Angélica Chiappetta
Chaim Perelman é, muitas vezes, considerado um dos principais responsáveis pelo renascimento da retórica ou, como ele mesmo afirma, pelo estabelecimento de uma Nova Retórica. Se a retórica pôde renascer, ou se uma Nova Retórica pôde ser estabelecida, é porque desde aproximadamente o final do século 18 o termo "retórica" passou a indicar o discurso vazio que procura substituir com expedientes medíocres a falta de idéias. A retomada pode ligá-la ao raciocínio, terreno onde tem que se defender da lógica, ou às figuras de estilo, onde disputa com a poética, mas, nos dois terrenos, destaca-se a linguagem como realidade comum.
Pode-se passar da retórica como raciocínio não formal à retórica como inferência de um sentido dito figurado e daí para o reconhecimento das intenções do orador como critério de sentido além do literal. Tais deslizamentos e sobreposições são parte do campo retórico e ajudam a defini-lo.
Assim, o plural, "Retóricas", no título do livro de Perelman, é oportuno em vários sentidos. Trata-se de uma coletânea de artigos e conferências anteriormente publicados e agora (a primeira edição belga é de 1989) agrupados em quatro grandes temas. A primeira parte, "A Linguagem: Pragmática e Dialógica", lembra que, apesar da diferença de significados atribuídos ao termo "dialética", este sempre pressupõe um juiz ou alguma instância de julgamento, externa e prévia, que garanta a verdade das proposições.
A dialética platônica faz aparecer um saber que assenta numa realidade estável, feita de verdades preestabelecidas e imutáveis, as Idéias, que são apenas reveladas pelo diálogo que as pressupõe. Perelman, retomando noções aristotélicas, reforça a participação do interlocutor: o ponto inicial de uma argumentação dialética não consiste em proposições necessárias, válidas em toda parte e sempre, mas sim em proposições efetivamente aceitas em dado meio e válidas só nesse meio.
A segunda parte, "Lógica ou Retórica?", segue criticando as noções de univocidade pretendidas pela filosofia platônica que, separando convicção de persuasão, impõe um ideal de rigor que confunde progressivamente a lógica e a lógica formal. Para que uma mensagem seja formalmente analisada é preciso reduzi-la à univocidade, mas o próprio formalismo só é "evidente" por convenções de aceitação. Qualquer linguagem, mesmo formal, dirige-se a alguém e, se pode convencer a todos, sendo formal, é por não agredir ninguém com um conteúdo que questiona este ou aquele valor. A Nova Retórica, opondo-se a tal platonismo, é "o estudo dos meios de argumentação, não pertencentes à lógica formal, que permitem obter ou aumentar a adesão de outrem às teses que se lhe propõem ao assentimento". Seu cuidado primordial é o do lógico às voltas com o real social.
Na terceira parte da coletânea, "Filosofia e Argumentação, Filosofia da Argumentação", Perelman faz uma distinção entre o que chama de "filosofias primeiras" e uma proposta "filosofia regressiva". As filosofias primeiras, dogmáticas, fundam-se numa metafísica que determina os princípios absolutamente primeiros e empenham-se em provar que esses constituem a condição de qualquer problemática filosófica. A filosofia regressiva, por outro lado, lida com princípios que, em vez de serem iluminados por alguma intuição que preceda os fatos e seja independente deles, são esclarecidos pelos fatos que permitem coordenar e explicar.
Os princípios regressivos são como que efeitos de suas consequências. Essa filosofia, Perelman avizinha da retórica antiga de Aristóteles, e principalmente da parte de sua "retórica" relacionada à "tópica". No entanto, afirma que a meta de sua Nova Retórica, ou sua "lógica do preferível", é mais limitada que a da retórica aristotélica, pois não se interessa por todos os fatores que influenciam o assentimento, mas apenas pelas "argumentações pelas quais somos convidados a aderir a uma opinião e não a outra". Segundo Perelman, argumenta-se para conseguir a adesão de um auditório que, no caso do filósofo, é o "auditório universal", abstração, idealizada pelo orador, que regula os problemas relativos à eficácia da retórica. A argumentação racional deve pretender à universalidade expressa por esse auditório, histórica e socialmente determinado, situado num meio de cultura e variando com este.
Na última parte, "Teoria do Conhecimento", Perelman faz referência à sociologia do conhecimento, "ciência da determinação do saber e do conhecer pela existência social". Sem considerar a constituição histórica e social do auditório, a teoria do conhecimento, ligada às ciências formais, segue a concepção cartesiana que diz ser a ciência constituída por verdades evidentes, que não variam e não dependem da figura do pesquisador. No entanto, lembra Perelman, mesmo as ciências tiveram um desenvolvimento argumentativo e muitas razões que fundamentam as decisões dos cientistas são opiniões consideradas prováveis e elaboradas graças a raciocínios que não se prendem à evidência nem à lógica analítica. Uma teoria da argumentação poderia auxiliar o exame dos limites do cartesianismo e propor procedimentos para ultrapassá-los.
Tendo sido apontado como um valorizador e quase salvador da retórica, Perelman foi também, muitas vezes, acusado de trair a causa.
A. Plebe e P. Emanuele fazem severas objeções ao fato de ele ter reduzido a retórica antiga a uma parte da "invenção" e de apresentar um Aristóteles "com o propósito enganoso de identificar a retórica com a dialética"(1). B. Cassin afirma que o projeto de Perelman é platônico e tenta satisfazer o "Fedro" graças à "Retórica" de Aristóteles, apropriada, assim, como a "boa retórica"(2). Segundo a autora, o "auditório universal" de Perelman coloca o problema do valor da retórica no campo das intenções, enquanto esse só poder ser retoricamente discutido no campo dos efeitos. M. Meyer diz que a Nova Retórica ainda está restrita ao campo da proposição como suporte mínimo da verdade, quando talvez se devesse passar para o campo dos problemas e das questões, campo em que a retórica seria "a negociação da distância entre os homens a propósito de uma questão, de um problema"(3). De qualquer forma, Perelman deixa claro que se apropria da retórica aristotélica com o interesse do lógico insatisfeito com as restrições que o cartesianismo tem imposto aos raciocínios.
NOTAS:
1. "Manual de Retórica", de Armando Plebe e Pietro Emanuele, Martins Fontes, 1992.
2. "Bonnes et Mauvaises Rhétoriques - De Platon à Perelman", de Barbara Cassin, in "Figures et Conflits Rhétoriques", org. por Michel Meyer e Alain Lempereuer, Université de Bruxelles, 1990.
3. "As Bases da Retórica", de Michel Meyer, in "Retórica e Comunicação", org. por Manuel Maria Carrilho, Asa, 1994.
Angélica Chiappetta é professora de língua e literatura latina da USP.
Folha de São Paulo
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