sábado, 25 de abril de 2009

TRABALHADORES - UMA ARQUEOLOGIA DA ERA INDUSTRIAL


Dois afrescos

Ana Maria Galano
TERRA /LIVRO/ SEBASTIÃO SALGADO

as 350 fotografias de "Trabalhadores", tiradas entre 1986 e 1991, constroem um afresco monumental de formas de produção na agricultura, em indústrias mecânicas de processo, em atividades extrativistas, em obras de construção civil e em transportes. Às fotos, Sebastião Salgado, que também é economista, acrescenta legendas com dados históricos, volumes de produção, descrições detalhadas de técnicas, de ritmos e de condições materiais de trabalho.
Com "Trabalhadores", a documentação visual de Sebastião Salgado muda de escala. Antes, seus ensaios temáticos registraram camponeses da América Latina e a fome endêmica no Sahel, África Ocidental. Desde 1984, segundo Lélia Wanick Salgado, diretora do projeto "Trabalhadores" e mulher do fotógrafo, o mal-estar com o "fim de uma certa organização do trabalho" foi se tornando tema obsessivo até mesmo nas conversas do casal. Começaram então os contatos e preparativos para viabilizar um projeto que veio a se estender a 19 países dos cinco continentes. De reportagens localizadas, Sebastião Salgado evoluiu para a grande variedade espacial de formas de produção e para os rumos das mudanças socioeconômicas do final do século no mundo quase inteiro.
As situações documentadas tornam, no entanto, curiosamente contraditório o subtítulo de "Trabalhadores": muito menos que uma "arqueologia da era industrial", as imagens mostram a persistência de processos de produção agrícola não-mecanizados no Brasil, em Cuba e em Ruanda; a manutenção de linhas de montagem taylorizadas em fábricas de automóveis na Índia, China, Ucrânia e Rússia; a maciça presença humana em ateliês de usinas têxteis em Bangladesh; a força das mãos e do corpo na desmontagem de navios, ainda em Bangladesh, na talha de blocos de enxofre vulcânico na Indonésia, na extração e transporte de carvão em galerias de minas na Índia. Em contraponto discreto, a informatização parcial da circulação ferroviária na França e a semimecanização de um matadouro em Dakota do Sul, EUA.
Concebido como "um adeus ao mundo do trabalho manual, que está lentamente desaparecendo", as fotos de "Trabalhadores" ganham significado maior quando vistas como documentos sobre a desigualdade dos movimentos de homogeneização material e cultural mundo afora.
Elementos de duas tradições fotográficas, pelo menos, se entrecruzam em "Trabalhadores": a das longas e frequentes viagens dos grandes foto-repórteres do século 20, como Henri Cartier-Bresson e Robert Capa; a dos fotógrafos que realizaram documentários temáticos (Lewis Hine sobre o trabalho infantil nos EUA; Atget e Brassai sobre Paris; August Sander sobre a população alemã da República de Weimar; Dorothea Lange e Walker Evans, entre outros, sobre a ruína de pequenos proprietários e meeiros do sul dos EUA, nos anos 30; Robert Frank sobre os norte-americanos dos anos 60). Como em relação a estas obras, há uma pergunta quase irresistível: o que vai permanecer? Quais imagens de "Trabalhadores" ficarão para sempre associadas às situações documentadas? As fotos de Serra Pelada já são consideradas ícones da fotografia documentária dos anos 80.
Há muitas imagens espetaculares, grandiosas, faiscantes em "Trabalhadores". Como a de operários em estaleiros navais, na França e na Polônia; em siderúrgicas, na Ucrânia e na França, e em fábricas de processamento do chumbo, no Casaquistão. Apesar de seu impacto, da dramaticidade de seu enquadramento e de sua composição, talvez sejam outras as imagens que têm maior poder de documentação social. Como a foto da Casa del Tabaco, em Cuba, em que se adivinham graças e conversas pontuando o trabalho; a ansiedade no dia de pagamento dos trabalhadores do chá, em Ruanda; ou o chinelinho da operária russa em plena linha de montagem de automóveis.
O projeto de "Terra" é materialmente muito menos ambicioso. Trata-se de uma centena de imagens produzidas entre 1980 e 1996, quando de viagens do fotógrafo ao Brasil. O trajeto de Sebastião Salgado inicia-se no Nordeste, em 1980 e 1983, estendendo-se depois ao Norte e a São Paulo, em 1986-87. Se várias das fotos de "Terra" já tinham sido publicadas e integram outros projetos de documentação -"Camponeses da América Latina", "A Mão do Homem" ou "Trabalhadores", "As Grandes Migrações" e "As Metrópoles"-, em 1996 foi a atualidade das lutas sociais no campo que orientou os deslocamentos do fotógrafo para documentar conflitos, acampamentos e assentamentos em muitos lugares do país.
Além de livro, "Terra" é também uma coleção de reproduções fotográficas que tem sido exibida em sedes de sindicatos, em igrejas, em espaços culturais, em universidades ou simplesmente em praças públicas de vários países. A exposição é, por vezes, acompanhada de debates sobre a questão agrária e o Movimento dos Sem Terra (MST). Fenômeno editorial -o livro figurou entre os dez mais vendidos do país no mês de setembro-, "Terra" constitui também um fenômeno de eficácia política na área de produção cultural.
Segundo depoimento de Sebastião Salgado em abril de 1997, o livro e a exposição "Terra" resultaram de proposta sua à direção do MST. Também foi dele a iniciativa de associar ao empreendimento o escritor português José Saramago, autor do prefácio, e Chico Buarque que, além de intérprete do CD distribuído com o livro, tem letras de canções reproduzidas em "Terra". Houve, assim, desde a origem do projeto, a vontade de transmitir um máximo de prestígio cultural erudito e o dos meios de comunicação de massa a um movimento social popular.
É difícil dissociar o sucesso da operação dos ares do tempo. Já se vão quase 20 anos dos primeiros acampamentos e ocupações de terra organizados pelo MST no sul do país. Desde então, ampliou-se muito a influência e a presença do movimento. Depois de longo período de indiferença, setores da população urbana brasileira voltaram a se interessar pelo que se passa no campo. "Terra" talvez desempenhe papel semelhante ao que teve o livro-reportagem "Os Industriais da Seca e os Galileus de Pernambuco", de Antonio Callado, no início dos anos 60, o de revelador de um movimento social, neste caso o das Ligas Camponesas.
As cinco seções do livro -"gente da terra", "trabalhadores da terra", "a força da vida", "migrações para as cidades", "a luta pela terra"- transmitem uma espécie de teoria visual da questão agrária no Brasil que naturaliza as três últimas fotos da publicação: as linhas verticais de foices e enxadas acima de uma multidão que, de punhos erguidos, celebra a desapropriação da fazenda que ocupava há meses; entre o céu e a terra, com grandes bandeiras, trabalhadores caminham em direção à objetiva e às dependências da fazenda que foi desapropriada; as traves da porteira forçada, a bruma da manhãzinha de inverno no Sul, uma nova ocupação de terra.
Devem ser possíveis vários tipos de classificação das fotografia de "Terra": cenas de trabalho, cotidiano doméstico, migrações etc. A teoria visual da questão agrária de Sebastião Salgado não se apreende, no entanto, pelas partes nem pelos detalhes. Conta mais a abrangência e o "continuum". E o uso de referências a certos fatos sociais de amplo conhecimento público: os retirantes da seca, os meninos de rua, as cadeias superlotadas, o trabalho no lixão, a miséria em bairros periféricos. É assim que ninguém estranha em caminhar dos índios Ianomâni até o insólito berçário público para recém-nascidos abandonados no terraço de um arranha-céu de São Paulo. Só então se inicia a seção "luta pela terra", com uma galeria de retratos de crianças, que procede as fotos de acampamentos, de uma escola para filhos de trabalhadores acampados, de uma ocupação de terra em período inicial e de assentamentos já consolidados. Imagens novas para muitos. E que fazem entender não só que se mata, mas o que se tem tentado impedir com massacres, como o de Eldorado dos Carajás.
Ana Maria Galano é professora de sociologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Folha de São Paulo

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