domingo, 12 de abril de 2009

TODOS OS NOMES


A angústia da sequência

Adriano Schwartz

De todos os nomes que José Saramago poderia escolher para seu protagonista em "Todos os Nomes", seu mais novo romance, parece provável a razão por que ele optou por José. Saramago precisava escrever, em algum momento, "e agora, José?". Pode parecer brincadeira, mas não há, a princípio, qualquer motivo específico para se escrever um romance -um motivo é tão bom quanto o outro, mesmo que seja apenas citar um verso. O que importa é o resultado.
E aí está o problema que, de certa maneira, é sintetizado pelo uso do verso de Drummond. Um leitor atento da obra anterior do autor sabia -tinha certeza-, após poucas páginas de leitura, que aquela frase seria citada (ela surge na pág. 105). Um leitor atento "sabia" o livro sem tê-lo lido.
Trata-se, ainda assim, de um grande romance. Mas é uma obra-problema, na sequência de "O Evangelho segundo Jesus Cristo" e de "Ensaio sobre a Cegueira". O primeiro fechou de maneira primorosa um "ciclo" na obra do escritor, e "Ensaio sobre a Cegueira", como indica este "Todos os Nomes", inaugura outro.
Como no "Ensaio", Saramago situa "Todos os Nomes" em um local inominado, os personagens (exceto o protagonista) também não têm nomes próprios; como no "Ensaio", há uma tentativa de questionar o homem a partir de uma perspectiva universalista, genérica -se no primeiro há o permanente e aterrador vazio da não-visão e de todas suas consequências e implicações, neste há uma gigantesca máquina burocrática que a todos cataloga, uma espécie de repartição pública superdimensionada que sabe tudo sem entender nada.
Ou seja, percebe-se uma óbvia continuidade entre "Todos os Nomes" e o romance que provocara uma clara ruptura na obra do escritor. Mas acontecem também retrocessos ao que havia de mais criticável em alguns momentos do "ciclo anterior": uma certa previsibilidade, um excessivo "opinionismo" do narrador, uma incômoda reiteração de lugares-comuns. É mais ou menos o que diz o personagem José em uma reflexão autopunitiva, que pode ser expandida para mais de uma passagem no livro: "Ela deve ter achado que não valia a pena responder-me, e nisso tinha toda a razão, porque o que eu havia dito não passava duma frase de efeito, oca, dessas que parecem profundas e não têm nada dentro".
O curioso é que essas restrições são próximas às críticas que o numeroso contingente de não-leitores de Saramago costuma fazer. Sim, porque um escritor como Saramago tem um considerável batalhão de não-leitores extremamente críticos, que se "apóiam" principalmente em três pontos: 1) uma impressão provocada pelo conhecimento (se existe e em muitos casos parcial) de uma única obra (normalmente o "Memorial do Convento"); 2) discordância em relação às tantas -e muitas vezes polêmicas- declarações e posturas político-sociais de Saramago; e 3) (ainda) preconceito contra um autor de sucesso. Trata-se de um fenômeno que se poderia chamar de "jorgeamadização" (e basta ler "O Milagre dos Pássaros", conto de Amado recém-publicado pela Ed. Record, para perceber como a comparação é injusta com o português).
Uma vez que Saramago defende a inexistência do narrador ("apropriação, por um Narrador academicamente abençoado, da matéria, da circunstância e da função narrativa, que em épocas anteriores, como autor e como pessoa, lhe eram exclusiva e inapelavelmente imputadas...", "Cadernos de Lanzarote 4", pág. 192, Lisboa, Caminho Editorial), poder-se-ia pensar que esta crítica dos não-leitores é validada pelo próprio criticado: narrador é igual autor, portanto, o que o autor escreve (ficção), representa o que pensa e diz (vida). É a vida (tradição), paradoxalmente, que mostra que nem sempre (quase nunca) esse raciocínio faz sentido (aliás, se se pensar no desenrolar de "Todos os Nomes" -e, no caso de Saramago, em todos os seus romances de modo geral-, é nas vezes que esse raciocínio se aplica que o impacto da obra diminui).
Mas o maior problema do livro -que não deixa de ser também uma questão de impacto- aparece mesmo quando ele é posto em comparação, fato que foi diagnosticado pelo autor pouco antes de começar a escrevê-lo: "Depois do 'Ensaio', quê? Não o digo como quem decidiu começar a representar o papel do escritor angustiado. Digo-o, sim, com toda a frieza (...) desde que em agosto do ano passado acabei o livro. Mais longe, ou mais alto, ou mais fundo do que isto, sei que não poderei..." ("Cadernos de Lanzarote 4", pág. 169).
Caso tenha ainda assim tentado "ir além" de "Ensaio sobre a Cegueira" (a que posso acrescentar "O Ano da Morte de Ricardo Reis" e "O Evangelho Segundo Jesus Cristo"), Saramago fracassou: não foi nem mais longe, nem mais alto, nem mais fundo. Não conseguiu retirar o que ele mesmo chamou de "pedra no meio do caminho" (o retorno é eterno, mas varia...). É, contudo, um fracasso com atenuantes. Mas é preciso pensar no livro isoladamente.
Há, em "Todos os Nomes", pelo menos um momento antológico. Trata-se da longa cena no cemitério, já nos instantes finais da intrincada busca que José, um funcionário de baixo escalão da Conservatória Geral do Registro Civil, faz por uma mulher que nunca vira e que se transforma numa espécie de apaixonada obsessão.
A visita ao local instaura de uma vez por todas uma consciência diferenciada em José. Já não resta nada nele da relação passiva e subserviente que mantinha com a Conservatória, relação -igualmente aplicável a todos os seus colegas no trabalho- que é incrivelmente bem delineada pela seguinte frase de Hannah Arendt: "Deixaria, por assim dizer, de ser o que era e obedeceria às leis do processo, iria se identificar com forças anônimas a que deveria servir para manter todo o processo em movimento, iria considerar a si próprio uma mera função, e acabaria julgando tal funcionalidade, tal encarnação da corrente dinâmica como sua mais alta realização possível".
"Todos os Nomes" narra a paulatina e ambígua destruição das "leis do processo" no interior de um indivíduo. É, na verdade, um livro ambíguo em mais de um sentido -desde a epígrafe criada pelo escritor: "Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens".
A fórmula pode ser lida de outras maneiras: nem sempre Saramago conhece Saramago ou, mais precisamente, nem sempre José conhece José. E agora?
Adriano Schwartz é editor-adjunto do caderno Mais!.

Folha de São Paulo

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