Expressões do eu no Império
Richard Graham; Sandra Lauderdale Graham
RICHARD GRAHAM
SANDRA LAUDERDALE GRAHAM
A vida cotidiana tanto pode ser pública como privada: neste livro, os autores demonstram que, no Brasil, no tempo do Império, ela foi pública com maior frequência. De fato, impõe-se a questão: onde colocar o limite entre o público e o privado numa sociedade escravista, sobretudo quando tal sociedade -precisamente por causa da escravidão- nunca chegou a romper com as premissas sociais do "ancien régime"?
O senhor de escravos preenchia muitos dos papéis que hoje esperamos ver desempenhados pelos agentes do Estado: preservava a ordem social, mantinha a paz, arbitrava conflitos, enfim, exercia a autoridade legal sobre os demais. Não apenas sobre os escravos, mas também sobre os membros da família, fossem eles filhos já crescidos (que a lei permitia ao pai encarcerar ou punir fisicamente); fossem mulheres, empregadas domésticas, agregados ou, segundo o costume, outros dependentes, como os donos de vendas ou os artesãos das vilas -numa palavra, sobre todos os que Evaldo Cabral de Mello designa por "parentela e clientela" (pág. 399).
E, na medida em que o Estado se fazia presente no interior, seu representante oficial era com frequência o próprio fazendeiro ou senhor de engenho. Fato que permite a Robert Slenes detectar a "longa recusa senhorial de deixar a lei positiva invadir o terreno do favor" (pág. 260) e a Hebe M. Mattos de Castro concluir que "a separação dessas duas esferas (o público e o privado)" era apenas uma "ficção" (pág. 378). Da mesma forma, a qualidade pública da vida doméstica tinha uma função específica: o Brasil se caracterizava por uma desigualdade inquestionável, intrínseca à estratificada estrutura social, e este paradigma hierárquico tornou-se sinônimo da ordem social, fazendo da deferência e da dependência características predominantes a serem publicamente demonstradas tanto no âmbito da família imediata quanto projetada fora dela. Desta forma, ao ensaiarmos uma história das vidas privadas dos brasileiros que viveram no século passado, defrontamo-nos com questões sobre o poder e seu exercício, questões que, no Brasil, imprimem à micro-história um significado estrutural macro-histórico.
A questão das fontes ilustra bem a situação brasileira. Como observa Mello, são poucos os diários escritos por brasileiros, poucas as cartas conservadas por amigos ou amantes, sendo escassas, portanto, as reflexões privadas de que dispomos para entender o que mulheres e homens sentiam na intimidade. Enquanto Mello atribui tal lacuna à cultura católica, à confiança que esta depositava no ato da confissão como capaz de aliviar a necessidade de desabafo mais íntimo, as sociedades católicas sendo "mais apegadas às formas de sociabilidade extradomésticas" (pág. 387), nós iríamos mais longe: além de notar o baixo nível de alfabetização -que certamente reduziu as possibilidades de criação de tais registros-, acreditamos existir uma diferença na própria definição de "self" (o "eu") tal como se manifestou na sociedade brasileira do século 19 e se manifesta nesta do século 20 tardio.
Historiadores se enganam quando tentam impor ao passado noções atuais acerca do que "nós" consideramos íntimo e privado. O homem público era o modelo inconscientemente aceito por quase todos, e imagens como a do "pai de família", a do "homem respeitável", a da "mulher honesta" -todas elas tributárias antes da cultura romana que do individualismo da ilustração liberal- contribuíram para a autodefinição até das pessoas modestas. A honra, valor para eles tão crucial, só podia ser exibida em público. A própria morte era um negócio público, como João José Reis demonstra no brilhante relato acerca da forma pela qual iam ao seu encontro os baianos do início do século passado. Da doença derradeira ao jazigo final, dezenas de pessoas testemunhavam o evento. Se para um inglês a morte ideal acontecia no isolamento, longe de testemunhos, na Bahia católica a morte e os funerais necessitavam de intermediários -padres, família, carpideiras, músicos, mendigos- que oferecessem as preces e missas capazes de conduzir a alma das sombras do purgatório até a presença estonteante de Deus.
Em suma, a expressão do "self" tomou formas outras que a dos diários. O diário que Mello utiliza é sobretudo um relato de decisões sobre negócios relativos à plantação de açúcar ou às preocupações de seu proprietário acerca do tempo; aquele usado por Ana Maria Mauad -particularmente raro porque escrito por uma mulher- se volta sobretudo para a administração da casa e para a pesença constante de doenças. Não é que registrem apenas preocupações externas, mas sim que a condução pública da família, casa e fazenda, a transferência de propriedades, a doença e a morte eram para eles questões centrais e cruciais, em que punham muita emoção.
Ademais, neste nosso vocabulário do século 20, intimidade depende de relações de igualdade; contudo, mesmo quando no âmbito da família, brasileiros do século 19 estabeleciam relações desiguais e hierárquicas com o seu próximo, dependendo de intermediários, fossem eles padres ou patrões, a quem solicitavam favores; consequentemente suas cartas pessoais dificilmente são íntimas. Não é que não tivessem tais sentimentos, mas expressavam-nos de forma distinta.
Por outro lado, tratava-se de uma cultura impregnada pelo aspecto jurídico. Uma cultura assentada na regulamentação formal de disputas entre desiguais e não na negociação entre iguais; pessoas as mais humildes sabiam como usar os tribunais e os procedimentos legais a fim de assegurar seus propósitos. Tais agentes históricos deixaram-nos documentação cartorial muito mais rica do que a disponível para historiadores de outras culturas.
Uma das virtudes evidentes deste volume, e que reflete os novos rumos da melhor historiografia, é a percepção, por parte de alguns dos autores, de que documentos encontrados em arquivos públicos podem revelar muito mais do que aquilo que originalmente pretenderam. Reis se baseia largamente em testamentos e inventários, da mesma forma que Kátia de Queirós Mattoso em seu capítulo sobre o opulento estilo de vida dos baianos ricos. Tanto Slenes quanto Castro usam processos, ações de liberdade e inventários para devassar o significado da escravidão e da liberdade. E é de fato a acentuada valorização dos manuscritos -ou das fotografias, como no capítulo de Mauad-, muito mais do que a de documentos impressos -jornais, tratados, discursos parlamentares-, que vai transformando a compreensão que temos do passado brasileiro. E, como é do conhecimento de quem já tem familiaridade com esta coleção, o livro vem recheado de esplêndidas ilustrações, que dão vida ao texto.
Surpreende, contudo, que não haja aqui maior presença da cultura material, capaz de elucidar tão bem o passado. Omitem-se tanto a arquitetura rural quanto a urbana, e contudo ambas ainda se fazem presentes à nossa volta e podem ser entendidas e interpretadas como um texto. Móveis, utensílios de cozinha, urinóis de porcelana, a ferramenta de um carpinteiro, a fotografia de um escritório masculino mostrando pesadas cortinas de veludo necessitadas de limpeza -tudo isso pode nos falar se nós o permitirmos.
O corte regional e temporal do volume é amplo e convincente. Alguns capítulos enfocam sobretudo a primeira metade do século, e outros se detêm sobre o período final. Há capítulos baseados primordialmente em material concernente a Pernambuco, à Bahia, à província do Rio de Janeiro, à região cafeicultora de São Paulo, aos estabelecimentos alemães de Santa Catarina e à cidade do Rio de Janeiro -cidade que pode com propriedade ser considerada a sala de aula da nação. O coordenador reconhece a omissão do Maranhão e da região amazônica, mas nada é dito acerca da surpreendente ausência de um capítulo sobre Minas Gerais. Apesar de instruídos por fontes regionais, todos os autores desenvolvem temas que lançam nova luz sobre todo o território do Brasil, e em certos casos, como no capítulo de Reis, fazem uso deliberado de material comparativo referente a outras partes do país.
O que está faltando é uma melhor cobertura de outros grupos sociais, além de senhores e escravos. Apesar de Luiz Felipe de Alencastro se referir aos comerciantes estrangeiros celibatários, há muito pouco acerca de seu dia-a-dia. Na outra ponta da rede comercial estavam os tropeiros a conectar o interior, do Rio Grande do Sul ao Maranhão -e igualmente ignorados no livro. Não há praticamente referência às empregadas domésticas livres do Rio de Janeiro, apesar dos imigrantes portugueses serem notados com frequência. E homens de fortuna mediana ou medíocre, como artesãos, burocratas, padres são igualmente omitidos, da mesma forma que as prostitutas -sendo que todos eles, de formas distintas, faziam a conexão do público com o privado.
Ademais, alguns capítulos parecem tomar o ponto de vista das elites que estudam. Mattoso, por exemplo, deixa o leitor com certa visão romântica e idílica da sociedade baiana, caracterizada pela generosidade e solidariedade, sem enfatizar suficientemente os conflitos entre ricos e pobres, brancos e negros. O capítulo de Mauad sobre fotografia nos alerta sobre o quanto esta fonte pode nos revelar a auto-imagem das elites, mas passa muito rapidamente por sobre a importância dos detalhes que revelam outras vidas, tais como nas fotografias que mostram roupas secando ao longo de uma rua no Morro do Castelo ou fregueses no mercado público.
Seu texto nem sequer chega a mencionar fotografias de quitandeiras, vendedores de vassouras e estivadores, algumas das quais, felizmente, ilustrando o volume. A consulta de fotos citadas por ela permite que o leitor tenha, vez ou outra, perspectivas contrárias à da autora. Em uma delas vemos crianças escravas catando café sob o olhar de uma criança branca, com seu triciclo e vestes elaboradas; cena que Mauad descreve de forma distorcida como retratando "a convivência cotidiana das crianças brancas e negras nas brincadeiras" (pág. 206). Mello resume cuidadosamente a biografia que João Alfredo escreveu sobre seu tio e sogro, o barão de Goiana, mas é difícil saber se Mello acredita na fidedignidade da descrição do sobrinho sobre as relações e valores do patriarca ou se as vê como projeções do que João Alfredo acreditava terem sido -ou, mais provavelmente, do que gostaria tivessem sido. Sem dizê-lo, Mello permite que se enxergue o Brasil imperial com os óculos das elites.
Tema presente em vários dos capítulos, e que os coloca no centro de importantes controvérsias historiográficas atuais, é o que diz respeito à habilidade dos escravos em usar as regras estabelecidas pelos senhores a fim de atingir objetivos próprios. Em que medida podemos dizer que, ao protestar contra abusos, ou ao tentar controlar seu cativeiro, escolhendo um entre vários senhores possíveis, estavam os escravos lutando contra a própria escravidão? Concessões feitas aos escravos pelos senhores devem ser entendidas como forma suplementar de controle sobre os escravos ou como vitórias conquistadas pelos escravos que, caso contrário, poriam em xeque a ordem?
Assim Slenes explica a formação da família: "Dentro de certos limites os senhores estimulam a formação de laços de parentesco entre seus escravos (...) no intuito de tornar os cativos dependentes e reféns de suas próprias solidariedades e projetos domésticos. Essa política de domínio é relativamente bem-sucedida. (Mas), por isso mesmo, talvez ela subverta a autoridade dos senhores (...). O grupo escravo desfruta de uma experiência em comum e de instituições, inclusive familiares, que permitem a criação de sua identidade. Como resultado, os senhores dormem sobressaltados" (pág. 236).
Ou, como nota Castro, qualquer esforço feito pelo escravo para libertar-se do fardo da escravidão pode ser lido como uma ação "que reforçava a autoridade senhorial" (pág. 355) e mesmo assim "essa pressão constante no cotidiano da propriedade (...) não deve ser subestimada (...) num contexto (...) de crescente perda de legitimidade da escravidão" (pág. 360). De novo, negociações aparentemente privadas têm conteúdos e resultados públicos.
Há ainda muito a ser feito pelos historiadores antes que possamos estar confiantes de ter escrito a história da vida privada no Brasil. No seu envolvente capítulo inicial, Alencastro toca numa ampla variedade de tópicos fascinantes, a maior parte dos quais ainda aguardando estudos monográficos. Desta forma, ele esboçou para todos nós uma agenda de trabalho. Esperemos para o futuro mais estudos sobre a linguagem brasileira oitocentista, estilos de vestimenta, música e dança, atividades de lazer (praia, fumo), os hábitos de dar nomes, parto e amamentação (e por que não a criação dos meninos?) de crianças, doenças, educação médica, homeopatia e, por fim, idéias populares, do positivismo à frenologia e às noções de raça. No início de seu capítulo Alencastro fornece-nos ainda uma ampla visão estrutural, apesar de fazer muito pouco para relacionar cada um dos tópicos acima mencionados com as generalizações amplas.
O coordenador e os autores estão de parabéns por esta significativa contribuição à historiografia brasileira.
Richard Graham e Sandra Lauderdale Graham são professores na Universidade do Texas, Austin (EUA).
Folha de São Paulo
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