segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Austeridade: a história de uma ideia perigosa

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“AUSTERIDADE” PERMANENTE COMO GESTÃO DO CONFLITO SOCIODISTRIBUTIVO

PERMANENT “AUSTERITY” AS MANAGEMENT OF THE SOCIO-DISTRIBUTIVE CONFLICT

Edemilson Paraná1
1(pseudônimo de Edemilson Cruz Santana Junior) é doutorando em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), com período sanduíche na Soas – University of London. E-mail: edemilsonparana@gmail.com.

BLYTH, Mark. Austeridade: a história de uma ideia perigosa. Freitas e Silva, José Antônio. São Paulo: Autonomia Literária, 2008. 375p.

BLYTH, Mark. (2017), Austeridade: a história de uma ideia perigosa . Trad. José Antônio Freitas e Silva. São Paulo, Autonomia Literária. 375 pp.


[...] as ideias de economistas e de filósofos políticos, tanto quando têm razão como quando não a têm, são mais poderosas do que normalmente se pensa. Na verdade, o mundo é governado por pouco mais. Homens práticos, que se creem bastante isentos de quaisquer influências intelectuais, são normalmente escravos de algum economista defunto.

John Maynard Keynes

Depois de enorme sucesso de público e crítica, chega ao Brasil a tradução de Austeridade: a história de uma ideia perigosa , em momento que não poderia ser mais oportuno. Cientista político escocês e professor de economia política internacional, na Universidade de Brown, Mark Blyth enfrenta com o bom humor de um enérgico polemista, mas sem perder em profundidade, um assunto extremamente sério: as políticas de austeridade que se espalharam pelo mundo, no contexto do pós-crise de 2008.

Apresentando um instigante diálogo interdisciplinar, o livro está construído sob as fundações de um bem-sucedido casamento entre a história e a crítica das ideias econômicas, que desaguam em um potente ensaio em torno da (não) eficácia da aplicação dessas ideias – mesmo quando testadas de várias maneiras, em distintos lugares, contextos e épocas. A ideia em questão é a “austeridade”, ou seja,


[…] uma forma de deflação voluntária em que a economia se ajusta através da redução de salários, preços e despesa pública para restabelecer a competitividade, que (supostamente) se consegue melhor cortando o orçamento do Estado, as dívidas e os déficits. Fazê-lo, acham os seus defensores, inspirará a “confiança empresarial” uma vez que o governo não estará “esvaziando” o mercado de investimento ao sugar todo o capital disponível através da emissão de dívida, nem aumentando a já “demasiado grande” dívida da nação (Blyth, 2017, p. 22).

Seguindo John Maynard Keynes (1964) , Blyth está empenhado em demonstrar como e por que os nossos “homens práticos” de hoje “são escravos de algum economista defunto” (1996, p. 349). Quem são esses homens e esses defuntos e quais são essas ideias é de que trata a obra.

O livro não é dirigido apenas, nem centralmente, a economistas – ainda que, em face da corrente de pensamento tornada dominante na Economia, a leitura da obra possa servir como uma verdadeira lufada de ar fresco no ambiente intelectualmente sufocante da disciplina –, mas é voltado, sobretudo, ao público diretamente afetado pelas ideias econômicas, como diria Joan Robinson, para que não se deixe enganar pelos economistas. Estão equivocados, então, os que pensam ser a austeridade econômica um problema restrito a técnicos e especialistas. Fosse apenas um atentado à inteligência, essa “ideia zumbi” ( Quiggin, 2010 ) – morta diante dos fatos, mas tornada viva pelos perniciosos interesses políticos que a patrocinam – já seria, em si, problemática. No entanto, o que a torna perigosa, conforme o livro sustenta, são os estragos produzidos nas economias e, junto a esses, a erosão da coesão social, os danos traumáticos e os sofrimentos, em suma, a que têm sido submetidas as maiorias sociais em todo o mundo. Por onde passa, a política da austeridade deixa um enorme rastro de destruição. Mark Blyth, como poucos, persegue esse rastro para nos demonstrar, a partir de suas origens e causas, porque a austeridade é, em primeiro lugar e acima de tudo, um problema sociopolítico de distribuição e não apenas um problema estritamente econômico de contabilidade social.

A didática e divertida (mas não por isso menos rigorosa) cruzada do autor contra as argumentações anticientíficas acaba municiando a todos nós, leigos ou estudiosos, de instrumentos para realizarmos por nossa conta o “teste do olfato”, nas palavras do próprio autor, frente à retórica apodrecida da austeridade nos mais diversos ambientes de produção e circulação de ideias. O mérito de Blyth é, por isso, notável. Ao final de sua “arqueologia”, além de entendermos as razões pelas quais as finanças do Estado são bastante diferentes das familiares e empresariais, saímos aptos a detectar e desmontar as muitas premissas irreais e as conclusões empiricamente falsas que sustentam o débil discurso mainstream em defesa das políticas de austeridade.

O livro está dividido em três partes. Na primeira seção, o autor aborda as origens e as consequências da atual crise econômica global. Os capítulos dessa seção tratam centralmente das experiências dos Estados Unidos e da Europa, além de conter uma explicação de como se chegou à confusão atual, dando espaço ainda para os elementos financeiros e bancários mais complexos que resultaram na “tempestade perfeita” vivenciada por essas economias.

Blyth argumenta que, desde a crise, assistimos à maior operação de “propaganda enganosa” da história moderna, na medida em que as elites econômicas e políticas têm vendido aos cidadãos a ideia de que se trata de uma crise de dívida soberana, quando, em verdade, trata-se inicialmente de uma crise dos bancos privados. Especialmente no caso europeu, explica o autor, uma história inventada, de cunho moral, tem sido martelada para renomear a crise bancária da Zona Euro como uma crise de dívidas soberanas. Com efeito, os governos “gastadores” de países da periferia são culpados, a despeito do fato de nenhum deles, com a exceção da Grécia, ter sustentado grandes déficits orçamentários antes da crise – a Irlanda e a Espanha, por exemplo, contabilizavam superávits 1 .

De acordo com a explicação do autor para a crise, as inovações financeiras combinadas com um conjunto de ideias a respeito do funcionamento das economias e, em particular, da avaliação do risco, contribuíram para o acúmulo insustentável de problemas no sistema financeiro global, que acabaram por explodir em 2008. Essas ideias facilitaram ainda a transferência da crise dos Estados Unidos para a Europa. Seguindo, nesse aspecto, inúmeras outras explicações da crise recente, Blyth afasta a noção tornada popular, segundo a qual a crise é de alguma forma produto da falência moral de indivíduos e grupos particulares. Ao contrário, trata-se de uma grave insuficiência do setor privado como um todo. Que isso venha sendo arcado centralmente pelo orçamento público apenas pode ser explicado pelo conjunto contraditório de ideias atualmente dominantes sobre a intervenção estatal, a “austeridade”.

Na segunda parte da obra, Blyth passa a examinar a “história intelectual” da austeridade. Nesse, que certamente é o ponto alto do livro, o autor nos mostra como certos pensadores, sejam eles, John Locke, David Hume, Adam Smith e David Ricardo, criaram uma espécie de sistema de pensamento em que os governos não devem fazer muito mais do que proteger a propriedade privada e, ademais, serem constrangidos a não acumular dívida pública. Apesar dessas primeiras formulações serem ainda vagas, o argumento específico em torno da austeridade emerge, finalmente, na década de 1920, quando o Estado moderno passa a ser, de fato, uma questão saliente do ponto de vista econômico. Segundo o autor, isso ocorre pelas mãos do “liquidacionismo” estadunidense e da “visão do tesouro”, na Inglaterra.

Essa base inicial de argumentos em defesa da austeridade foi praticamente desacreditada pela Grande Depressão, na década de 1930. No entanto, conforme Blyth documenta com maestria, seus remanescentes e herdeiros – o “ordoliberalismo”, na Alemanha, e a “Escola Austríaca”, nos Estados Unidos – acabaram voltando ao mainstream intelectual novamente na década de 1980, com a ascensão do neoliberalismo.

A versão corrente do argumento em defesa da austeridade, nos apresenta Blyth, foi criada por um grupo de economistas italianos da Universidade de Bocconi 2 , em Milão. O autor examina criticamente uma série de modelos econômicos desenvolvidos por tais economistas 3 , nos quais sustentam que as dívidas governamentais são produtos praticamente inevitáveis da democracia, e que a melhor forma de combatê-las é mediante o corte das despesas, ao invés do aumento de impostos. Tais economistas foram responsáveis pelo termo orwelliano “contração fiscal expansionista”, sintetizando o argumento segundo o qual cortar as despesas pode, sim, levar ao crescimento – inclusive, em meio a uma desaceleração econômica – de modo diverso ao que o bom-senso da disciplina costumava sustentar. Essa inusitada “lógica” é habilmente desmontada no livro, em cada um dos seus aspectos e supostas evidências.

A jornada do autor pelos caminhos e descaminhos dessa ideia perigosa termina com um capítulo em torno da implementação da austeridade. Nessa “história natural” da ideia, Blyth examina cuidadosamente dezenas de experiências de implementação da tal política econômica, ao longo do século XX. Trata-se de um relato devastador sobre cada uma das tentativas de colocar a ideia de austeridade em prática, da luta dos governos com padrão-ouro nas décadas de 1920 e 1930, até sobre os problemas e as dificuldades dos casos mais recentes de “sucessos” de austeridade, como a Suécia e a Irlanda. Essas tentativas de implementação parecem, de fato, nunca funcionar e acabam por levar, na maioria das vezes, a consequências trágicas.

Tendo mostrado que a austeridade nunca funcionou na prática, Blyth conclui a obra propondo que exploremos uma nova estratégia de enfrentamento da crise, baseada em algumas políticas consideradas tabus nos últimos anos, tais como: a “repressão financeira”, a limitação dos movimentos transfronteiriços de capitais, uma nova forma de administração das taxas de juros e o aumento de impostos para a faixa superior da distribuição de renda. Sugere ainda – de modo polêmico, talvez, contraditório, e com uma fundamentação que deixa a desejar, é preciso dizer – que o governo dos Estados Unidos deveria ter deixado seus bancos irem à falência, como se fez na Islândia, em vez de resgatá-los.

Tudo somado, seguindo a vastidão de dados apresentados no livro, fica o balanço de que a austeridade, mesmo ignorando deliberadamente as incontornáveis necessidades da vida social e política, é contraproducente inclusive em alcançar o objetivo restrito a que supostamente se presta: o de sanar as finanças públicas.

O raciocínio aqui é simples e bastante conhecido: (1) se para todo comprador há um vendedor, e para todo poupador há um devedor; (2) se, nos desdobramentos de uma crise, cada indivíduo economiza, buscando melhorar a sua própria situação, como resultado de (1) e (2) a situação coletiva de todos deteriora. Dito de outro modo, tendo como premissa que o gasto de um agente é igual à renda de outro, se todos os agentes resolvem simultaneamente cortar os gastos, o único resultado lógico é a contração da renda geral.

Longe de resolver o problema, portanto, a política de austeridade – os cortes na previdência e na assistência social, nos direitos trabalhistas e no alcance dos bens públicos – apenas faz aprofundar essa situação, mantendo o desemprego e as dívidas em alta, o salário (indiretamente, pela pressão do desemprego sobre a capacidade de negociação de quem ainda está empregado) e a capacidade de con- sumo em baixa, e, com isso, a atividade econômica deprimida. Tal quadro pode levar a uma piora da situação fiscal do Estado, ao diminuir ainda mais a arrecadação de impostos. Quando o corte dos gastos consegue ser maior do que a queda na arrecadação, produzindo o esperado superávit, isso se dá às custas da poupança do setor privado, que decai na exata medida em que aumenta a poupança pública. Desse modo, com a queda vertiginosa do Produto Interno Bruto (PIB), cresce a razão dívida/PIB, uma vez que a poupança pública não é suficiente para estabilizar essa razão.

Eis o grande paradoxo das políticas de austeridade: ao prometer equilibrar as contas do Estado, elas aprofundam a sua degradação, produzindo um resultado ainda pior do que o cenário fiscal que se dispuseram a melhorar. Portanto, nesses casos, a despeito das projeções entusiasmadas de economistas “oficiosos” em governos e em órgãos de imprensa, não chega a surpreender que a atividade econômica continue a oferecer resultados diminutos e decadentes (se o Brasil, nos anos de 2015 a 2017, serve como exemplo, os dados a esse respeito são eloquentes).

Diz-se, em geral, que os cortes se fazem necessários, ademais, como forma de recuperar a “confiança do investidor”, o que traria de volta os investimentos e, assim, o tão esperado crescimento econômico. Esquece-se, no entanto, que capitalistas não tomam as suas decisões sobre investimentos baseados unicamente em certo subjetivismo obscuro, de ordem político-moral. As decisões de tais agentes são tomadas, antes de tudo, a partir dos sinais que eles recebem das próprias vendas, da taxa e do volume de sua lucratividade imediatamente anterior vis a vis àquela projetada para a rodada seguinte (algo também relacionado, sabemos, aos movimentos dos gastos públicos). Esse lucro (produtivo) continuará tão pressionado quanto mais deprimida estiver a demanda por seus produtos – realidade aqui aprofundada, adicionalmente, pelas medidas de austeridade, que ampliam o desemprego e o desamparo social. Dessa forma, e independente do tamanho dos cortes na despesa pública, ou dos “sinais” que o governo mande ao mercado a respeito de sua espartana disciplina orçamentária, quanto mais incerto os agentes estiverem a respeito do futuro dessa economia em recessão, menos se sentirão “confiantes” para investir e gastar, e mais tenderão a reter os seus recursos por tempo indeterminado. Isso constitui uma espécie de círculo vicioso, do qual se espera apenas a piora da situação.

De outro modo, ainda que as expectativas empresariais venham a reagir positivamente às políticas de austeridade, dado que as empresas notam, neste quadro, o aumento dos próprios estoques e da capacidade produtiva ociosa, o investimento privado se mantém em baixa – tornando irrelevante, em última instância, os efeitos de tais expectativas subjetivas.

No rescaldo dessa eterna espera pela “fada da confiança” ( Krugman, 2012 ), segue, lamentavelmente, um trágico pacote de consequências não pretendidas (ou pretendidas apenas por alguns) da ação: além da possível deterioração das contas públicas, o previsível aumento da pobreza e da desigualdade, da insegurança e da revolta social. Por isso, demonstra o livro, essa agenda fracassou retumbantemente onde quer que tenha sido aplicada, agravando ainda mais os problemas que buscava resolver. Lamentavelmente, esta é a história que vemos se repetir no Brasil atual.

Entretanto, por que os governos, os economistas e os gestores seguem sacrificando as fartas evidências empíricas da realidade no altar das crenças ideológicas? Por que essa ideia perigosa insiste em pairar e produzir brutais consequências sobre nós? Há, pelo menos, duas razões, afirma o autor: uma é de ordem psicológica; outra, de ordem política.

A primeira razão pode ser rapidamente explicada. De amplo conhecimento, trata-se de um lugar-comum tornado corrente – de manchetes e destaques de jornais a comentaristas de noticiários; de discursos políticos a acalorados debates em mesas de família: toda gastança é um pecado; após a festa exagerada, vem a ressaca; gastar é ruim, poupar é bom (o autor nos lembra, por exemplo, que as palavras “dívida” e “culpa” são homônimos na língua alemã). É que, como nos mostra Blyth, a austeridade, como conjunto frouxo de ideias, é mais uma “sensibilidade” do que um pacote robusto e coerente de políticas.

Tal ética da fruição virtuosa das dádivas se desdobra na intuitiva conclusão, segundo a qual as finanças governamentais equivalem às finanças domésticas, e que dívida pública equivale à dívida privada. Quando as famílias acumulam dívidas que não podem mais sustentar, devem reduzi-las a um nível sustentável – manda o bom-senso; os governos devem fazer o mesmo. Ignora-se neste raciocínio que, para além de qualquer moralidade individual, a Economia trata, antes de tudo, de dimensões sistêmicas, agregados e, no limite, do que funciona ou não em face de determinados objetivos sociais. Não consta, por exemplo, que as famílias emitam a moeda em que pagam as suas dívidas; que elas regulem a intensidade do crédito emitido e a sua taxa de juros; que instituam e arrecadem, por elas mesmas, impostos de diferentes fontes; que elas realizem grandes obras nacionais ou ofereçam serviços essenciais a uma população ampla e diversa. Vale, aqui, novamente nos lembrarmos da chamada falácia da composição: o todo não é a mera soma quantitativa ou a junção das partes individuais, mas algo qualitativa e constitutivamente distinto dessas.

No entanto, longe de ser apenas um problema psicológico, fruto da confusão de uma moralidade mal ajustada, o que sustenta centralmente o impulso de austeridade é o bom e velho interesse econômico e político. Ao fim e ao cabo, a austeridade é uma forma de política voltada centralmente para alguns poucos setores de interesse econômico, especialmente o financeiro, em detrimento do bem-estar coletivo.

Isso ocorre, em primeiro lugar, porque a manutenção do desemprego em patamar expressivo possibilita a gestão do chamado “exército industrial de reserva” ( Marx, 2013 , p. 704), favorável ao capital e desfavorável ao trabalho, pendendo a balança em favor do primeiro. Em segundo lugar, porque a negação de estímulos fiscais e monetários é uma forma de dar prioridade aos credores, geralmente grandes detentores de riqueza, em detrimento de trabalhadores e maiorias sociais, com menor disponibilidade de renda para poupar. A inflação e as baixas taxas de juros são ruins para os credores, mesmo quando promovem a criação de empregos e o aquecimento da atividade econômica, ao passo que reduzir os déficits governamentais, ainda que aprofunde uma depressão em face do desemprego maciço, garante aos detentores de títulos que estes serão sempre pagos em sua totalidade, aconteça o que acontecer. Vinculado a isso, os momentos de intensificação de déficits públicos, independente de razões e trajetórias, são aproveitados como uma oportunidade para os argumentos e as ações – sempre à espreita – contra o Estado de bem-estar social. Em vez de apresentarem a destruição do Estado de bem-estar como apenas uma alternativa política, entre as demais, os conservadores a justificam de pronto como uma imperiosidade técnica incontornável ou algo para o qual “não há alternativa”.

Não é mero acaso, então, apesar de se mostrarem um grande fracasso, o fato de, sob inúmeros aspectos, as políticas econômicas aplicadas desde a crise financeira de 2008 não terem sido tão desfavoráveis para os mais ricos. Pelo contrário. Os lucros financeiros se recuperaram rapidamente, mesmo diante da persistência de um nível de desemprego sem precedentes, e os distintos ativos e índices nos mais variados mercados, inclusive nos Estados Unidos e na Europa, retornaram aos níveis anteriores ao da crise, mesmo quando a renda média da população vem caindo sem interrupção.

Quando se trata de austeridade, a moralidade econômica, acima apresentada, cai como uma luva sob a prioridade dos grandes credores: os “vencedores” da austeridade foram capazes de ver a sua riqueza crescer vertiginosamente com a aplicação do manual de instruções neoclássico e a financeirização crescente das economias. Quando não são os diretamente beneficiados pela austeridade, o topo 1% da distribuição de renda vem sendo muito menos afetado do que os trabalhadores e as maiorias sociais. E isso certamente está relacionado, defende nosso autor, com a disposição de políticos e gestores para seguirem forçando os eleitores deles e os cidadãos a aceitarem doses continuadas desse “remédio amargo”. Algo que explica, a despeito de amplas evidências em contrário, por que, no campo acadêmico, autores e trabalhos que dizem o que a elite credora gosta de ouvir são tão celebrados, enquanto críticos competentes são retumbantemente ignorados, não importando o quão correto estejam.

No fim, é isso que está em jogo: quem paga a necessária conta da reprodução da vida social, sobretudo, em tempos de aperto econômico, quando se intensifica o conflito distributivo? De um lado, o lucro dos empresários e rentistas – lucro obtido também graças ao trabalho de seus funcionários; de outro, os salários (diretos ou indiretos) dos próprios trabalhadores, já sub-remunerados, e expostos a inseguranças de todo o tipo nas economias centrais ou periféricas do século XXI.

Na esteira de crises, por vezes transformadas em recessões permanentes, e, assim, da continuada queda de arrecadação do Estado, a disputa pelo butim do excedente social torna-se ainda mais acirrada. Mas, conforme Blyth argumenta com competência, em Austeridade: a história de uma ideia perigosa , cortar a proteção social e os direitos trabalhistas é “tomar o veneno como se fosse o remédio”, isto é, apenas piora ainda mais a situação econômica, social e política de um país. A verdadeira forma de sair da crise, demonstra a história, é distribuindo a renda e combatendo energicamente a desigualdade; ampliando, e não diminuindo, os direitos dos trabalhadores e das maiorias sociais.

BIBLIOGRAFIA

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MARX, Karl. (2013), O Capital . São Paulo, Boitempo, vol. 1.
QUIGGIN, John. (2010), Zombie economics: how dead ideas still walk among us. Princeton, NJ, Princeton University Press.
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1Cabe mencionar, de passagem, que o déficit público é resultado da crise, e não a sua causa. Isso, pois a queda da arrecadação oriunda da contração do nível de atividade do setor privado não depende do volume dos gastos públicos. O caso da crise financeira internacional é apenas um exemplo, ainda que os canais de transmissão financeiros sejam importantes, nesse caso, para explicar a evolução de parte dos gastos.

2Para panoramas dessa corrente de pensamento, ver Buchanan (1960) , Forte e Marchionatti (2010) , Santagostino (2012) .

3Para alguns dentre os mais celebrados trabalhos a esse respeito, ver Alesina e Tabbellini (1990) , Giavazzi e Pagano (1990) .
Revista Brasileira de Ciências Sociais

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