O espelho das épocas
Victor Knoll
Ao acompanhar a orientação de Aby Warburg, defendendo a posição que podemos chamar de "culturalista" para a interpretação das obras de arte e dos nexos entre os segmentos históricos, Edgar Wind se opôs ao formalismo de Riegl, o qual logo em seguida foi assumido por Woelfflin.
Riegl estabeleceu o conceito de "Kunstwollen", "vontade de arte", que ganha melhor tradução pela expressão "vontade formativa", pois explicita de modo mais próprio o sentido ali cunhado. Trata-se de compreender as variações de estilo ao longo da história, recusando as explicações derivadas de materiais e técnicas, em função de um "impulso estético" aliado a um desejo inato de mudança -uma vontade formativa. Solidária desta orientação, de modo geral, a principal preocupação de Woelfflin esteve voltada para a análise estilística. A evolução dos estilos se dá em função da mudança de esquemas visuais como, por exemplo, do linear para o pictórico. O estilo é reconhecido por Woelfflin como um valor em si; graças a este dispositivo, a história da arte pode então ser vista como uma disciplina independente, isto é, que não necessita recorrer às informações provenientes de outras disciplinas -basta "a visão pura".
Contra esse "esteticismo" -que nas últimas décadas do século 19 teve grande presença na Alemanha- já houvera se levantado Aby Warburg, em cuja pista irá se desenrolar a atividade teórica e crítica de Edgar Wind. A grande preocupação de Warburg foi a de pensar as obras de arte não em termos de valores formais, mas inseridas no leque dos acontecimentos da época, seja no que diz respeito aos aspectos materiais da sociedade, seja pela avaliação da produção intelectual. Ao comentar os propósitos do Instituto Warburg quando de sua criação, assim Panofsky exprimiu a postura metodológica de seu patrono: a eliminação das fronteiras entre o desenvolvimento histórico da arte, das religiões, dos cultos, das superstições, da ciência e da literatura.
"A Eloquência dos Símbolos", uma compilação de artigos, aulas e comunicações, cobrindo a atividade de Edgar Wind de 1930 até 1971, é um eloquente exemplo do modo como assumiu as premissas de Warburg e de como sua crítica de determinadas teorias -como a concepção platônica de arte e sua reedição no Renascimento- e de pontuadas obras de arte expandiu as convicções do mestre. Estamos diante de uma repulsa ao que Victor Cousin chamou pela expressão "arte pela arte"; o artista e suas obras não habitam esse lugar que Sainte-Beuve chamou de "Torre de Marfim".
A formação de Edgar Wind, entretanto, é mais complexa, pois aglutina diferentes linhas de pensamento e valores culturais. Vamos nos ater às referências centrais. Em Berlim, no final da segunda década do século, acompanha as conferências de Cassirer que desperta seu espírito para as implicações culturais do mito e do símbolo; ao mesmo tempo, as preleções de Husserl não encontram abrigo em seu interesse teórico; ainda por este tempo frequenta assiduamente as aulas do grande helenista Wilamowitz-Moellendorff. Converte-se no primeiro aluno que Panofsky orientou para a obtenção do título de doutor, que ocorre em 1922. A data é importante, pois é nesse momento que encontramos os primeiros indícios do rompimento de Panofsky com a tradição formalista da história da arte. Em 1924, Wind parte para os EUA, onde entra em contato com o empirismo anglo-americano, que passa a exercer influência sobre as suas análises de obras e de história da arte. Os textos dos pragmatistas Peirce e William James ingressam em sua bibliografia.
De volta à Alemanha em 1927, aos 27 anos de idade, conhece Aby Warburg. O contato com o ponto de vista teórico de Warburg se ajusta e confere acabamento às experiências intelectuais pelas quais passou; assim, após ter seguido os cursos de Cassirer, ter trabalhado com Panofsky e passado a temporada nos EUA, agora o encontro com Warburg completa a sua formação. A aglutinação destas vertentes se mostrou muito clara -e consistente- no ensaio sobre a concepção de "história cultural" e depois, na polêmica com os formalistas, no comentário ao conceito de Warburg de "Kulturwissenschaft", "ciência da cultura", em que trata da questão da imagem e da polaridade dos símbolos, pondo em xeque a tese de Woelfflin acerca da "evolução dos estilos" como movimento independente dos conteúdos das obras ou dos interesses das épocas.
O método de Edgar Wind, em linhas gerais, estabelece que a interpretação de obras de arte ou de momentos históricos está associada à exploração da produção literária contemporânea às obras ou aos períodos, bem como devem-se levar em conta as concepções filosóficas, a composição musical e as explicações que a ciência oferece acerca da natureza. Entretanto, o "visual" -sem se confundir com o estritamente formal- não é esquecido em suas análises e ocupa lugar de destaque. No exame do "visual" importa situar as obras de arte no meio social no qual brotaram -onde se incluem atitudes, comportamentos e expectativas irracionais-, no contexto cultural do qual se alimentaram e no mundo intelectual que as guiaram. Assim, a pintura renascentista está comprometida com a interseção da filosofia dos séculos 15 e 16, do simbolismo clássico e das crenças daqueles que encomendaram as obras.
A posição de Edgar Wind, se não a reconhecemos como radical, é ao menos firme ao se opor até mesmo a Bradley, que aceitava uma relação "subterrânea" entre a arte e a vida (é bem verdade, relação derivada do estilo e dos valores formais). Ao contrário, afirma enfaticamente uma relação "superficial" entre a vida e a arte, isto é, epidérmica ou, melhor, congênita. As obras de arte são depositárias de toda gama de experiências vividas pelos indivíduos e pelas comunidades, que se confundem com as determinações estéticas -as quais não podem ser pensadas em separado de seus conteúdos. A arte não é um fenômeno isolado, que se basta a si mesmo. A arte pertence, ao mesmo tempo, a uma pletora de significações e como tal se constitui.
"A Eloquência dos Símbolos" aborda uma multiplicidade de temas como, por exemplo, a iconografia renascentista, o caráter religioso do "mítico" no renascimento, analisa Donatello, Botticelli, Gruenewald, e ainda volta seu olhar para Rouault e Matisse ao considerar o cristianismo na arte moderna (avaliando a tese hegeliana de que a religião já não ocuparia o centro da cena artística). Da coletânea que constitui o livro, dois textos se salientam: um sobre o "divino temor", no qual aborda a teoria da arte de Platão, procurando reconstituir as condições históricas efetivas que a motivaram (há ainda outros dois textos que envolvem a filosofia platônica: "A Justiça Platônica Concebida por Rafael" e "A Tirania Platônica e a Fortuna Renascentista"), e outro sobre "O Conceito de Warburg de 'Kulturwissenschaft' ("ciência da cultura")". No ensaio sobre o "divino temor" (que originalmente foi o tema da aula inaugural como "privatdozent" em Hamburgo em 1932), Edgar Wind, ao contrário de tomar como ponto de partida e texto privilegiado o "Livro 10" da "República", põe sob o seu olhar crítico "As Leis". Ao lado de Pierre-Maxime Schuhl, com seu pequeno grande livro "Platão e a Arte de seu Tempo", de 1934, é pioneiro na reavaliação de uma estética platônica. "A Eloquência dos Símbolos" traz em apêndice o comentário de Edgar Wind à biografia que sir Ernst Gombrich escreveu sobre Aby Warburg.
Além da atividade acadêmica, notabilizou-se também como conferencista, tendo sido convidado pela BBC de Londres para pronunciar um ciclo de palestras que, em 1963, foram reunidas em livro sob o título "Arte e Anarquia". As seis palestras convertidas em seis capítulos podem ser tidas como um breviário de seu pensamento sobre a arte e sua história.
Victor Knoll é professor de filosofia da arte na USP
Folha de São Paulo
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