O lugar do mito
Maria Das Graças Nascimento
Difícil ler a "Ciência Nova", de Giambattista Vico, sem ser tomado pela imagem do grande precursor. De um lado, a análise das relações entre suas idéias e o contexto intelectual de sua época faz emergir a figura de um escritor isolado, fora de seu tempo. De outro, a valorização do pensamento viconiano por algumas correntes de pensamento dos séculos 19 e 20 assinalam o pioneirismo de suas concepções.
De fato, ao se examinar a recepção da "Ciência Nova" na Europa dos inícios do século 18, descobre-se que a obra permaneceu praticamente desconhecida dos círculos cultos. A edição de 1720 trazia, conforme nos conta Cristofolini, uma dedicatória às academias européias, na qual Vico se filiava ao novo espírito das luzes que se iniciavam. A "Biblioteca Antiga e Moderna", periódico dirigido por Leclerc, publicou uma resenha favorável, mas as "Atas dos Eruditos" de Leipzig fez um comentário hostil, que parece ter desagradado muito o autor, que perdeu assim as esperanças de dialogar com a Europa ilustrada. Isto não deve causar estranheza: desde Fontenelle, a história, para a Europa erudita, deve narrar a luta da razão contra o mito e, para a ciência nova de Vico, trata-se sobretudo de determinar o lugar teórico do mito numa determinada fase da história da humanidade, considerando-o como manifestação de uma visão do mundo, que tem uma função psicológica e social. Mesmo nos finais do século 18, Goethe e Herder, que teriam razões para se interessar pela obra, não chegaram a perceber que ela apresentava uma visão da história em muito semelhante àquela que eles mesmos haviam elaborado.
Só no século 19 a ciência nova começa a despertar interesse. Na Alemanha, Wolf e Niebuhr retomam a questão dos mitos homéricos e as origens mitológicas de Roma. Na França, Michelet publica a "Ciência Nova" e reivindica para si a herança viconiana. Os positivistas interessam-se pela noção de leis da evolução histórica e os antipositivistas do final do século redescobrem em Vico a oposição, presente na "Ciência Nova", entre natureza e mundo histórico, que lhes permitia criticar o anseio positivista de uma ciência da sociedade nos moldes das ciências naturais. Finalmente, no século 20, Croce, Collingwood, Dilthey, Cassirer são apontados como autores que se beneficiaram da leitura da obra de Vico. Diz-se mesmo que é possível aproximar o pensamento viconiano ao pragmatismo de Peirce.
Assim, o fato de Vico ter permanecido praticamente ignorado em sua época, e só ter sido por assim dizer revisitado nos séculos posteriores, leva a crítica a considerá-lo seja como um romântico "avant la lettre", seja como um precursor de correntes de pensamento contemporâneas.
Vão neste sentido as precauções de Raul Fiker para delinear "o que é especificamente viconiano". De modo semelhante, Peter Burke afirma que é preciso não separar a obra de Vico do meio social e da tradição intelectual da república humanista das letras da Nápoles dos finais do século 17. Finalmente, Paolo Cristofolini, ao optar por iniciar sua obra com uma "descrição das versões impressas e manuscritas da obra e de sua sucessão cronológica", a fim de "entrar na própria dinâmica da ciência nova", manifesta, de certa forma, a mesma preocupação, qual seja, a de evitar reduzir a obra do escritor napolitano a um conjunto de intuições antecipadoras. Se a intenção é a mesma, as três obras, contudo, apresentam resultados diferentes.
Para Raul Fiker, a imagem de Vico precursor precisa ser examinada com certo cuidado, pois seu agigantamento levaria o leitor a menosprezar aspectos singulares de seu pensamento. Mas não haveria exagero nesta interpretação, desde que considerássemos que Vico foi um dos primeiros a "delinear com precisão o território da ciência histórica", contribuindo assim de maneira original para o estabelecimento das fronteiras entre as ciências naturais e as ciências humanas. Numa época em que predominava o modelo cartesiano, a história era relegada a um domínio de segunda categoria. Para Fiker, quando Vico desenvolve o princípio do "verum ipsum fato" (segundo o qual aquilo que criamos pode nos ser inteiramente inteligível), estabelece a história como um campo privilegiado do conhecimento, na medida em que é a ciência dos fatos humanos, criados pelo homem, e que como tais podem ser até melhor conhecidos do que os fatos naturais, que não são criação nossa. Deste ponto de vista, o caráter antecipador do pensamento viconiano seria inegável.
O livro de Cristofolini é extremamente cuidadoso em retraçar as relações entre o pensamento de Vico e a tradição do século 17. Mostra de que modo Vico se opõe aos jusnaturalistas e a Hobbes que, na opinião do autor da "Ciência Nova", teriam se equivocado em ignorar o papel da providência ao conceberem o estado original da humanidade. Assinala o que aproxima Vico, que leu o "Tratado Teológico-Político", de Espinosa, da doutrina espinosana a respeito da ordem das idéias e a ordem das coisas. Indica que a interpretação viconiana da história, embora apresente o caráter universalista do "Discurso Universal" de Bossuet, apresenta contudo uma concepção da providência divina que nem sempre é conforme à ortodoxia. Enfim, aponta o que constitui a verdadeira descoberta de Vico: a idéia de que a passagem do estado selvagem para a história civil da humanidade poder ser apreendida a partir dos testemunhos oferecidos pela mitologia clássica.
Ao terminar seu livro, Cristofolini se pergunta, curiosamente, se a teologia civil de Vico teria ou não rompido o cordão umbilical que a liga às visões dos poetas teólogos das eras remotas. Responde que se pensarmos que Vico pertence a uma época que assimilou a revolução científica moderna, e que num certo sentido sua filosofia dialoga com o pensamento contemporâneo, podemos responder que sim. Mas se considerarmos que a providência para Vico é, como Cristofolini julga que de fato é, um princípio poético, uma força anímica que tudo invade, então Vico é um "bárbaro", entendido do ponto de vista viconiano, ou seja, um inventor de alegorias poéticas.
Não menos curiosa é a conclusão do livro de Peter Burke. Primeiramente, Burke insiste que Vico é um personagem típico do século 17: tendo recebido uma formação tradicional que passava necessariamente por Suarez e Duns Scoto, é ao mesmo tempo um entusiasta da nova filosofia de Galileu, Bacon e Descartes. Aponta também para o fato de que Vico enfrentou de modo singular alguns dos problemas fundamentais do estudo do homem. Sua grande descoberta seria a afirmação do caráter socialmente necessário do pensamento mítico, no que Burke não se distancia dos outros comentadores. Mas sua interpretação final é um tanto inusitada. Para Burke, a "Ciência Nova", obra de um "humanista tardio", "um dos últimos da raça", é um empreendimento imaginativo, como os poemas de Homero e Dante, e deve ser "lida como literatura". O que só confirma a impressão que a "Ciência Nova" de Vico ainda pode deixar perplexos não apenas seus leitores de hoje, mas também os leitores da própria tradição crítica.
MARIA DAS GRAÇAS S. NASCIMENTO é professora no departamento de filosofia da USP.
Folha de São Paulo
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