terça-feira, 28 de abril de 2009

NO JAPÃO - IMPRESSÕES DA TERRA E DA GENTE


O olhar do viajante

RENATO ORTIZ
Existe algo de oficialesco nesta reedição de "No Japão", preparada para ser entregue ao imperador Akihito, fazendo as vezes de um regalo governamental. A "orelha" foi escrita pelo vice-presidente da República e a quarta capa estampa uma "apreciação intelectual" da obra assinada pelo empresário Roberto Marinho. Um esmero excessivo e até certo ponto constrangedor. O texto não necessita desses subterfúgios, é mais grandioso do que as circunstâncias que envolvem sua edição atual (a 1ª é de 1903).
Oliveira Lima esteve no Japão entre 1901 e 1902 como membro do corpo diplomático brasileiro. Não foi o primeiro escritor brasileiro a visitar o mundo asiático. Aluísio de Azevedo não só o antecedeu em alguns anos (1895-1897) como também escreveu sobre sua experiência no estrangeiro. Seu livro "O Japão" permaneceu no entanto inacabado. Durante anos os manuscritos estiveram trancados nos arquivos da Academia Brasileira de Letras, sendo publicados apenas em 1984.
Não há porém comparação possível entre os textos. O de Aluísio de Azevedo é mais superficial, nostálgico e tradicional. Interessa-lhe o glorioso passado japonês, sua essência primeva antes de ter sido "corrompida" pela chegada dos ocidentais. Oliveira Lima escreve como um viajante. Volta-se para a história, mas é o presente mutável da sociedade japonesa que retém sua atenção. Um belo livro. Escrito com uma sensibilidade universalista, encerra algo de clássico, testemunho e interpretação de uma época. Comparado ao texto de Chamberlain ("Things of Japan"), pai fundador da japonologia em língua inglesa, ele é indubitavelmente superior. Não em erudição, Chamberlain era um "especialista", mas certamente em capacidade interpretativa. A narrativa, uma síntese de vivência, leituras e reflexão, guarda até hoje sua atualidade.
Oliveira Lima visitou o Japão num momento crítico. Mais de 30 anos haviam se passado desde a revolução Meiji (1868). As revoltas internas tinham sido sufocadas, o regime de castas eliminado, e as diversas tentativas de se importar modelos ocidentais (francês na educação, alemão na organização do Estado, inglês e norte-americano na indústria) foram aos poucos sendo substituídas pela japonização das experiências alheias. O processo de industrialização começava a mudar a face do país, e seus primeiros frutos, urbanização, migração do campo para a cidade, criação de uma classe operária, já se faziam sentir. O Japão preservava no entanto muito de sua tradição. Nos costumes, nos divertimentos populares, no espírito de clã da classe política, seu peso era ainda grande.
Oliveira Lima busca compreender o jogo entre tradição e modernidade. Não há porém nostalgia em seu olhar analítico, sua atitude nada tem de romântica. O passado é visto como algo valioso, mas o autor sabe que no movimento da história muito dele iria se perder. Oliveira Lima trabalha a tradição para melhor enxergar o presente e o futuro. Seu sentido de antevisão é brilhante.
Percebe, por exemplo, que o culto ao imperador é uma farsa, ou melhor, uma artimanha política "para o uso dos néscios". Por razões de ordem política, o Estado Meiji havia construído toda uma ideologia que sacralizava o poder imperial, legitimando-o assim desde os primórdios da história japonesa. A unidade nacional encontrava sua justificação última no argumento da continuidade da casa real (o imperador seria o descendente imediato das divindades xintoístas). Uma explicação religiosa pouco condizente com a modernidade emergente, mas certamente convincente e rentável politicamente, sobretudo quando inculcada junto às massas populares (iria servir mais tarde de alicerce para a expansão do militarismo japonês).
Oliveira Lima percebeu também que a democracia era um valor frágil no Japão. Predominava na classe política o nepotismo e o espírito de clã, espécie de prolongamento dos antigos privilégios de casta. Mas ele intui que as coisas não poderiam continuar desta forma. Na sua época os movimentos partidários e os socialistas japoneses eram "cordatos", porém, como ele nos diz, "l'appétit vient en mangeant", o radicalismo era uma questão de tempo. O Japão moderno utilizava a tradição para construir sua modernidade, mas as contradições existentes já engendravam o futuro. Dialética?
"No Japão" tem evidentemente limitações, não se pode esquecer que foi escrito no século passado. A primeira delas é que o autor constrói sua argumentação a partir da noção de caráter nacional. Este é o eixo central de seu pensamento. Como todo intelectual brasileiro da época, ele partilha a idéia de que a geografia e a raça determinam historicamente o comportamento de um povo. Neste sentido, o livro reforça os estereótipos que os ocidentais possuíam, e até hoje alimentam, sobre a cultura japonesa -cordialidade, despreocupação diante da morte, culto da natureza, espírito pragmático em contraposição a uma tendência mais reflexiva. Oliveira Lima acredita que esta identidade étnica, forjada ao longo dos anos, se manifestaria agora num momento de transição.
Outra limitação é sua condição de classe. Diplomata, membro da elite brasileira, ele certamente possui uma sensibilidade aguçada para captar vários fenômenos, a política asiática, o governo japonês, as manifestações da cultura popular, o mundo das artes, o choque da modernidade. Entretanto sua perspectiva, como a de qualquer viajante (e o autor se queixa das limitações que a vida diplomática lhe impõe), deixa de lado, quando não distorce, outras dimensões da vida social. Seu discurso sobre a miséria japonesa é apenas uma justificativa de como ela seria mais digna do que a miséria dos outros povos asiáticos que conheceu -lembra um pouco o argumento de Gilberto Freyre sobre a "doçura" da escravidão brasileira quando comparada com a dos EUA. Seu olhar passa também ao largo das adversidades da classe operária. Além disso, como a maioria dos escritores de seu tempo, Oliveira Lima achava-se ainda preso a sua condição masculina. Sem ser misógino, preferia compreender a mulher japonesa na sua sujeição "dócil e voluntária".
O que dizer ainda de um livro que, malgrado esses aspectos, é no entanto magistral? "No Japão" coloca uma interrogação para as ciências sociais brasileiras. Como foi possível esquecê-lo? Quem sabe a riqueza e o universalismo do texto sejam justamente a razão deste esquecimento. Oliveira Lima escreve num momento em que o pensamento brasileiro se interessava apenas pela identidade nacional. O outro, longínquo, no caso japonês, estaria fora do alcance de sua órbita. Do final do século 19 até a década de 30, é a questão nacional que move os intelectuais brasileiros. Quem sabe hoje, em tempos de globalização, é possível relê-lo com outros olhos.
Renato Ortiz é professor de sociologia na Unicamp (Universidade de Campinas).

Folha de São Paulo

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