A lua-de-mel do capitão
Renato Lessa
DANIEL GOLDHAGEN
uma das muitas mitologias construídas a respeito do Holocausto destaca a presença de um gigantesco mecanismo de assassinato em escala industrial. O horror de Auschwitz é o ícone e a evidência dessa percepção. Duas teriam sido as principais características daquele experimento: a possibilidade de eliminar um número assustador de pessoas, com reduzido investimento temporal e espacial, e a diluição da culpa, já que o atributo "industrial" sugere a presença de dimensões tais como automatismo, máquina e complexidade organizacional, eliminando assim o contato diádico, a dimensão pessoal.
Nada mais distante disso que o cenário revelado por Daniel Goldhagen ao analisar três instituições centrais na matança dos judeus durante o Holocausto: os batalhões policiais, os campos de trabalho e as marchas da morte. Cada uma delas revela o peso fundamental da adesão voluntária de alemães comuns aos atos de extermínio.
No limite, nem sequer dimensões da vida privada e íntima dos perpetradores estiveram distantes de suas ações no genocídio. Em junho de 1942, um certo capitão Julius Wohlauf decidiu erradicar a vida dos judeus de Jósefów, pequena cidade do universo judaico polonês. Pouco após o massacre, o capitão recebeu a visita de sua recém-esposa Vera. Frau Wohlauf permaneceu em cena e acompanhou seu marido, com interesse e envolvimento direto, nos massacres seguintes de Lomazy e Miedzyrzec. A jovem transitava com seu bastão de montaria entre camaradas e corpos; Goldhagen nos dá a chave desse pequeno evento: "Foi assim que Frau Wohlauf passou a sua lua-de-mel".
"Os Carrascos Voluntários de Hitler", do cientista político americano Daniel Jonah Goldhagen, é um livro extraordinário. Tanto as suas virtudes quanto suas lacunas decorrem da natureza ousada de seu experimento. Trata-se de entender o Holocausto tendo por referência básica as ações de pessoas comuns, no uso regular de suas faculdades morais e cognitivas. O que interessou a Goldhagen não foi a suposta disseminação pela sociedade alemã, sob o nazismo, de autômatos sociais e morais, seres movidos por uma obediência cega e uma virtual suspensão de qualquer capacidade de juízo. As pessoas que participaram da matança de judeus estavam convencidas de que as ações em que estiveram envolvidas, como perpetradores ou testemunhas, faziam sentido. Ou seja, pertenciam à ordem das possibilidades.
A estratégia analítica de Goldhagen tem como premissa a centralidade do Holocausto na história política e cultural alemã. Trata-se, em suas palavras, "da realização definidora da política e da cultura alemãs durante o nazismo" e do "marco da renúncia alemã à comunidade dos povos civilizados". Em termos menos acusatórios, o que se propõe é uma inversão nos termos usuais: não mais buscar na sociedade alemã sob o nazismo as causas do Holocausto, como se ele fosse um efeito ou um epifenômeno, mas revelar no Holocausto o funcionamento e a racionalidade alucinada do nazismo: "Explicar o Holocausto é o cume do entendimento da Alemanha durante o período nazista". O Holocausto não resulta do nazismo, ele é o próprio nazismo e o "desaguadouro expressivo" da sociedade alemã naquele período. A recusa da alteridade do Holocausto com relação à sociedade alemã exige que se ponha no centro da análise o estudo dos perpetradores.
O estudo das vítimas, ênfase dominante nas análises consagradas sobre o Holocausto, pouco revela a respeito das razões da matança. Nenhuma característica própria das vítimas é capaz de explicar as razões de sua erradicação. O anti-semitismo, como visão de mundo, revela tão somente a natureza do anti-semita e a "rationale" dos que agem em seu nome. É somente mediante essa visão de mundo que os judeus podem ser percebidos e revelados como objetos naturais de políticas e ações de erradicação.
Daí decorre a necessidade de "colocar os perpetradores no centro de nossa compreensão sobre o Holocausto". Para que isso seja possível, algumas proposições devem ser estabelecidas. Quem são os perpetradores? Aqui, talvez em uma das passagens mais duras do livro, Goldhagen não deixa margem a dúvidas: os "alemães" foram os perpetradores. Assim como os "americanos" estiveram no Vietnã -e essa é uma descrição que não parece estranha a nossas narrativas ordinárias sobre o mundo e sua história recente-, os "alemães" estiveram na Polônia e na União Soviética etc. e procederam a uma escala de extermínio inédita.
A designação "alemães" tanto indica que foram "muitos" os que estiveram envolvidos com as atividades de matança física e social dos judeus, como desfaz a mitologia de que o extermínio foi uma atividade desempenhada por agentes extraordinários e especializados, movidos por uma obediência tão cega como temerosa diante de determinações superiores. Além disso, a designação permite retornar a um tema tão repetido quanto inconcluso: o da disseminação do anti-semitismo pela sociedade alemã. Para tornar persuasiva a tese, aparentemente trivial, de que o anti-semitismo como visão de mundo jogou um papel decisivo na matança e degradação dos judeus durante o nazismo, Goldhagen descarta cinco modalidades tradicionais de explicação das ações dos perpetradores. Em termos resumidos, as teses são as seguintes:
1. Tese da coerção externa: os perpetradores não possuíam outra opção a não ser cumprir ordens, sob ameaça de punição;
2. Tese do cumprimento cego de ordens: aqui os argumentos indicam como forças motrizes o carisma de Hitler, a tendência alemã ou humana a cumprir ordens, os efeitos de uma sociedade totalitária sobre as energias morais dos indivíduos;
3. Tese da pressão social e psicológica: a pressão do costume e os custos de assumir um comportamento desviante teriam como resultado a aceitação, e o eventual cometimento, de políticas e ações genocidas;
4. Tese do interesse próprio: a participação no Holocausto teria como pano de fundo a perspectiva de ascensão burocrática e de ganhos pessoais por parte dos perpetradores;
5. Tese da miopia burocrática: a divisão do trabalho e a modernidade do Holocausto, como megaevento complexo, teriam impedido a percepção por parte dos seus agentes infinitesimais da monstruosidade de seu resultado agregado.
As teses enumeradas, de acordo com Goldhagen, podem guardar ainda algum poder explicativo localizado, mas possuem uma vulnerabilidade comum: tomam como evidente que as pessoas são levadas a cometer atos contrários a seu foro íntimo. O que dizer diante de uma população, ou de uma parte considerável dela, na qual o foro íntimo autoriza ações de extermínio e degradação de coletividades julgadas abjetas? O mínimo a declarar é que novas modalidades de explicação devem ser mobilizadas.
Desde Aristóteles, sabemos que as operações básicas da vida ordinária são sustentadas por proposições de caráter moral e normativo, que tanto indicam um certo conjunto de obrigações sociais e políticas como autorizam um certo âmbito de decisão e escolha individuais. Aristóteles tratou do problema ao desenvolver a sua teoria sobre os entimemas. Estes são proposições de caráter geral que, embora não tenham o conteúdo necessário de verdade de sentenças matemáticas ou lógicas que operam como premissas maiores em enunciados dedutivos, orientam as ações humanas em contextos de escolha social. A caracterização feita por Goldhagen do anti-semitismo alemão indica que os juízos e proposições acerca do caráter abjeto e nocivo dos judeus tinham a força de poderosos entimemas.
A aproximação entre os enunciados anti-semitas e a lógica dos entimemas nos ajuda a perceber de que modo o anti-semitismo não foi uma simples ideologia. Na verdade, ele ocupou um papel muito mais básico, como o alicerce sobre o qual a estrutura cognitiva dos alemães a respeito de si mesmos e de sua sociedade acabou por se configurar. No limite, trata-se de não mais dizer que a cultura alemã está impregnada de anti-semitismo, mas declarar que a cultura alemã se estrutura como anti-semitismo. Esse parece ser o argumento de Goldhagen e, talvez, um dos pontos de maior vulnerabilidade de seu livro.
Sua investigação a respeito das raízes do anti-semitismo alemão são rápidas, se levarmos em conta a centralidade do fenômeno para toda a explicação. Isso não retira um milímetro de plausibilidade do que se sustenta. Com efeito, o argumento não só pretende tomar como evidências exemplos de proposições anti-semitas na história cultural alemã (Lutero, por exemplo), como inclui uma legião de "amigos" dos judeus. O próprio filo-semitismo revela, assim, seu ânimo antijudaico: ele sustenta que, uma vez eliminadas as condições sociais e culturais inferiores às quais os judeus empíricos estão submetidos, todas as suas bizarrias, caturrices e vícios estariam superados. Os judeus, e seu comportamento social declarado nocivo, poderiam ser erradicados do mapa social não por qualquer eliminacionismo genocida, mas por sua benévola promoção social. São esses os termos da concepção ecológica do judaísmo, no século 19, tão facilmente reconhecíveis nas páginas da "Questão Judaica", de Karl Marx.
A plausibilidade da hipótese não suspende um conjunto de dúvidas procedentes. A principal é saber a extensão dos não-perpetradores, dos que não se identificam com a matança e com a degradação dos judeus. Em que medida a designação "alemães" não oblitera um conjunto expressivo de "outros alemães" não nazificados? É evidente que se trata de uma outra pesquisa de natureza empírica, cujo ponto de partida pode ser, simplesmente, aceitar como relevante o fato de que nas eleições de 1933, que conduziram Hitler ao poder, os nazistas conquistaram 43% dos votos alemães (17.277.200). Comunistas e social-democratas, em cujos mapas cognitivos o anti-semitismo não figurava, conquistaram respectivamente 4.848.100 e 7.181.600 votos. O que se passou cognitiva e moralmente com essas 12.000.000 de pessoas durante o nazismo, mesmo sabendo que muitas entre elas nem sequer tiveram tempo para pensar a respeito? Mas, ainda que seja crucial perseguir essa curiosidade, em termos agregados o Holocausto foi um evento alemão, determinado e dirigido pelo "mainstream" da cultura alemã, tal como revelada de forma expressiva no nazismo. Com relação a esse aspecto, o livro de Goldhagen é um ponto de não-retorno.
A suposição do autor é que na alvorada do nazismo o anti-semitismo foi retirado dos sótãos alemães. A novidade do nazismo teria sido permitir a livre expressão desse traço permanente e a sua radicalização em torno de uma concepção "eliminacionista" do anti-semitismo. A tese de Goldhagen é heterodoxa e provocativa no que diz respeito à periodização histórica. A violência anti-semita não teria sido possível até as duas primeiras décadas do século 20 graças às características institucionais e políticas do regime guilhermiano. Com efeito, a estruturação aristocrática e autoritária da política alemã sob o império do Kaiser não permitiu o livre curso de expressões e motivações fortes, porém difusas e ainda não organizadas, tais como o anti-semitismo. A livre expressão e organização da fúria anti-semita, em sua vertente eliminacionista, só foi possível com a democracia da República de Weimar, percebida pelos anti-semitas como um monstruoso mecanismo judaico de destruição do Reich alemão. Contido em um regime autoritário e liberado em uma República democrática, o anti-semitismo encontra suas condições ótimas de expansão e realização com o nazismo.
O alcance dessa realização deve ser aferido na participação de alemães comuns nos engenhos e ações de extermínio. E nada melhor do que a consideração de eventos que, na pesquisa de Goldhagen, tiveram um papel de testes cruciais. Tais eventos dizem respeito a situações nas quais teria sido possível aos perpetradores evitar a prática de crueldades e assassinatos. É esse o papel que cumprem no livro as análises dos batalhões policiais, dos campos de trabalho e das marchas da morte.
Acompanhando as ações dos primeiros, já estudadas por Christopher Browning, aprendemos que não há nada mais distante da morte fria, impessoal e industrial do que o assassinato diádico de seres indefesos. Para os assassinos era impossível deixar de ouvir gritos, súplicas e urros de desespero, tanto quanto evitar a "sujeira" dos materiais humanos implodidos em cada corpo. No entanto, Goldhagen nos revela que a esses "soldados" foi dada com frequência a possibilidade de não participar dos atos de matança, o que raramente foi aceito.
O tratamento dos campos de trabalho ocupa a parte mais curta do livro. Mas o espaço é suficiente para revelar a concepção nazista a respeito das relações entre os judeus e o trabalho. Este é percebido como um atributo humano, compartilhado até pelos escravos. Mas não por judeus: por se situarem fora da humanidade a sua incompatibilidade com o trabalho é completa. Os campos de trabalho só podem significar morte e sofrimento. Dessa forma, são a materialização completa da visão de mundo nazista, encobrindo qualquer necessidade material. Mesmo sob condições de escassez de mão-de-obra, os campos de trabalho judeus seguem sendo locais de extermínio.
As marchas da morte exibem com maior eloquência os sinais de autonomia moral e liberdade dos perpetradores. Na fase final da guerra, diversos campos são evacuados por meio de longas marchas, durante as quais a crueldade e mortificação costumeiras são perpetradas. O notável nesse experimento é que, com o caos dos últimos meses da guerra, os guardas que conduzem essas marchas não estão em condições de receber qualquer ordem superior. Da mesma forma, os vínculos institucionais práticos estão dissolvidos. No entanto, eles decidem, até o fim, manter a escala de infortúnios rotineira. Sem qualquer limitação ao exercício de seu juízo e foro íntimo, esses alemães decidiram pela continuidade do engenho da morte. Tal como na lua-de-mel de Vera Wohlauf, aqui se apresentam os efeitos da ideologia alemã.
Os perpetradores do Holocausto foram protagonistas de uma revolução moral e cognitiva. É esse o achado desse brilhante livro. Ainda que crítico e iconoclasta com relação a seus antecessores, ele se associa ao importante esforço de investigação sobre o Holocausto desenvolvido por Lucy Davidowicz, Raul Hilberg, Martin Gilbert, Leni Yahl, Israel Gutman e Saul Friedlãnder. O impacto desse novo livro deve iluminar a incipiente discussão acerca do impacto do Holocausto sobre a filosofia política e moral deste século. Há muito o que fazer neste sentido, complementando esforços tais como os de Horkheimer, Adorno e Bauman. No entanto, as bases desse empreendimento estão dadas: elas dizem respeito à possibilidade de que seres humanos normais, mobilizando suas capacidades plenas de juízo e discernimento, se devotem ao macabro experimento de erradicar coletividades alheias.
Renato Lessa é diretor executivo do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Folha de São Paulo
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