O fim dos anos dourados
Paul Singer
Este é um livro a respeito da globalização, em sua modalidade neoliberal, que vem se impondo nas últimas décadas na maior parte do mundo e mais recentemente também no Brasil. José Luis Fiori examina criticamente as políticas exigidas pela globalização e o pensamento doutrinário que as racionaliza e justifica. Nada é mais importante e urgente.
As políticas de globalização, também conhecidas como de "ajuste estrutural", redesenham por completo os limites entre o público e o privado, reformulam o papel do Estado na economia e na sociedade e modificam o relacionamento econômico entre os cidadãos de nações diferentes. Elas são justificadas como imposição da modernidade e do progresso econômico e social, embora representem um recuo histórico a meados do século passado. Fiori se lança ao combate a estas políticas, com o denodo de quem sabe que nada contra a corrente.
"Os Moedeiros Falsos" é composto por oito ensaios, sete entrevistas e três conferências, todas feitas entre julho de 1994 e agosto de 1997. O primeiro ensaio, que dá nome ao livro, foi publicado em 3 de julho de 1994 e inspirou-se obviamente no lançamento do Plano Real e na ascensão vitoriosa da candidatura de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Este ensaio enquadra o Plano e o candidato no movimento mais geral de inserção do Brasil e do resto da América Latina no campo hegemônico do neoliberalismo. Fiori mobiliza seu largo conhecimento histórico para dar o sentido maior dos embates então vividos pelo país.
Não esconde que a figura do atual presidente o fascina como dublê de intelectual e político. Grande parte dos ensaios e entrevistas ocupam-se dele. Fiori conhece bem a obra de FHC e utiliza a teorização da dependência e da vocação política da burguesia brasileira pelo sociólogo para explicar a trajetória política recente de FHC, o senador, o ministro e o presidente. A explicação faz sentido. Em meados dos 60, FHC descobriu que a burguesia brasileira, e por extensão dos países subdesenvolvidos, procura viabilizar a industrialização não pelo enfrentamento da competição dos capitais do mundo desenvolvido, mas mediante a associação com eles.
Nesta teorização, de clara inspiração marxista, FHC critica e desvenda o desenvolvimento associado. Mas, 25 anos depois, o sociólogo tornou-se um dos principais líderes políticos do Brasil. Cumpria posicionar-se diante da crise econômica e política, que tomava a forma de superinflação incontrolável e ruptura potencial entre a classe dominante e o aparelho de estado, então objeto de saque e desmonte por parte de Collor e companhia.
E Fiori aponta a continuidade oculta entre a teorização de FHC e o seu posicionamento posterior: "E frente a esse desafio tomou sua primeira e fundamental decisão: resolveu acompanhar a posição do seu velho objeto de estudo, o empresariado brasileiro, e assumiu como fato irrecusável as atuais relações de poder e dependência internacionais. Deixou o seu idealismo reformista e ficou com seu realismo analítico abdicando dos 'nexos científicos' para propor-se como 'condottiere' da sua burguesia industrial, capaz de reconduzi-la a seu destino manifesto de sócia-menor e dependente do mesmo capitalismo associado..." (pág. 17).
Há sempre certa presunção na tentativa de desvendar motivações alheias. Se Fernando Henrique Cardoso abandonou ou não seu idealismo reformista, jamais saberemos. Mas é inegável que resolveu ligar seu destino ao da burguesia brasileira (e internacional) e que obrigou o PSDB a acompanhá-lo neste caminho, fazendo-o abandonar o percurso anterior de "centro-esquerda", em que posturas e interesses antiburgueses ocupavam certo espaço.
Neste sentido, Fiori pôs o dedo na ferida. E é preciso notar que aproximar-se do empresariado era mais fácil no período anterior, em que a resistência ao regime militar reunia no mesmo barco a esquerda e setores importantes da burguesia. Mas Fernando Henrique Cardoso fez sua opção, como bem mostra o livro de Fiori, quando a burguesia já tinha aderido ao neoliberalismo, colocando-se em confronto direto com todos os setores populares, inclusive com a parte do empresariado que não queria ou não podia se internacionalizar.
As análises de Fiori percorrem com a mesma desenvoltura e competência a história econômica e política e a evolução das doutrinas econômicas, mostrando o permanente entrelaçamento entre prática e teoria. É interessante observar como a história é indispensável ao labor crítico e como, pelo contrário, é inteiramente dispensável ao pensamento apologético da tendência dominante.
O neoliberalismo e seu núcleo duro -o pensamento neoclássico- tomam por base a natureza humana e o comportamento racional dos agentes. Não sentem necessidade de demonstrar empiricamente que os mercados, entregues à sua própria dinâmica, sempre otimizam a alocação dos recursos e liquidam todos as mercadorias oferecidas. Conseguem demonstrá-lo mediante um recurso conceitual: tudo o que não se vende simplesmente não atingiu o preço desejado pelo vendedor. E todas necessidades não satisfeitas resultam de opções racionais dos sujeitos, que preferiram utilizar seus recursos para outras finalidades.
Com estes pressupostos é possível sustentar "cientificamente" que o desemprego, por exemplo, é sempre voluntário. Os desempregados o são porque não aceitam o salário que os empregadores podem lhes pagar, dada a produtividade potencial dos primeiros. E os pobres, desde que não tenham sido roubados ou escravizados, devem sua condição apenas às suas próprias opções. Portanto, numa economia "livre", em que cada indivíduo é dono de seu destino, o desemprego e a pobreza não são males sociais, mas resultados inevitáveis do acaso e das opções individuais.
Para quem acredita nestas proposições, a análise histórica é, na melhor das hipóteses, secundária. Mas, para quem não está convertido a elas e quer entender de que modo estruturas econômicas, políticas e jurídicas produzem hierarquias de poder e desníveis socioeconômicos, a análise histórica é imprescindível. E Fiori mostra bem como a tentativa anterior de aplicar o liberalismo na íntegra levou a crises, que fizeram a tentativa malograr. Seguiram-se décadas de depressão e uma guerra mundial, ao fim das quais o capitalismo entrou em seus "anos dourados", quando o crescimento atingiu o seu ápice, o desemprego quase desapareceu e construiu-se o "welfare state", "a mais ambiciosa e bem-sucedida construção republicana de solidariedade e proteção social" (pág. 88).
Em vários capítulos, Fiori aborda a crise e o fim dos "anos dourados", que originam a atual era de hegemonia neoliberal. Esta análise é crucial e está longe de ser completada. Fiori aponta os fatos essenciais: a liquidação do sistema internacional de pagamentos armado em Bretton Woods, nos 70, a desregulamentação financeira e a supremacia ganha pelo capital internacionalizado, o verdadeiro novo poder que emerge da globalização.
O atual confronto entre o grande capital internacionalizado e cada um dos estados nacionais só se explica por toda uma série de mudanças "políticas" -a tolerância do euromercado, a queda das barreiras tarifárias, o fortalecimento do FMI e do Banco Mundial, como executores dos ajustes estruturais- que foram implementadas num período -os anos 80- em que a social-democracia governava a França, a Espanha e numerosos outros países europeus. E em que ditaduras militares iam sendo substituídas por democracias em grande parte dos países hoje chamados de "emergentes".
Fiori dedica uma de suas páginas mais brilhantes à confusão ideológica que reinava até há pouco nas fileiras da social-democracia, dividida entre a necessidade de parecer confiável aos detentores do capital globalizável e os interesses objetivos de sua base social. É importante assinalar que esta confusão está começando a ser superada, o que permitiu o recente renascimento da social-democracia na Itália, Reino Unido e França. Pode parecer pouco, mas a denúncia do desemprego como "horror econômico" e o reconhecimento de que cabe aos governos eliminá-lo é essencial para escapar da tirania do "pensamento único" neoliberal.
Um dos elementos que Fiori maneja com sagacidade é o "tempo". Ele sabe muito bem que o tempo é inteiramente abstraído das análises neoclássicas do equilíbrio: forças exógenas perturbam o equilíbrio de mercado e aí -"desde que nenhum agente extra-econômico, como governo, sindicatos etc., interfira"- os agentes executam uma série de tentativas, rejeitando as erradas e aproveitando as certas, até conseguirem definir novos comportamentos ótimos; deste ponto em diante, a conduta otimizadora é sempre reiterada, o que reconstitui o equilíbrio. Não se faz a pergunta embaraçosa: quanto tempo leva esta procura do ótimo? Será que as vítimas das tentativas erradas se dispõem a esperar todo este tempo, até que a otimização se complete?
A questão é crucial para viabilizar politicamente os ajustes estruturais. E Fiori aponta repetidamente que é considerável, para dizer o mínimo, o tempo que os efeitos benéficos levam para se fazerem sentir. "No caso das experiências bem-comportadas, as etapas de estabilização e reformas tomaram de três a quatro anos cada uma, e até uma década para a retomada efetiva do crescimento. Neste quadro, como é óbvio, fica difícil obter credibilidade para políticas neoliberais junto ao empresariado, seu aliado indispensável e, pior ainda, junto aos trabalhadores" (pág. 19). Convém notar que a maior parte das experiências não é bem-comportada e não somente pela resistência ou rebeldia dos excluídos, mas também pelas vicissitudes dos mercados financeiros literalmente desnorteados porque desregulamentados.
Por isso, o projeto de ajuste estrutural de certa maneira pressupõe uma longa permanência no poder da coligação neoliberal, o que parece ser pouco compatível com a democracia, para dizer o mínimo. Ao apontar para esta contingência, ainda em julho de 1994, Fiori antecipa brilhantemente a campanha pela reeleição, que domina o cenário político neste último ano. Em sua melhor tirada, diz: "A dolarização inicial da economia será sempre um artifício inócuo se não estiver assegurada por condições de poder inalteráveis por um período considerával de tempo. Deste ponto de vista, aliás, o Plano Real não foi concebido para eleger FHC; FHC é que foi concebido para viabilizar no Brasil a coalizão de poder capaz de dar sustentação e permanência ao programa de estabilização do FMI e viabilidade política ao que falta ser feito das reformas preconizadas pelo Banco Mundial" (pág. 14).
Convém assinalar, finalmente, que muitas análises em "Os Moedeiros Falsos" prevêem a atual crise financeira mundial em curso. Fiori mostra o tempo todo como os planos de estabilização apoiados em âncora cambial dependem crescentemente da disponibilidade de capitais externos, que de forma alguma estava e está garantida. O Plano Real não apresenta qualquer originalidade a este respeito e sua vulnerabilidade à especulação financeira está bem retratada.
A única restrição que se pode fazer a este livro, sob todos os aspectos brilhante, esclarecedor e oportuno, é a pouca atenção que dá à discussão de alternativas ao neoliberalismo. José Luis Fiori parece recusar-se a teorizar a este respeito, enquanto as condições políticas para inverter a hegemonia neoliberal ainda não estiverem à vista. Mas, para que possam surgir, é imprescindível a formulação de alternativas historicamente convincentes. Fiori parece resignado a uma luta de resistência contra a ofensiva do grande capital. Sem uma utopia alternativa à do neoliberalismo, esta luta não tem perspectiva.
Paul Singer é professor de economia na USP e autor, entre outros livros, de "Um Governo de Esquerda para Todos" (Brasiliense).
Folha de São Paulo
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