terça-feira, 28 de abril de 2009

Ícones de brasilidade


Annateresa Fabris

numa entrevista recente, Jacques Le Goff propõe uma série de etapas para a elaboração de uma biografia, que deveria compreender e explicar um indivíduo e, a partir dele, fornecer conhecimentos sobre uma época, um contexto, um conjunto de relações. Modelo de história total, a biografia afigura-se a Le Goff não como o cumprimento de um destino e, sim, como um feixe de casualidades, problemas, inversões que o historiador ordena, atento à produção da memória, ou seja, a todos os testemunhos elaborados sobre a individualidade em exame.
O modelo de biografia proposto pelo historiador francês não é muito usual nas monografias artísticas produzidas no Brasil, que se pautam por dois parâmetros fundamentais: um historicismo ingênuo, que se contenta em enumerar datas e fatos, como se estes bastassem para estabelecer um nexo significativo entre um autor e seu tempo; uma análise morfológica, não raro exacerbada, que só leva em conta a vida das formas, alheia a qualquer fator exterior.
"Antonio Henrique Amaral - Obra em Processo" apresenta problemas metodológicos oriundos sobretudo do modelo "historicista", embora haja diferenças sensíveis de capítulo para capítulo. Um dos primeiros elementos que salta à vista do leitor é a falta daquilo que Frederico Morais chama a "teoria das circunstâncias", que deveria propiciar um mergulho na "fenomenologia de criação do artista", tanto em sentido interno quanto em sentido externo.
Basta percorrer os três capítulos do livro para perceber que a circunstância é apenas um vago referencial, evocado, mas não explicitado e, muito menos, aprofundado. O significado político da série das bananas, por exemplo, é atribuído por Sullivan a um período em que "o país passou por grandes convulsões sociais, morais e psicológicas", ao passo que Morais estabelece uma relação entre esse tema recorrente e o tropicalismo graças à mediação de "O Rei da Vela". Maria Alice Milliet, por sua vez, fala de um artista que vai "ao encontro do imaginário social", mas tais referências rápidas em nada ajudam a situar o leitor num momento complexo da história do país, percorrido por tensões políticas, sociais e, ainda, artísticas e estéticas.
Se Maria Alice Milliet propõe uma análise pertinente e sofisticada para o apego do artista à figuração, lido à luz da noção de figural de Lyotard, sente-se, contudo, ao longo dos três capítulos a falta daquele embate nacional versus internacional, que marcou sobretudo a década de 70, e que se explicitou na contraposição entre suportes tradicionais e tendências desmaterializadas. Antonio Henrique Amaral foi um dos protagonistas centrais desse embate, ao ser constantemente associado à discussão sobre uma possível arte brasileira.
A evocação do clima cultural do período não impede que a obra de Amaral seja analisada nos termos propostos por Morais, que faz do tema "um pretexto para exercitar ao máximo as possibilidades oficinais e linguísticas da pintura -cor, matéria, textura, gesto". Se o conjunto da obra de Amaral permite concordar com essa afirmação, uma vez que o ofício do pintor se afina década após década, o tema, contudo, não é secundário, se for considerada a preferência do artista por imagens brasileiras ou conotadas ao Brasil. Em vários momentos, aliás, cria-se uma conjunção nada gratuita entre tema e estilo, sobretudo na série dos bambus e em algumas paisagens da década de 90, nas quais a questão da brasilidade se desdobra numa evocação de Tarsila do Amaral interpretada à luz do hiperrealismo.
Morais, que é autor do ensaio mais alentado do livro, no qual tema, estilo e forma vêm se imbricando gradualmente, reconhece a centralidade de um conjunto de símbolos que reaparecem circularmente na obra de Amaral, ao sugerir a idéia da auto-referencialidade. Num diálogo constante com a própria produção, o pintor pontua suas telas com símbolos e signos de derivação interna, o que não exclui outro tipo de diálogo, sublinhado pelo crítico mineiro, não tanto por meio de artistas singulares quanto pela adesão a determinadas vertentes pictóricas. O diálogo vislumbrado por Morais parece ser muito mais pertinente do que o verdadeiro passeio pela história da arte alinhavado por Sullivan, que dá vida a constantes evocações pessoais, motivado ora pelo tema, ora pela matéria intrinsecamente pictórica.
Realista por opção e convicção, Amaral emerge do livro como um artista que sonda constantemente a realidade. Trata-se, contudo, de um realismo de segunda geração, graças ao uso de recursos fotográficos, o que permite a Morais propor uma leitura estrutural do processo do artista, no qual detecta a presença simultânea de uma resposta aos meios de comunicação de massa e de uma vontade de forma, que se desdobra em metáforas plásticas corpóreas e sexuais. O de Amaral é, por fim, um realismo crítico, que se distancia da realidade para apreendê-la melhor, que fixa determinados momentos para poder analisá-los existencial e formalmente, num jogo de transgressões da aparência, no qual a deformação, a subversão espacial, a combinação de figurativo e abstrato são elementos determinantes. Talvez, a discussão sobre a "brasilidade" dos ícones de Amaral devesse começar por aí, nesta revisão que o livro esboça, mas não leva adiante com todos os desdobramentos desejáveis.
Annateresa Fabris é crítica, historiadora da arte e autora de, entre outros, "Monumento a Ramos de Azevedo - do Concurso ao Exílio".

Folha de Sã Paulo

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