Um romance de formação
Paulo César De Souza
A autora deste livro nasceu num ambiente que, além de estimular seu desenvolvimento afetivo e intelectual, valorizava a segurança trazida pelas normas e pela tradição: uma família Wasp ("White Anglo-Saxon Protestant"), com um pai cientista e oficial da aeronáutica, uma mãe solidamente afetuosa e irmãos encantadores.
Quando adolescente, Kay Redfield Jamison percebeu que alternava períodos de entusiasmo e de melancolia. Embora intensas, essas alterações de humor não impediram que ela prosseguisse os estudos, até doutorar-se em psicologia. Porém, meses depois de ingressar como professora no departamento de psiquiatria da Universidade da Califórnia, ela teve o primeiro surto psicótico de mania.
A partir de então, acompanhamos a protagonista de "Uma Mente Inquieta" por vários círculos de seu inferno: casamento desfeito, delírios, endividamentos por compras enormes e desnecessárias (um sintoma da mania), uma depressão que a derrubou por um ano e meio, tentativa de suicídio, morte de um grande amor, recaídas por recusar o medicamento, luta constante para manter a ocupação, a sanidade, a vida. Mas também tomamos conhecimento de fatores que a ajudaram: o reconhecimento da necessidade de tomar lítio, um psiquiatra de primeira linha, amigos e familiares excepcionais, o companheiro finalmente encontrado.
O uso do termo "protagonista", para designar a autora, remete à natureza "literária" de seu livro. "Uma Mente Inquieta" possui isto em comum com certas obras de ficção: trata do nascimento, paixão e vitória de um herói ou heroína. Ao nos fazer seguir a evolução interior da personagem, ele tem algo de "romance de formação". Mas, diferentemente deste, seria sobretudo um romance de superação. Nele não falta -melhor, ele requer- humor, distanciamento relativo, "artístico", ante a própria condição (sintoma da saúde). Há que destacar, também, a precisão e o vigor de sua prosa, que em geral se conservam nessa tradução.
Comparado a outros relatos de sofrimento psíquico, o de Kay Jamison se distingue por ela ter se tornado uma especialista na doença de que é vítima. Além da autora, juntamente com F. Goodwin, de um importante manual (intitulado "Manic-Depressive Illness"), ela dirigiu e fundou uma clínica de transtornos afetivos e, entre outras atividades, organizou concertos de obras de compositores que sofreram do mesmo mal (como Schumann, Berlioz e Wolf). Em suma, usou sua doença, o conhecimento que adquiriu apesar dela e graças a ela, para aperfeiçoar tratamentos e contribuir para mudar a atitude da sociedade ante a doença.
Entre as coisas que ajudaram Kay Jamison a sobreviver, a principal foi sem dúvida o medicamento. Mas ela demorou a reconhecer isto, por ter a reação comum de negar que o que tinha era uma enfermidade, era "loucura". Pois, diz ela, "as oscilações de humor são uma parte tão essencial da substância da vida, da nossa noção de identidade, que mesmo extremos psicóticos no humor e no comportamento podem de algum modo ser vistos como reações temporárias, até mesmo compreensíveis, ao que a vida nos apresenta".
No entanto, foi enorme o benefício da psicoterapia. O lítio tornou-a tratável, a psicoterapia (com seu psiquiatra) tratou-a. Em seu relato não há jargão psicanalítico, e o nome de Freud não é citado. Mas ela rejeita as distinções entre uma psiquiatria "biológica", que dá ênfase a causas e tratamentos médicos dos distúrbios mentais, e psicologias "dinâmicas", que se detêm na estrutura da personalidade, em conflitos e motivações inconscientes. Os bons leitores de Freud sabem que ele também rejeitou a concepção simplista que serve de base para essa divisão, que ele jamais abandonou -não tendo condições nem disposição para explorá-la- a idéia de uma fundamentação bioquímica dos afetos.
Esta não é, como se sabe, a postura de grande parte dos psicoterapeutas. Na expressão "doença mental", atentam quase exclusivamente para o objetivo. Ignorando o substantivo, eles reproduzem a miopia inicial de Kay Jamison. No plano das instituições, a contrapartida disso está em que as seguradoras de saúde não cobrem gastos na área "psi" (nos EUA, cobrem-nas em parte).
"Uma Mente Inquieta" não aborda questões de epidemiologia e política de saúde. É a história de um indivíduo, de uma mulher que, por ter a sorte de pertencer à elite, ter amigos e parentes preciosos e ser talentosa, escapou de morrer ou de vegetar num asilo ou num quarto. Estima-se que 5 milhões de americanos sofram de alguma grave doença mental. No Brasil, segundo informa o prefácio a esta edição (assinado por um psiquiatra do Hospital das Clínicas de São Paulo), há 1 milhão e meio de pessoas afetadas pelo que hoje se denomina "transtorno bipolar de humor" -tradicionalmente chamado "psicose maníaco-depressiva" ou "PMD" (Kay Jamison questiona a denominação atual, preferindo "doença maníaco-depressiva").
Atualmente é clara a determinação genética dessa enfermidade. No caso de nossa autora, ela constatou que foi herança paterna. No ritmo em que avança a biologia molecular, a identificação dos genes responsáveis pela doença é uma questão de tempo. Disso resultarão tratamentos mais precisos. Ao mesmo tempo, delicados problemas éticos surgirão. Por exemplo, pergunta Kay Jamison, será que as gestantes preferirão abortar fetos com esses genes? E, se for possível liquidá-los definitivamente, deverá isto ser feito, tornando o mundo mais ameno?
A resposta é negativa, claro. Poderia ser a mesma que ela ouviu do diretor do hospital Johns Hopkins, ao indagar se a sua condição era um obstáculo para clinicar. Após dar uma risada, ele disse que, se fossem dispensar todos os professores maníaco-depressivos, o corpo docente da escola de medicina seria, "além de muito menor, muito mais entediante".
Ao longo de seu livro, Kay Jamison cita vários poetas, gente que, como ela, soube apreciar uma "vida rica de humores". Há uma frase de Guimarães Rosa que ela certamente subscreveria: "Você sabe", disse ele a um amigo, "a normalidade é, afinal, a animalidade".
Paulo César Lima de Souza é doutor em literatura alemã pela USP e autor de "Freud, Nietzsche e outros Alemães" (Imago).
Folha de São Paulo
Paulo César De Souza
A autora deste livro nasceu num ambiente que, além de estimular seu desenvolvimento afetivo e intelectual, valorizava a segurança trazida pelas normas e pela tradição: uma família Wasp ("White Anglo-Saxon Protestant"), com um pai cientista e oficial da aeronáutica, uma mãe solidamente afetuosa e irmãos encantadores.
Quando adolescente, Kay Redfield Jamison percebeu que alternava períodos de entusiasmo e de melancolia. Embora intensas, essas alterações de humor não impediram que ela prosseguisse os estudos, até doutorar-se em psicologia. Porém, meses depois de ingressar como professora no departamento de psiquiatria da Universidade da Califórnia, ela teve o primeiro surto psicótico de mania.
A partir de então, acompanhamos a protagonista de "Uma Mente Inquieta" por vários círculos de seu inferno: casamento desfeito, delírios, endividamentos por compras enormes e desnecessárias (um sintoma da mania), uma depressão que a derrubou por um ano e meio, tentativa de suicídio, morte de um grande amor, recaídas por recusar o medicamento, luta constante para manter a ocupação, a sanidade, a vida. Mas também tomamos conhecimento de fatores que a ajudaram: o reconhecimento da necessidade de tomar lítio, um psiquiatra de primeira linha, amigos e familiares excepcionais, o companheiro finalmente encontrado.
O uso do termo "protagonista", para designar a autora, remete à natureza "literária" de seu livro. "Uma Mente Inquieta" possui isto em comum com certas obras de ficção: trata do nascimento, paixão e vitória de um herói ou heroína. Ao nos fazer seguir a evolução interior da personagem, ele tem algo de "romance de formação". Mas, diferentemente deste, seria sobretudo um romance de superação. Nele não falta -melhor, ele requer- humor, distanciamento relativo, "artístico", ante a própria condição (sintoma da saúde). Há que destacar, também, a precisão e o vigor de sua prosa, que em geral se conservam nessa tradução.
Comparado a outros relatos de sofrimento psíquico, o de Kay Jamison se distingue por ela ter se tornado uma especialista na doença de que é vítima. Além da autora, juntamente com F. Goodwin, de um importante manual (intitulado "Manic-Depressive Illness"), ela dirigiu e fundou uma clínica de transtornos afetivos e, entre outras atividades, organizou concertos de obras de compositores que sofreram do mesmo mal (como Schumann, Berlioz e Wolf). Em suma, usou sua doença, o conhecimento que adquiriu apesar dela e graças a ela, para aperfeiçoar tratamentos e contribuir para mudar a atitude da sociedade ante a doença.
Entre as coisas que ajudaram Kay Jamison a sobreviver, a principal foi sem dúvida o medicamento. Mas ela demorou a reconhecer isto, por ter a reação comum de negar que o que tinha era uma enfermidade, era "loucura". Pois, diz ela, "as oscilações de humor são uma parte tão essencial da substância da vida, da nossa noção de identidade, que mesmo extremos psicóticos no humor e no comportamento podem de algum modo ser vistos como reações temporárias, até mesmo compreensíveis, ao que a vida nos apresenta".
No entanto, foi enorme o benefício da psicoterapia. O lítio tornou-a tratável, a psicoterapia (com seu psiquiatra) tratou-a. Em seu relato não há jargão psicanalítico, e o nome de Freud não é citado. Mas ela rejeita as distinções entre uma psiquiatria "biológica", que dá ênfase a causas e tratamentos médicos dos distúrbios mentais, e psicologias "dinâmicas", que se detêm na estrutura da personalidade, em conflitos e motivações inconscientes. Os bons leitores de Freud sabem que ele também rejeitou a concepção simplista que serve de base para essa divisão, que ele jamais abandonou -não tendo condições nem disposição para explorá-la- a idéia de uma fundamentação bioquímica dos afetos.
Esta não é, como se sabe, a postura de grande parte dos psicoterapeutas. Na expressão "doença mental", atentam quase exclusivamente para o objetivo. Ignorando o substantivo, eles reproduzem a miopia inicial de Kay Jamison. No plano das instituições, a contrapartida disso está em que as seguradoras de saúde não cobrem gastos na área "psi" (nos EUA, cobrem-nas em parte).
"Uma Mente Inquieta" não aborda questões de epidemiologia e política de saúde. É a história de um indivíduo, de uma mulher que, por ter a sorte de pertencer à elite, ter amigos e parentes preciosos e ser talentosa, escapou de morrer ou de vegetar num asilo ou num quarto. Estima-se que 5 milhões de americanos sofram de alguma grave doença mental. No Brasil, segundo informa o prefácio a esta edição (assinado por um psiquiatra do Hospital das Clínicas de São Paulo), há 1 milhão e meio de pessoas afetadas pelo que hoje se denomina "transtorno bipolar de humor" -tradicionalmente chamado "psicose maníaco-depressiva" ou "PMD" (Kay Jamison questiona a denominação atual, preferindo "doença maníaco-depressiva").
Atualmente é clara a determinação genética dessa enfermidade. No caso de nossa autora, ela constatou que foi herança paterna. No ritmo em que avança a biologia molecular, a identificação dos genes responsáveis pela doença é uma questão de tempo. Disso resultarão tratamentos mais precisos. Ao mesmo tempo, delicados problemas éticos surgirão. Por exemplo, pergunta Kay Jamison, será que as gestantes preferirão abortar fetos com esses genes? E, se for possível liquidá-los definitivamente, deverá isto ser feito, tornando o mundo mais ameno?
A resposta é negativa, claro. Poderia ser a mesma que ela ouviu do diretor do hospital Johns Hopkins, ao indagar se a sua condição era um obstáculo para clinicar. Após dar uma risada, ele disse que, se fossem dispensar todos os professores maníaco-depressivos, o corpo docente da escola de medicina seria, "além de muito menor, muito mais entediante".
Ao longo de seu livro, Kay Jamison cita vários poetas, gente que, como ela, soube apreciar uma "vida rica de humores". Há uma frase de Guimarães Rosa que ela certamente subscreveria: "Você sabe", disse ele a um amigo, "a normalidade é, afinal, a animalidade".
Paulo César Lima de Souza é doutor em literatura alemã pela USP e autor de "Freud, Nietzsche e outros Alemães" (Imago).
Folha de São Paulo
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