Essa gente bronzeada
Hersch W. Basbaum
Sérgio Cabral vem se notabilizando por biografias de grandes nomes do rádio e da música brasileira: Almirante, Ary Barroso, Pixinguinha, Elisete Cardoso. "A MPB na Era do Rádio" não se ocupa propriamente com o rádio, sendo este apenas a moldura, veículo básico que permitiu a expansão e a consolidação da música popular brasileira. Sem o rádio, com certeza, não teríamos Luiz Gonzaga e Lupicínio Rodrigues, personagens de que tratam as outras obras aqui resenhadas.
O livro de Cabral, bastante interessante, ainda que não seja uma nova abordagem de um tema já rico em bibliografia. Sua importância está, a meu ver, na maneira com que foi estruturado. Não se trata de um desfiar cronológico de fatos, mas sim de uma descrição de relações: com os pioneiros, com os compositores populares, o Estado Novo, o carnaval etc.
O livro permite entender a importância alcançada pelo rádio. A primeira emissora, a Rádio Sociedade, de Roquete Pinto, foi instalada no Rio de Janeiro em 1923. Mas até o fim da década de 20 a MPB não encontrava espaço na caranguejola, que dedicava seu tempo apenas para um "um tipo de cultura, com uma programação quase só da chamada música erudita, conferências maçantes e palestras destituídas de interesse". E o próprio Roquete Pinto não escondia a forma como enxergava a função do rádio: "Deveria levar a todos os lares do Brasil o conforto moral da ciência e da arte. Nada de música popular. Em samba, nem é bom falar". O violão era "instrumento de capadócios".
Esse era o clima da época. Com a evolução tecnológica das gravadoras e com o desenvolvimento do rádio, o comércio também foi levado a modernizar-se. "O mercado foi contemplado com a venda a crédito, o que levou a classe média, já nos primeiros anos da década de 30, a substituir o velho piano da sala de visitas pelo aparelho de rádio e pela vitrola, ou pelo gramofone".
Candidatos a cantores e compositores depararam-se com a oportunidade de gravar e participar de programas radiofônicos. Cabral observa que, sendo a matéria-prima de todo aquele complexo industrial e comercial, a música passou a ser procurada.
Os vitoriosos da Revolução de 30, percebendo a importância do rádio, trataram de criar uma legislação que atribuísse ao governo total controle sobre o veículo. Porém a medida que viria a dar um histórico impulso foi o decreto baixado a 01/03/1932, autorizando as emissoras a fazer propaganda de produtos comerciais. A partir desse momento pôde-se pensar em pagar adequadamente os artistas populares, cantores e compositores. Chegara "o momento dessa gente bronzeada mostrar o seu valor", como disse Assis Valente.
Na verdade, aí começa a chamada época de ouro da MPB. Esse período, segundo Cabral, seria encerrado em 1958, com a morte de Almirante, conhecido como "a maior patente do rádio".
Lupicínio e Luiz Gonzaga são "astros" fulgurantes dessa "gente bronzeada" da época de ouro, da era do rádio, ainda que com estilos, origens e conteúdos completamente diferentes. Mas seria precipitação reducionista falar na oposição entre o urbano do primeiro e o rural do segundo.
Dominique Dreyfus fez um livro de uma pessoa apaixonada por seu ídolo, em que o herói biografado, com seus poucos defeitos e suas inúmeras virtudes e encantamentos, revela-se capaz de ajudar o próximo, enquanto faz boa música. É a chamada biografia "comme il faut", de acordo com as preferências do grande público. Talvez a autora pudesse ter feito alguma incursão à análise do texto das letras, mesmo que não assinadas por Gonzaga. Durante um longo período, contudo, não se podia dissociar sua obra dos nomes de Zé Dantas ou Humberto Teixeira. Basta apenas notar, por exemplo, que na letra dos baiões desses mestres a paisagem é explicitada, coisa que não acontece na obra de Lupicínio, por exemplo. Podemos imaginar os desdobramentos que tal observação, ainda que simples, sugere.
A abordagem de Maria Izilda e Fernando sobre Lupicínio resulta num livro que não é propriamente uma biografia, pois só se ocupa de fatos supostamente relacionados com determinadas canções.
Valendo-se de abundante imaginação, aproximam-se dos versos de um poeta da vida boêmia que cantou os males do amor. Procuram explicar os seus versos, não gastando mais que poucas linhas com a estrutura melódica, que permitiria enquadrar a obra dentro do chamado samba-canção. Para os autores, a vivência boêmia de Porto Alegre e a influência da fronteira com os países latinos -sua temática urbana é fortemente marcada pela cultura portenha, pelo tango e pelo bolero- elucidariam o conteúdo das letras.
Apesar da marcante objetividade textual dos autores, a beleza das canções não é restringida por uma análise estética acadêmica. O subtítulo do livro, que fala em "o feminino, o masculino e suas relações", já sinaliza o caminho percorrido pelos autores, onde a sociologia e a antropologia dão-se alegremente as mãos.
Antes de Lupicínio, outros autores, distantes das fronteiras, já diziam "maravilhas" sobre as mulheres e a infidelidade como uma imanência, muitos até com agressividade e rancor, refletindo mais a cultura de um tempo do que, talvez, a opinião consciente dos autores: "Isso em mulher é comum, mas não julgo todas por uma, pode ser que haja alguma com pudor e coração" (Ataulfo-1947); ou "eras no fundo uma fútil, foste de mão em mão; satisfaz tua vaidade, muda de dono à vontade, isso em mulher é comum" (B.Lacerda/ Mario Lago-1939). Sempre a visão masculina da figura feminina, exigindo, contudo, a contextualização temporal da análise.
Por essa época -a era do rádio- a capital da república já assistia a formação de uma classe trabalhadora fabril, com absorção de mão-de-obra feminina, e a proliferação dos "night clubs", apelidados de "inferninhos", onde a "bourgeoisie triomphante", com os servis "white collars", de uma pequena burguesia ascendente, encontrava seu modelo comportamental nos heróis do cinema. A música dos "inferninhos" não era o samba alegre e nem o choro movimentado e nem muito menos o baião. Tome-se "Quase Que Eu Disse" (S.Caldas/ Orestes Barbosa) e a canção "Três Apitos" (Noel Rosa), em que o poeta, boêmio, entende que o apito da fábrica faz "reclames" da namorada. Era a cidade crescendo, as mulheres desempenhando novos papéis e os homens, aturdidos, se tornando ciumentos...
HERSCH W. BASBAUM é escritor e dramaturgo, diretor da União Brasileira de Escritores (UBE).
Folha de São Paulo
Hersch W. Basbaum
Sérgio Cabral vem se notabilizando por biografias de grandes nomes do rádio e da música brasileira: Almirante, Ary Barroso, Pixinguinha, Elisete Cardoso. "A MPB na Era do Rádio" não se ocupa propriamente com o rádio, sendo este apenas a moldura, veículo básico que permitiu a expansão e a consolidação da música popular brasileira. Sem o rádio, com certeza, não teríamos Luiz Gonzaga e Lupicínio Rodrigues, personagens de que tratam as outras obras aqui resenhadas.
O livro de Cabral, bastante interessante, ainda que não seja uma nova abordagem de um tema já rico em bibliografia. Sua importância está, a meu ver, na maneira com que foi estruturado. Não se trata de um desfiar cronológico de fatos, mas sim de uma descrição de relações: com os pioneiros, com os compositores populares, o Estado Novo, o carnaval etc.
O livro permite entender a importância alcançada pelo rádio. A primeira emissora, a Rádio Sociedade, de Roquete Pinto, foi instalada no Rio de Janeiro em 1923. Mas até o fim da década de 20 a MPB não encontrava espaço na caranguejola, que dedicava seu tempo apenas para um "um tipo de cultura, com uma programação quase só da chamada música erudita, conferências maçantes e palestras destituídas de interesse". E o próprio Roquete Pinto não escondia a forma como enxergava a função do rádio: "Deveria levar a todos os lares do Brasil o conforto moral da ciência e da arte. Nada de música popular. Em samba, nem é bom falar". O violão era "instrumento de capadócios".
Esse era o clima da época. Com a evolução tecnológica das gravadoras e com o desenvolvimento do rádio, o comércio também foi levado a modernizar-se. "O mercado foi contemplado com a venda a crédito, o que levou a classe média, já nos primeiros anos da década de 30, a substituir o velho piano da sala de visitas pelo aparelho de rádio e pela vitrola, ou pelo gramofone".
Candidatos a cantores e compositores depararam-se com a oportunidade de gravar e participar de programas radiofônicos. Cabral observa que, sendo a matéria-prima de todo aquele complexo industrial e comercial, a música passou a ser procurada.
Os vitoriosos da Revolução de 30, percebendo a importância do rádio, trataram de criar uma legislação que atribuísse ao governo total controle sobre o veículo. Porém a medida que viria a dar um histórico impulso foi o decreto baixado a 01/03/1932, autorizando as emissoras a fazer propaganda de produtos comerciais. A partir desse momento pôde-se pensar em pagar adequadamente os artistas populares, cantores e compositores. Chegara "o momento dessa gente bronzeada mostrar o seu valor", como disse Assis Valente.
Na verdade, aí começa a chamada época de ouro da MPB. Esse período, segundo Cabral, seria encerrado em 1958, com a morte de Almirante, conhecido como "a maior patente do rádio".
Lupicínio e Luiz Gonzaga são "astros" fulgurantes dessa "gente bronzeada" da época de ouro, da era do rádio, ainda que com estilos, origens e conteúdos completamente diferentes. Mas seria precipitação reducionista falar na oposição entre o urbano do primeiro e o rural do segundo.
Dominique Dreyfus fez um livro de uma pessoa apaixonada por seu ídolo, em que o herói biografado, com seus poucos defeitos e suas inúmeras virtudes e encantamentos, revela-se capaz de ajudar o próximo, enquanto faz boa música. É a chamada biografia "comme il faut", de acordo com as preferências do grande público. Talvez a autora pudesse ter feito alguma incursão à análise do texto das letras, mesmo que não assinadas por Gonzaga. Durante um longo período, contudo, não se podia dissociar sua obra dos nomes de Zé Dantas ou Humberto Teixeira. Basta apenas notar, por exemplo, que na letra dos baiões desses mestres a paisagem é explicitada, coisa que não acontece na obra de Lupicínio, por exemplo. Podemos imaginar os desdobramentos que tal observação, ainda que simples, sugere.
A abordagem de Maria Izilda e Fernando sobre Lupicínio resulta num livro que não é propriamente uma biografia, pois só se ocupa de fatos supostamente relacionados com determinadas canções.
Valendo-se de abundante imaginação, aproximam-se dos versos de um poeta da vida boêmia que cantou os males do amor. Procuram explicar os seus versos, não gastando mais que poucas linhas com a estrutura melódica, que permitiria enquadrar a obra dentro do chamado samba-canção. Para os autores, a vivência boêmia de Porto Alegre e a influência da fronteira com os países latinos -sua temática urbana é fortemente marcada pela cultura portenha, pelo tango e pelo bolero- elucidariam o conteúdo das letras.
Apesar da marcante objetividade textual dos autores, a beleza das canções não é restringida por uma análise estética acadêmica. O subtítulo do livro, que fala em "o feminino, o masculino e suas relações", já sinaliza o caminho percorrido pelos autores, onde a sociologia e a antropologia dão-se alegremente as mãos.
Antes de Lupicínio, outros autores, distantes das fronteiras, já diziam "maravilhas" sobre as mulheres e a infidelidade como uma imanência, muitos até com agressividade e rancor, refletindo mais a cultura de um tempo do que, talvez, a opinião consciente dos autores: "Isso em mulher é comum, mas não julgo todas por uma, pode ser que haja alguma com pudor e coração" (Ataulfo-1947); ou "eras no fundo uma fútil, foste de mão em mão; satisfaz tua vaidade, muda de dono à vontade, isso em mulher é comum" (B.Lacerda/ Mario Lago-1939). Sempre a visão masculina da figura feminina, exigindo, contudo, a contextualização temporal da análise.
Por essa época -a era do rádio- a capital da república já assistia a formação de uma classe trabalhadora fabril, com absorção de mão-de-obra feminina, e a proliferação dos "night clubs", apelidados de "inferninhos", onde a "bourgeoisie triomphante", com os servis "white collars", de uma pequena burguesia ascendente, encontrava seu modelo comportamental nos heróis do cinema. A música dos "inferninhos" não era o samba alegre e nem o choro movimentado e nem muito menos o baião. Tome-se "Quase Que Eu Disse" (S.Caldas/ Orestes Barbosa) e a canção "Três Apitos" (Noel Rosa), em que o poeta, boêmio, entende que o apito da fábrica faz "reclames" da namorada. Era a cidade crescendo, as mulheres desempenhando novos papéis e os homens, aturdidos, se tornando ciumentos...
HERSCH W. BASBAUM é escritor e dramaturgo, diretor da União Brasileira de Escritores (UBE).
Folha de São Paulo
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