme legitimidade à própria problemática de referência: o somatório e a cumplicidade das diferentes 'autoridades' que falavam sobre o peronismo acabaram sancionando sua própria existência", explica o autor.
Os capítulos centrais dedicados ao "Peronismo e Mitologias Nacionais" e "Elites Sociais e Elites Intelectuais", permitem entender o caminho percorrido pelo autor para construir seu objeto. Em nota de rodapé, explica que a relação entre os elementos "Povo", "Pátria" e "Perón" "era compartilhada por todos os que, peronistas ou não, tomaram o peronismo como objeto de suas interpretações, transformando os conteúdos de cada um desses termos em campo de seus combates simbólicos, mas legitimando a relação entre eles e contribuindo, dessa maneira, para a invenção do próprio peronismo".
Os capítulos finais, "Gino Germani e a Sociologia Científica" e "Desperonização e Inovação na Universidade", constituem o relato do extraordinário avanço da sociologia como disciplina universitária na Argentina, processo interrompido pela emergência dos golpes militares.
Observa-se, contudo, a ausência da questão democrática como explicativa da relação entre as elites, as maiorias (as massas, o povo) e os intelectuais na Argentina. A oposição entre a elite acadêmica e o peronismo, expressa no slogan "alpargatas si, libros no", refletia opções políticas concretas tomadas durante a eleição de 1946. Se eleições são a base para o exercício da soberania popular e condição "sine qua non" da democracia, não há como ignorar a legitimidade do governo de Perón nessa época.
Mas a elite acadêmica, em geral, questionava a representação popular e, na melhor tradição parettiana, reconhecia as dificuldades do "ideal" democrático para realizar-se no plano da realidade. Como o autor esclarece: "Nos termos da sociologia científica, o problema central da Argentina era a 'integração' da sociedade. O peronismo tinha sido uma forma perversa de solucionar esse problema e a desperonização significava a busca de alternativas melhores".
A esperança de Neiburg, expressa nas "Reflexões Finais", de ter contribuído "para a compreensão das bases sociais e culturais da violência e da intolerância na Argentina", justificaria a inclusão de discursos peronistas identificados com a experiência de democratização do espaço público e de ampliação dos direitos da cidadania.
Ana Maria Stuart é pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP.
Copyright © 1994-1999 Empresa Folha da Manhã S/A
13/Jun/98
Ana Maria Stuart
Em tempos de polêmica sobre o governo Menem, provocada pela distância que separa seus atos das políticas e dos discursos próprios da experiência predominante na cena argentina desde 1945, é importante recolocar a discussão do peronismo "clássico" para ajudar a desvendar as tramas dessa relação.
A escolha do título revela com precisão o objeto e a opção metodológica do autor: estudar o peronismo no plano da construção das idéias e dos discursos, partindo das polarizações preexistentes no relato histórico da formação do estado nacional.
Considerando-se que a ação política é ininteligível fora da ordem simbólica que a funda e do universo imaginário que gera nas relações sociais, a escolha dos relatos dessa análise antropológica do peronismo é polêmica. Mas Neiburg esclarece seus objetivos: "Esboçar alguns aspectos da história social e cultural dessas construções, reconstituindo os itinerários de algumas figuras sociais e instituições, estudando a gênese de alguns temas, argumentos e estilos". A opção particular do autor, portanto, não significa perda de rigor intelectual; estamos diante de uma obra que é produto de intensa e original pesquisa, enquadrada no campo dos "estudos de antropologia social e cultural", como esclarece o seu subtítulo.
Entretanto, é possível observar nas escolhas dessas "figuras sociais e instituições" a preferência por relatos referenciados numa experiência externa ao peronismo. A própria escolha de Arturo Jauretche (fundador de um movimento dissidente do Partido Radical em 1935) e de Hernández Arreghi (professor universitário marxista-peronista, também originário do radicalismo), como expoentes do "intelectualismo populista", reflete essa tendência porque, como bem coloca Neiburg, ambos tiveram posição periférica na institucionalidade peronista e uma relação distante de Perón, quer no governo, quer na resistência após 1955.
No campo da teoria social dos anos 90, há uma retomada do discurso teórico "construtivista", que outorga um papel central às idéias como "construtoras" do real. Neiburg adere a essa visão ao reconhecer a importância do legado de Wittgenstein e Bourdieu na derrubada das oposições entre sujeito e objeto e entre "representação da realidade" e "realidade".
Com erudição, o autor penetra no universo conceitual a partir do qual costura sua exposição. Nos dois primeiros capítulos, "Repertórios" e "Argumentos de Autoridade", apresenta os relatos sobre o peronismo após o golpe que derrubou o governo de Perón em 1955. "A generalização do debate transformou cada formulação sobre o peronismo num repertório mais ou menos explícito de diversas formulações possíveis, enquanto conferia uma enorme legitimidade à própria problemática de referência: o somatório e a cumplicidade das diferentes 'autoridades' que falavam sobre o peronismo acabaram sancionando sua própria existência", explica o autor.
Os capítulos centrais dedicados ao "Peronismo e Mitologias Nacionais" e "Elites Sociais e Elites Intelectuais", permitem entender o caminho percorrido pelo autor para construir seu objeto. Em nota de rodapé, explica que a relação entre os elementos "Povo", "Pátria" e "Perón" "era compartilhada por todos os que, peronistas ou não, tomaram o peronismo como objeto de suas interpretações, transformando os conteúdos de cada um desses termos em campo de seus combates simbólicos, mas legitimando a relação entre eles e contribuindo, dessa maneira, para a invenção do próprio peronismo".
Os capítulos finais, "Gino Germani e a Sociologia Científica" e "Desperonização e Inovação na Universidade", constituem o relato do extraordinário avanço da sociologia como disciplina universitária na Argentina, processo interrompido pela emergência dos golpes militares.
Observa-se, contudo, a ausência da questão democrática como explicativa da relação entre as elites, as maiorias (as massas, o povo) e os intelectuais na Argentina. A oposição entre a elite acadêmica e o peronismo, expressa no slogan "alpargatas si, libros no", refletia opções políticas concretas tomadas durante a eleição de 1946. Se eleições são a base para o exercício da soberania popular e condição "sine qua non" da democracia, não há como ignorar a legitimidade do governo de Perón nessa época.
Mas a elite acadêmica, em geral, questionava a representação popular e, na melhor tradição parettiana, reconhecia as dificuldades do "ideal" democrático para realizar-se no plano da realidade. Como o autor esclarece: "Nos termos da sociologia científica, o problema central da Argentina era a 'integração' da sociedade. O peronismo tinha sido uma forma perversa de solucionar esse problema e a desperonização significava a busca de alternativas melhores".
A esperança de Neiburg, expressa nas "Reflexões Finais", de ter contribuído "para a compreensão das bases sociais e culturais da violência e da intolerância na Argentina", justificaria a inclusão de discursos peronistas identificados com a experiência de democratização do espaço público e de ampliação dos direitos da cidadania.
Ana Maria Stuart é pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP.
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