O peso das forças conservadoras
Wilma Peres Costa
WILMA PERES COSTA
este é o segundo livro do historiador norte-americano John Schulz publicado no Brasil nos últimos três anos. O primeiro, "O Exército na Política - Origens da Intervenção Militar (1850-1894)" (Edusp, 1994), veio a corrigir uma incompreensível omissão do mercado editorial brasileiro. A lembrança nos permite apreender o que tem sido o universo de preocupações do autor -o peso das forças conservadoras na transição da escravidão para o trabalho livre e na passagem do Império para a República.
Em "O Exército na Política", John Schulz realizou um acurado estudo da profissão militar no Império, concentrando-se tanto nas variáveis sociológicas -origem social, processo de socialização, sistemas de progressão profissional-, quanto nas condições que permitiram que essa categoria profissional viesse a emergir para a cena política na forma de uma contra-elite, crescentemente crítica da escravidão e no desdobramento da crise do regime e das próprias instituições monárquicas.
Em "A Crise Financeira da Abolição", Schulz retoma o período da transição republicana sob uma ótica distinta -as políticas financeiras das últimas décadas da monarquia e da primeira década republicana, mais precisamente de 1875 a 1901. Dentre os méritos do trabalho, destaca-se o esforço em apresentar uma descrição cuidadosa daquelas políticas em linguagem simples, tornando acessíveis ao público não-especializado em economia as tecnicalidades da gestão econômica. Mais do que isso, o trabalho pretende relacionar a dinâmica financeira com os processos sociais e políticos mais amplos, em particular com as pressões emergentes a partir da crise do escravismo e da abolição da escravidão.
Num primeiro passo, o livro procura reconstituir a dinâmica financeira do Império (estrutura fiscal, dívida pública interna e externa), bem como a oscilação da política monetária caracterizada pelo autor como de "adesão sem rigidez ao padrão ouro". O recurso à inconversibilidade nas crises, segundo o autor, mostrou-se um mecanismo eficaz para minorar os impactos dos choques externos, garantindo, para o conjunto do Segundo Reinado, um perfil de estabilidade e baixa inflação, sem prejudicar o crescimento econômico.
A inflexão nessa política teria se dado em função das pressões pela monetização da dívida pública e expansão do crédito, à medida que as elites econômicas se apercebiam da crise do escravismo e da aproximação da abolição. Nesse sentido, o fulcro da análise concentra-se nas políticas de crédito fácil e aumento da emissão monetária do último gabinete do Império (Ouro Preto) e dos dois primeiros ministérios econômicos da República (Rui Barbosa e Lucena). Essas políticas são vistas pelo autor como um continuum, minimizando tanto o peso da transformação republicana quanto o papel do estancamento do crédito externo, que se estendeu virtualmente da Proclamação da República até a negociação do Funding Loan, em 1898.
Com uma linguagem fortemente valorativa, Schulz coloca todo o peso da crítica nas políticas creditícias e emissionistas daquele período que, no esforço de aplacar a grita dos setores prejudicados com a abolição, teriam sido responsáveis pela inflação, pelo descalabro especulativo e, sobretudo, pelo desperdício da oportunidade histórica representada pela abolição da escravidão para a modernização do país. Em contraste, o autor não poupa elogios para as políticas de ajuste e para a retomada da ortodoxia, promovidos no quadriênio Campos Salles, bem como para o retorno ao padrão ouro que antecedeu a Primeira Guerra Mundial.
Para os admiradores do primeiro trabalho de Schulz, é impossível não experimentar um certo sentimento de decepção por essa evidente reabilitação da interpretação mais conservadora sobre a transição republicana e pela recusa ao debate com os autores que buscaram contestá-la em trabalhos inovadores sobre o Encilhamento de Tannuri, Bárbara Levy, Gustavo Franco, Suzigan e Pelaez (embora citados em notas de rodapé, eles não têm suas teses discutidas no corpo do texto). A decepção se manifesta justamente porque, em seu livro sobre o exército na política, percebia-se um analista bem mais atento à complexidade das forças envolvidas na crise do Império e na implantação da República.
Em seu novo livro, o professor Schulz culpa invariavelmente "as elites" pelo desperdício daquela oportunidade histórica. O recurso à condenação das elites, conceito problemático em si mesmo, aqui ganha uma conotação extremamente simplificadora, visto que, a partir de 1870, o Estado brasileiro via-se como palco de pressões divergentes e contraditórias precisamente porque a transição para o trabalho livre teve diferentes dinâmicas e conteúdos regionais. A reorganização federativa, quase que ignorada pelo professor Schulz e tratada como atendendo apenas aos interesses de São Paulo, não pode estar ausente de uma análise nos termos propostos pelo autor -o relacionamento da dinâmica financeira com a crise e superação do escravismo-, sob pena de sacrificar toda a complexidade inerente àquela quadra política. Da mesma maneira, o crescimento exponencial da dívida pública a partir da Guerra do Paraguai é bastante minimizado na análise, como se a República tivesse herdado finanças saudáveis, arruinando-as na orgia especulativa por mera cegueira das elites e fraqueza dos governos. John Schulz utiliza como epígrafe de seu livro uma balada da fronteira americana, que compara os malfeitores que roubam com pistolas àqueles que o fazem com canetas, considerando que os últimos são piores. Propõe-se compreender seu objeto "com a indignação dessa balada mas com um pouco mais de análise". Não obstante os méritos do seu polêmico trabalho, podemos dizer que o esforço de análise ficou bastante a dever à indignação moral.
Wilma Peres Costa é professora do departamento de política e história econômica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora de "A Espada de Dâmocles - O Exército, a Guerra do Paraguai e a Crise do Império" (Unicamp/Hucitec).
Folha de São Paulo
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