domingo, 12 de abril de 2009

OS ESCOMBROS E O MITO


A história do pesadelo

José Arbex Jr.

BORIS SCHNAIDERMAN
o crítico e tradutor Boris Schnaiderman oferece um raro presente aos leitores. "Os Escombros e o Mito" é uma obra de grande alcance, um vôo histórico e analítico sobre um riquíssimo mas pouco conhecido cenário cultural deste século: a extinta União Soviética. Com linguagem simples, às vezes comovente, Schnaiderman apresenta uma multidão de escritores, músicos, poetas, cineastas, artistas plásticos, dramaturgos e intelectuais cuja obra permaneceu, durante décadas, enterrada sob a censura do Partido Comunista. O livro é resultado de uma meticulosa e apaixonada pesquisa, um grande trabalho de garimpo apenas viabilizado a partir dos anos 80, quando o então dirigente Mikhail Gorbatchov iniciou as reformas democráticas que iriam desembocar, em 1991, no fim da URSS.
Para facilitar a vida do leitor, os capítulos são divididos segundo uma lógica temática. Vários tratam de poesia e literatura ("Pisando em Ovos", "Os Filhos de Kafka - Escrever e Publicar" etc.), outros têm o seu conteúdo explicitado pelo título ("A Filosofia", "As Artes Plásticas", "O Teatro", "O Cinema" etc.). Para complicar a vida do leitor, Schnaiderman adotou normas de transliteração de nomes que, se são mais corretas, fogem às versões comuns na imprensa: Leon Trotski vira Leão Trótzki, Roy Medvedev vira Rói Miedviédiev. Em compensação, somos brindados com uma explicação erudita sobre a origem dos consagrados termos "glasnost" e "perestróika" (ou "pierestróika", segundo o autor).
O livro contempla os mais importantes temas relacionados à arte e à cultura, com uma inevitável e necessária atenção para a atuação da polícia política. "Com a abertura do 'depósito especial' de obras proibidas, o famoso 'spietzkhran', vieram a público fatos estarrecedores", diz Schnaiderman. "Havia ali mais de 300 mil títulos de livros, mais de 560 mil de revistas e pelo menos 1 milhão de jornais. Em cada caso, recolhiam-se aos depósito uns poucos exemplares e queimavam-se os demais". Sequer Lênin escapa: "Entre as obras proibidas, estava 'Sobre Trótzki e o Trotszkismo', de Lênin (...)".
O desabamento do regime soviético permitiu que essa quantidade imensa de obras viesse à tona, revelando fatos históricos inéditos. Feridas mal cicatrizadas são novamente abertas pela grande (e talvez irrespondível) questão: afinal, como isso tudo pôde acontecer? Se na Alemanha Ocidental o fim do totalitarismo, em 1945, permitiu que uma sociedade abalada e doente vomitasse publicamente os seus fantasmas, na URSS isso só se tornou possível muito recentemente. O stalinismo apenas começa a ser exorcizado, ainda ronda as ruas de Moscou.
Esta é uma das razões -talvez a principal- pelas quais é tão difícil ao observador externo entender o que se passa na Rússia contemporânea. Trata-se de uma sociedade que mal teve tempo de metabolizar o seu passado recente, marcado por uma guerra civil (1917-1921; 10 milhões de mortos), pela coletivização da agricultura (1929-1932; 15 milhões de mortos), pelos campos de concentração dos anos 30 (5 milhões de mortos), pela Segunda Guerra (1939-1945; 30 milhões de mortos), pela deportação de nacionalidades e etnias no pós-guerra e pela ditadura de partido único até o final dos anos 80. É claro que não importa, aqui, se as cifras de mortos são exatas ou não (elas variam, de acordo com o historiador): em qualquer hipótese, são imensas e inaceitáveis.
Este é o contexto concreto que permite dimensionar a importância do garimpo feito por Schnaiderman. Ele ilumina certos porões da história, permite que se recupere um imenso acervo que se julgava perdido ou do qual pouco se conhecia. De fato, se excetuamos as referências aos artistas mais famosos, alguns deles divulgados no Brasil pelo próprio Schnaiderman -como Vladimir Maiakóvski, Sergei Eisenstein, Konstantin Stanislavski, Anna Akhmátova, Bóris Pasternak, Alexander Soljenitsin, Kazimir Malévitch e alguns outros-, pouco se conhece sobre o que foi feito em termos de arte e cultura no período soviético.
Primeiro, porque a sangrenta polícia stalinista destruiu política e fisicamente os artistas qualificados como "inimigos do socialismo", atirando suas obras, na melhor das hipóteses, aos "depósitos" mencionados por Schnaiderman. Várias gerações foram vítimas do arbítrio, ainda mais porque o critério para separar os "amigos" dos "inimigos" era vago e amplo o suficiente para permitir todo tipo de brutalidade. Segundo, porque o regime stalinista não se contentava com a punição do artista "após" a realização de sua obra: ele introduziu o "realismo socialista", norma que deveria nortear o processo de produção.
O "realismo socialista" correspondeu a um conjunto de critérios "estéticos", adotados em 1934 por um congresso de escritores liderado por Máximo Górki, que fixava rigidamente padrões de linguagem, forma e conteúdo: o artista deveria buscar a inspiração em motivos folclóricos, exaltar as supostas virtudes de operários e camponeses, cantar as glórias da pátria. E como o líder do partido incorporava a luminosa vocação socialista, era apenas natural que a arte fosse dedicada ao culto de sua personalidade. Quem escapasse a esses padrões expunha-se à ira da polícia. É claro que Górki não deve ser responsabilizado pelos crimes de Stalin. O "realismo socialista" foi apenas um verniz "estético" para o terror político.
O clima de pesadelo que tomou conta da URSS é bem descrito à pág. 60: "Tratando do ambiente intelectual em Leningrado, onde vivera até 1975, quando emigrou, (Iefim) Etkind lembra que na época uma canção patriótica dizia: 'Nascemos para tornar o fantástico realidade' ('Mi rojdieni chtob skázku sdiélat bíliu'), mas substituindo-se 'skázku' por 'Káfku', apareceu a versão: 'Nascemos para tornar Kafka realidade' ". Outro trecho, extraído da peça "Uma Sessão Dedicada ao Riso", retrata com rara sensibilidade a atmosfera absurda da época. Seus autores, os humoristas Mass e Erdman, seriam presos e deportados para a Sibéria nos anos 30.
"Companheiros! Todos vocês leram certamente nas páginas de nossa imprensa que precisamos de uma arte alegre, cheia de vida, é preciso que o espectador ria no teatro. Sim, companheiros, o proletariado deseja rir! Por isso mesmo, estou me dirigindo a vocês para que discutam essa questão e, por assim dizer, a coloquem nos trilhos práticos. (...) Mas nós sabemos, companheiros, que se o proletariado deseja algo, mesmo que ele queira rir, o caso, companheiros, não é risível. De fato, seria muito ridículo se alguns companheiros quisessem gracejar no momento em que o proletariado deseja rir. Penso que estarei completamente certo se disser que o riso, no 16º aniversário da Revolução, não é brincadeira. Por isso, peço que se trate do riso com a máxima seriedade. Mas do que precisamos, companheiros? Precisamos de que as grandes massas riam o mais possível. Companheiros, precisamos, até as lágrimas, do riso. Vejo que alguns dos presentes estão sorrindo. Isso, companheiros, é uma vergonha! Quando falo de um tema tão sério como o riso, não é o caso de sorrir! Não vejo nisso nada de engraçado. Repito mais uma vez, de modo bem categórico, que nós precisamos do riso. Um riso pensativo, sério, sem o menor sorriso. Era tudo o que eu queria dizer."
O pesadelo só seria amainado em 1956, três anos após a morte de Stalin, quando Nikita Khruschov, no poder, denunciou alguns dos crimes de seu antecessor, no famoso 20º Congresso do PCUS. Era o "degelo": intelectuais e artistas puderam respirar com certa liberdade, surgindo uma importante geração de "rebeldes" (como o poeta Eugene Ievtuchenko). Mas o golpe de Estado que depôs Khruschov, em 1964, orquestrado por Leonid Brejnev (que se manteria no poder até morrer, em 1982), assinalou o fim da festa. Começava a "era da estagnação" burocrática, que só seria abalada pelas reformas de Gorbatchov, a partir de 1985.
Schnaiderman mergulha nessa história. Utiliza o seu dom narrativo para dar voz e cor a dezenas de artistas pouco ou nada conhecidos. Seu texto, de maneira sutil e humana, solicita do leitor compreensão, simpatia e compaixão para com aquelas pessoas que tiveram um fim tão trágico sem terem cometido crime algum, exceto o de se atreverem a criar. Se Hannah Arendt estava certa ao dizer que a memória é uma arma fundamental contra a tentação totalitária, então "Os Escombros e o Mito" é indispensável nestes tempos tão sombrios.
José Arbex Jr. é doutorando em história na USP

Folha de São Paulo

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